Mértola
- um projecto
de intervenção cultural
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Cláudio Torres
Arqueólogo |
Mértola foi, antes da definição da fronteira
com Castela, que a isolou do resto da Andaluzia, um
importantíssimo posto comercial, o porto fluvial mais a norte da
grande estrada que era o Guadiana, e desde épocas remotas por
aqui eram escoados os cereais de grande parte do Baixo Alentejo,
o ouro, a prata e o cobre das grandes extracções mineiras de
Aljustrel, de S. Domingos e da Serra da Adiça. Aqui chegaram e
se fixaram as gentes e circulavam produtos dos mais díspares
lugares do mundo mediterrânico antigo. Aqui se cruzavam com o
rio as estradas pelas quais chegavam e se redistribuiam as
mercadorias.
O seu privilegiado posicionamento geográfico e a sua
implantação estratégica, envolvendo um cerro íngreme cercado
pela ribeira de Oeiras e pelo Guadiana, garantiu-lhe invejáveis
condições de defesa.
Na combinação destes múltiplos factores, deteve Mértola, no
passado, uma importância histórica que o pequeno burgo actual,
esquecido o estatuto que ostentou de cidade pré-romana e romana,
de capital de um reino taifa e de primeira sede dos cavaleiros da
Ordem de Santiago, longinquamente deixa adivinhar.
Com o 25 de Abril e o reforço do Poder Local, foram possíveis
novos olhares sobre velhas coisas e, a partir de 1978, dá-se
corpo à ideia de encontrar soluções de dinamização e
desenvolvimento local através dos recursos patrimoniais
existentes, fossem eles arqueológicos, arquitectónicos,
etnológicos, paisagísticos, faunísticos, ou de outra natureza.
Surgem assim a Associação de Defesa do Património de
Mértola (ADPM) e o Campo Arqueológico de Mértola
(CAM) que, em conjunto com a Câmara Municipal, estabelecem as
linhas mestras de uma cooperação tripartida.
Projecto Mértola Vila Museu
A intervenção destas instituições, no quadro do projecto
global de Mértola, tem em vista a mobilização
estratégica dos recursos concelhios - a partir de áreas tão
diversificadas como a investigação científica (em arqueologia,
história local/regional, etnologia e antropologia, etc.), a
constituição de núcleos museológicos, a formação
profissional, o artesanato e técnicas tradicionais, a
dinamização e gestão de circuitos de consumo, etc., sendo de
capital importância a complementaridade entre as suas distintas
vocações e áreas de trabalho.
O reconhecimento público do trabalho desenvolvido em torno do Projecto
Mértola Vila Museu expressou-se, nomeadamente em 1989, na
obtenção do Prémio Nacional de Conservação da Natureza e
do Património Histórico-Cultural; em 1990, do Prémio
Nacional para o melhor Plano de salvaguarda para um núcleo
histórico e em 1998, da medalha de Mérito Cultural.
Centro histórico de Mértola
O tecido urbano do centro histórico de Mértola apresenta-se
como um conjunto de alto valor histórico, patrimonial, plástico
e mesmo vivencial. Assim, é parte fundamental do trabalho da
equipa do CAM, de colaboração com os técnicos da Câmara
Municipal, incentivar, apoiar e desenvolver actividades e
projectos de valorização patrimonial a ele associados.
O desenvolvimento do interesse por um trabalho mais aturado nesta
área conduziu a projectos de intervenção urbana, assumindo
nesta área particular relevância o cruzamento das informações
provenientes dos trabalhos de investigação arqueológica e
documental, nomeadamente no caso da recuperação das muralhas da
vila, do edifício da Biblioteca Municipal (concluído), da Casa
do Lanternim (em fase de arranque), etc.. Procura-se, assim, que
determinados espaços (edificados ou de outra natureza) possam
ser componentes integráveis no conjunto museológico, ou em
outras actividades, dando-se também resposta às necessidades
sociais e de usufruto quotidiano que o local contém em si.
Projecto de Museologia Local
Neste contexto, o projecto de Museologia Local insere-se
numa filosofia de intervenção que, numa primeira fase, visou
projectar a recuperação social e patrimonial do centro
histórico como polo gerador de um território.
É que, embora os vectores do crescimento se explanassem
literalmente para fora de portas, o núcleo primitivo permaneceu,
até tempos recentes, o coração da urbe, a imagem dos registos
do passado e do presente.
A primeira expansão para fora de portas ocorreu no século XVI,
e apenas em meados deste século se deu um maior alargamento e,
sempre, na mesma direcção (norte). Este quadro ajuda a perceber
como o museu se confunde com a própria vila. De facto,
historicamente tão importantes como os achados arqueológicos
que enchem os expositores, são as ruas, a organização dos
logradouros públicos, a estruturação dos espaços de
habitação, os materiais e as técnicas de construção.
A museologia, aqui, não pode ser separada da reabilitação
urbana.
Assim, facilmente se apercebe o princípio que tem presidido ao
projecto de museologia local de Mértola: o da
polinuclearização, isto é, o de organizar/instalar em pontos
distintos do centro histórico espaços museológicos temáticos
(sempre que possível in situ, ou seja, em locais com estruturas
historicamente correspondentes à temática da época exposta,
recuperando o achado arqueológico e devolvendo-o ao seu cenário
natural, como é o caso dos núcleos romano e paleocristão).
Desta forma, proporciona-se a leitura e o conhecimento de
conteúdos históricos específicos, evitando-se a concentração
expositiva e dos suportes informativos, ao mesmo tempo que se
faculta o acesso a um percurso histórico de visita que se
interpenetra com a estrutura e traçado urbano da vila, ela mesmo
entendida como espaço de fruição cultural.
No actual contexto de valorização dos recursos endógenos, e
quando são pertinentes as estratégias de revitalização das
zonas deprimidas, a constituição de dinâmicas culturais pode
ser, efectivamente, o traço de união entre os diversos agentes
que lideram, ou de qualquer outra maneira se envolvem num
processo desta natureza.
No Alentejo interior - distante das praias que permitem
estratégias de turismo de veraneio - a óptica do aproveitamento
desses recursos passa, sem sombra de dúvida, pela sua eficaz
gestão, de modo a evitar excessivas tensões sobre as
capacidades constantes - e possíveis - de um dado contexto
local. Estas quase sempre conduzem à tentação de, apressada e
desordenadamente, aumentar a capacidade de recepção de
eventuais consumidores, não se acautelando, na generalidade dos
casos, da manutenção das características originais de
qualidade que esse mesmo local e os seus recursos associados
contêm.
Novo conceito de "museu"
Para a equipa que está a trabalhar em Mértola há quase 20
anos, o conceito de "museu" ultrapassa largamente o
templo-depósito da memória. E, no entanto, o espaço
museológico clássico, a campânula de protecção não deixa de
manter as suas funções de revalorização do artefacto, quando
este, nomeadamente o arqueológico, surge despido e pobre, muitas
vezes desarmado de capacidades pedagógicas. Além de núcleos
expositivos construídos no próprio local da escavação ou do
monumento arquitectónico e considerados como museu de sítio,
lançam-se iniciativas ou fazem-se intervenções em
etno-sítios, em santuários, em domínios vários das culturas
populares e mesmo em vestígios da revolução industrial,
desenvolvendo-se acções reabilitadoras de espaço, de gestos e
motivos de identificação cultural. Com o alargamento constante
do projecto inicial, multiplicam-se as necessidades e
consequentemente as iniciativas. Afirmam-se as tendências e
reunem-se esforços no sentido do museu global, do eco-museu.
Além da associação científica denominada Campo Arqueológico
de Mértola, mais vocacionada, naturalmente, para a
investigação histórica e arqueológica, e antes da criação
recente do Parque Natural do Vale do Guadiana, tem sido
uma outra associação cultural - a Associação de Defesa do
Património - a assumir a educação e museologia ambiental. São
hoje bem conhecidas as suas iniciativas a favor do
desenvolvimento integrado regional e a sua luta contra as
florestações selvagens, contra a destruição da fauna e flora
autóctones, contra os agro-químicos e poluição dos rios. O
Campo Arqueológico de Mértola e a Associação de Defesa do
Património de Mértola, embora funcionando em perfeita
convergência, são, no entanto, legalmente, duas associações
autónomas, o que lhes permite intervir com a autoridade dos seus
técnicos altamente qualificados nos sectores mais diferenciados.
Finalmente não podemos esquecer que não teria sido fácil,
senão impossível ter atingido estes objectivos sem a
compreensão e permanente solidariedade dos orgãos autárquicos
e da própria população.
«O Militante» Nº 235 - Junho / Agosto - 1998