Democracia,
terror e imperialismo
 |
Jorge Cadima
Colaborador da Secção Internacional |
A história da Itália nas últimas décadas diz
mais do que mil tratados sobre a verdadeira natureza de conceitos
como democracia, liberdade, terrorismo e imperialismo.
Final da Segunda Guerra
A Itália emerge da Segunda Guerra com um povo em armas,
vitorioso no combate contra o fascismo; com um grande Partido
Comunista; com um forte desejo de que a libertação do fascismo
represente igualmente a libertação de seculares opressões de
classe. Mas a Itália emerge da guerra também com as tropas
anglo-americanas no seu solo. Colaboradoras na libertação do
nazi-fascismo. Mas já, como no resto do Mundo - de Hiroxima a
Atenas - a inverter a correlação de forças, a forjar as
alianças com as velhas e novas classes dominantes para frustrar
as aspirações populares de libertação social.
O desembarque norte-americano em território italiano é bem o
símbolo do que é "o Ocidente". Os tanques americanos
dão às costas da Sicília em Julho de 43. Levam bem alto, não
a bandeira dos EUA, não a bandeira italiana, mas bandeiras
amarelas com uma enorme letra "L", a preto.
"L" de Lucky Luciano, o chefe mafioso italo-americano.
Era o sinal combinado com a mafia siciliana, por intermédio de
Luciano, para o mútuo reconhecimento (1). A aliança não se
limitou às operações militares de desembarque. "Está
provado que, em numerosas vilas, os oficiais que comandavam as
tropas de invasão nomearam como Presidentes de Câmara e
garantes da ordem pessoas notoriamente mafiosas ou ligadas à
mafia" (2). Entretanto, a mafia estabelecia os seus
negócios (controlando o importantíssimo mercado negro do
pós-guerra), ou seja, o seu poder sobre o território. "A
mafia é, na prática, alistada nos serviços estratégicos e
militares dos EUA, e torna-se um instrumento essencial da
intervenção americana em Itália" (3).
Anos 60 e 70
No 1º de Maio 47, na localidade siciliana de Portella delle
Ginestre, bandidos armados disparam sobre trabalhadores que
celebravam o seu dia, provocando 11 mortos e numerosos feridos.
"Em 1947, logo após eleições locais que haviam colocado a
esquerda em primeiro lugar na Sicília, ambientes mafiosos e do
latifúndio, os Estados Unidos e os seus serviços secretos que
já estavam em contacto com a mafia, sectores do Estado e da
Democracia Cristã, responderam - pela primeira vez - com o
sangue ao surto de um movimento popular de libertação"
(4).
Estes antecedentes ajudam a enquadrar o actual julgamento por
associação mafiosa daquele que "nos anos 60 e 70 é o
homem político de confiança dos americanos (e o mais duradouro
Ministro da Defesa e responsável pelos Serviços Secretos)"
(5), o várias vezes Primeiro Ministro, Giulio Andreotti.
A utilização da violência na repressão do movimento social
foi uma constante em Itália, ao longo da década de 50. Mas a
partir de finais dos anos 60 dá-se um salto qualitativo. O ano
de 69 é um ano de grandes lutas de massas da classe operária
italiana, que alcança avanços históricos. O clima da época é
expresso num comunicado da Confindustria (a CIP
italiana) de 21/11/69: "o poder operário tende a
substituir-se ao Parlamento e a estabelecer uma relação directa
com o poder executivo, gerando uma subversão de todo o sistema
político" (6). "O pânico instalara-se nos ambientes
da burguesia" (7). No dia 12 de Dezembro uma bomba deflagra
no interior do Banco da Agricultura, na Praça Fontana, em
Milão, provocando 13 mortos e 90 feridos. Nos anos seguintes,
outros massacres se seguirão, sendo os mais graves o atentado
contra um comício sindical em Brescia que provoca 8 mortos e cem
feridos (28/5/74); a bomba no comboio Italicus, que provoca 12
mortos e 48 feridos (4/8/74); e a bomba na estação de combóios
de Bolonha, provocando 85 mortos e mais de 200 feridos (2/8/80).
É a estratégia da tensão, a tentativa de
"agudizar a violência, de forma a justificar uma dura
reacção dos militares com o apoio de parte da população"
(8). "Uma classe política inteira" mostrou nessa
altura aquilo que estava disposta a fazer a fim de manter o
poder, perante o avanço dos movimentos de luta operários e
estudantis, ou seja, perante aquilo que era representado como o
avanço do comunismo (...) À luz das novas revelações
resultantes dos inquéritos mais recentes, podemos afirmar que os
homens dos serviços secretos estiveram ao lado dos fascistas de Avanguardia
Nazionale e de Ordine Nuovo, como protagonistas activos da
estratégia da tensão." (9)
A Loja Maçonica P2
Em 94, o Ministério Público de Bolonha que investigou o
atentado da Estação de Bolonha, referindo os nomes de numerosos
responsáveis dos serviços secretos, afirma: "Todos eles
organizaram, orientaram, toleraram bandos paramilitares
neo-fascistas, embora tivessem a obrigação jurídica de os
neutralizar; inspiraram tentativas de golpe, atentados e
massacres, consumados ou apenas projectados, ou bem não os
impediram, assegurando a impunidade aos autores destes factos,
favorecendo até a sua fuga; desenvolveram actividades de
provocação, de desinformação e condicionamento político
através da posse ilegal de armas e explosivos, e de outros
episódios criminosos por eles próprios orquestrados para os
atribuir às Esquerdas" (10). As pessoas referidas têm em
comum também o facto de serem todos membros da clandestina Loja
Maçonica P2, chefiada por Licio Gelli (que será condenado com
alguns dos referidos chefes da Secreta por despistagem das
investigações sobre o atentado de Bolonha).
À P2 pertenciam a totalidade das chefias dos Serviços Secretos,
51 generais e almirantes, 44 deputados, altos funcionários
ministeriais, secretários de dirigentes políticos, banqueiros,
industriais e empresários, editores e jornalistas e chefias da
televisão (11). Na lista de 962 membros, apreendida no palacete
de Gelli, figura também, "não casualmente", o nome de
Randolph Stone, chefe da CIA em Roma (12). O desconhecido Gelli
tem, afinal, altos contactos do outro lado do Atlântico e
"participou pessoalmente, na Casa Branca, nas cerimónias de
tomada de posse quer do democrata Jimmy Carter, quer do
Republicano Ronald Reagan" (13). A Comissão Parlamentar de
inquérito viria mais tarde a concluir que Gelli e a P2 são um
instrumento "de intervenção para operações de controlo e
condicionamento", falando de duas pirâmides: uma com Gelli
à cabeça; outra, superior à primeira, mas invertida, tem Gelli
na sua base. "A Comissão Parlamentar pôde investigar a
pirâmide inferior, mas permanecerá inexplorada a pirâmide
superior, na qual - com base nos dados adquiridos - estão
certamente presentes os serviços secretos americanos e
atlânticos" (14). A P2 aparece também associada a outra
estrutura ilegal e inconstitucional: a Gladio (15), versão
italiana das estruturas paramilitares criadas pelos americanos
para a subversão anti-comunista em numerosos países europeus.
O assassinato de Aldo Moro
A acção de despistagem das investigações por parte dos
Serviços Secretos caracteriza também o episódio mais famoso
desta fase política italiana: o rapto de Aldo Moro. Dirigente da
DC, Moro é o expoente da política de abertura ao PCI, que
alcança nos anos de 75 e 76 a sua maior expressão eleitoral. Em
78, no dia em que deveria tomar posse o primeiro Governo
resultante dum acordo programático com o PCI, Aldo Moro é
raptado em Roma pelas Brigadas Vermelhas. Após 55 dias é
assassinado (16). A filha de Moro respondia recentemente à
pergunta se "acredita que forças fora da Itália quiseram e
participaram na morte de Moro, cuja linha política de
compromisso com o Partido Comunista não agradava a
certos sectores italianos, mas era sobretudo hostilizada pela
América?", dizendo: "é óbvio que acredito; é
impossível não acreditar (...) é impossível acreditar que
fosse obra somente de um grupo de terroristas italianos"
(17). E a viúva de Moro conta que após uma visita oficial aos
EUA em 74, o marido (então Ministro dos Estrangeiros) lhe
confidenciou, perturbado, ter sido alvo de ameaças de alto
nível de que "iria pagar caro" caso não abandonasse
"o seu plano político de levar à colaboração directa de
todas as forças do seu país" (18). "O massacre da rua
Fani e o assassinato do Presidente da DC 55 dias mais tarde,
apenas foram possíveis graças à conivência dos serviços
secretos, nacionais e estrangeiros" (19).
O envolvimento americano na estratégia da tensão parece não se
restringir ao nível político. As mais recentes investigações
judiciais permitiram "aos investigadores alcançar uma
certeza razoável de que, por detrás das organizações
terroristas de extrema direita (...) estivesse a presença de
suporte dos Núcleos, uma organização militar clandestina
ligada à NATO (...) Os 'núcleos' estavam ligados ao SID
[Serviços Secretos italianos], ao Estado Maior do Exército e à
NATO, e agiam em paralelo com a Gladio" (20).
A história da "democracia ocidental de economia de
mercado" do "nosso parceiro europeu e atlântico"
está mergulhada no sangue. Nos precisos anos em que no nosso
país se contrapunham os "bons" comunistas italianos
aos "maus" portugueses, o caminho (democrático) para o
poder dessa grande força popular, (ainda) não alinhada com o
poder imperial, foi travada com o terror, a morte e a violência.
A lição é actual e não é válida apenas para a Itália.
O resto são ilusões.
Notas:
(1) Ver Salvatore Francesco Romano, Historia de la Mafia,
Alianza Editorial, Madrid, 1970, pg. 256, ou Tim Shawcross e
Martin Young, Mafia Wars, Fontana/Collins, 1987, pg. 38
e 256.
(2) Citação de Salvatore Francesco Romano, op. cit., pg. 256.
(3) (5) (10) (12) (13) (14) (15) (19) Sergio Flamigni, Trame
atlantiche, Kaos Edizioni, 1996, pgs. 137, 386, 83, 270,
384, 269. Sergio Flamigni foi deputado do PCI entre 68 e 87,
tendo feito parte das Comissões Parlamentares Antimafia e de
Inquérito aos casos Moro e P2.
(4) Entrevista a Nichi Vendola, deputado do Partido da
Refundação Comunista e Vice-Presidente da Comissão Parlamentar
Anti-Mafia do Parlamento italiano, no jornal Liberazione,
29/4/98.
(6) (7) (8) Citado no jornal do Partido da Refundação Comunista
italiano, Liberazione, 12/12/97.
(9) (20) Intervenção de Fausto Có, Senador pelo Partido da
Refundação Comunista, no Convénio sobre "Os massacres em
Itália", promovido pelo PRC. Liberazione,
12/12/97.
(11) Para mais pormenores, ver o livro de José Goulão P2,
Mafia, Opus Dei - o labirinto da conspiração, Editorial
Caminho,1986.
(16) (18) Ver o livro de Sergio Flamigni La tela del ragno -
Il delitto Moro, Edizioni Associate, 1988, pg. 96.
(17) Entrevista ao Diário de Notícias, 9/5/98.
«O Militante» Nº 235 - Junho / Agosto - 1998