Uma União Europeia de (ainda maior)
desequilíbrio social?



Sérgio Ribeiro
Doutor em Economia
Deputado ao Parlamento Europeu


No ano passado, ao estudar o documento da "Comissão Europeia" sobre as grandes orientações de política económica de 1997, nele encontrei referências que, sublinhando o exemplo dos Estados Unidos, onde se conseguiria fazer coincidir respeito por critérios de sã finança com crescimento económico e aumento de emprego (ou diminuição do desemprego), se deixava mais ou menos explícita a ideia da necessidade de flexibilizar os salários para baixo, ou seja, de aumentar o leque salarial mantendo os mais altos ao nível a que estavam e provocando descida nos mais baixos.
As coisas não se punham com toda esta clareza e traduzem, deve dizer-se, uma lógica que, sendo dominante, tem a sua... lógica. A de que só se pode atrair investimento simultaneamente criador de empregos desde que ele seja aliciado em termos de acumulação do capital, e tal apenas é possível se os custos do trabalho forem baixos. E a forma de tornar os custos do trabalho atractivos estaria em fazer os salários baixos mais baixos e expurgá-los de custos não-salariais, eliminando ou diminuindo muito os encargos sociais ligados à criação de postos de trabalho.
Comprovando esta lógica, vinha o exemplo dos EUA onde "a dispersão de salários" era mais elevada que na dita União Europeia e isso em resultado de os salários mais baixos serem mais baixos relativamente aos mais altos e não haver os tais encargos sociais, pelo menos no nível exigido pela manutenção ou sobrevivência do "modelo social europeu". Argumentei, então, com uma outra lógica - a nossa -, mostrando, além do mais, que essa dispersão salarial, na verdade maior nos EUA que na UE no seu conjunto, deveria ser confrontada com as dispersões salariais com os dados da UE desagregados por Estados-membros.
Feita essa desagregação verificava-se que a dispersão de salários é muito diferente nos países escandinavos - Dinamarca, Finlândia, Suécia - e na Grécia, na Irlanda e em Portugal. Com a desagradável confirmação de Portugal ter a pior situação social dos países da UE com um leque salarial idêntico ao dos EUA sem se poder arrogar dos mesmos resultados (estatísticos) que se apresentavam como exemplares, isto é, merecedores de que se lhe seguisse o exemplo.
Como, nessa altura, era divulgado o "inquérito aos orçamentos familiares, 1994-1995" comecei então um estudo que completava as reflexões provocadas pelo documento da Comissão. Apesar de ter chegado a algumas conclusões interessantes, esse estudo não foi levado até ao fim e ficou em "banho maria".


A "recidiva" neste ano económico

Saíu há pouco o documento da Comissão sobre as grandes orientações de política económica de 1998. Nele, a lógica dominante aparece mais explícita.
Num quadro da euforia a pretexto da próxima introdução do euro, o documento - Crescimento e emprego no quadro de estabilidade da UEM - reflexões de política económica com vista às grandes orientações para 1998 -, em vez de ser "apenas" um relatório económico anual, é um exercício de propaganda da estabilidade de preços, revela alguma obsessão pelo reforço da competitividade, fazendo tudo depender de uma intransigente política salarial, no sentido largo, isto é, incluindo a redução dos custos de trabalho não-salariais inerentes a "modelos" e práticas de protecção social.
No capítulo sobre "a evolução dos salários" (3.4) é atribuída aos parceiros sociais a "responsabilidade de fazer com que as altas salariais sejam conciliáveis com um nível elevado de emprego e de pôr em marcha um quadro institucional apropriado para a formação de salários", não faltando referências a "disciplina no plano dos salários e dos custos", a "acordos sobre subidas salariais moderadas e apropriadas", a "não se poder caucionar subidas salariais irresponsáveis e inadaptadas".
Neste sentido, em "políticas de melhoria do funcionamento dos mercados do emprego", dá-se grande importância à desaceleração do processo de "substituição do trabalho pelo capital, através do alargamento da escala salarial". Aí se sublinha a ligação entre ganhos de produtividade e essa relação de substituição, e afirma-se haver dois meios para "reintroduzir no mercado actividades cujos custos salariais são demasiado elevados em relação ao seu nível de produtividade": "alargar a escala de salários para baixo" e de "reduzir os custos de mão-de-obra não salariais".
A Comissão diz, preto no branco, que "para se conseguir o resultado pretendido, um alargamento para baixo da escala de salários pressupõe uma redução de cerca de 20% do custo salarial das actividades pouco qualificadas, como foi o caso dos EUA nos anos 70 e 80", acrescentando que, «para ser eficaz, uma tal medida necessitaria, na Europa, de uma redução equivalente dos subsídios de desemprego e dos encargos sociais, para eliminar o que se chama a ‘ratoeira da pobreza’».
A expressão "ratoeira da pobreza" traduz a preocupação de se evitar que os subsídios a que se tenha direito por estar no desemprego, ou outros, sejam tão altos que possam prejudicar a política de moderação salarial, sobretudo quanto aos salários mais baixos. Ou seja, correr-se-ia o risco de se criar na UE, uma nova forma de exclusão, a dos "pobres se bem que empregados", como o próprio documento refere.
Assim, o documento torna clara uma perspectiva de classe, ao defender que estes custos prevalecem sobre qualquer outra consideração. Em contrapartida, revela, naturalmente, menosprezo ou subalternização de abordagens com base nos rendimentos... que não sejam os do capital investido, criando ou não empregos.


Os números em apoio... ou talvez não

No anexo estatístico que acompanha o documento deste ano, não podia faltar um quadro sobre a Dispersão dos salários na UE, onde a dispersão é calculada tendo por fontes o "painel dos orçamentos familiares da CE" (PMCE-94) e da OCDE (96). Nesse quadro dividem-se as remu-nerações mensais brutas normais para trabalhadores a tempo inteiro por "déciles", divisão estatística das remunerações por estratos de 10% e é feito o confronto com os EUA (neste documento consideram-se apenas nove "déciles", isto é, estratos de cerca de 11%).
Assim, pode comparar-se os leques, com 4.39 para os EUA (OCDE-96) e 3.05 para os EUR12 (PMCE-94), o que quer dizer que, enquanto nos EUA o "décil" superior está mais de 4 vezes acima do "décil" mais baixo, a relação é só de 1 para 3 na UE (com 12 membros), pelo que a dispersão salarial seria muito mais alta nos EUA que na UE. Como no documento relativo a 97, o paralelo entre as dispersões salariais nos EUA e na UE tem expressão muito diferente se se desagregar a UE por Estados-membros como, insisto, é necessário fazer. Os países escandinavos observam um leque salarial de pouco mais de 1 para 2, portanto cerca de metade dos EUA, sendo os países com menor dispersão salarial da UE, enquanto a Irlanda e Portugal estão acima do ratio 4, sendo os "europeus" que acompanham os "norte-americanos", com os portugueses muito próximos num indesejável (a partir de um critério de justiça social) "pelotão da frente".
Para ilustrar numericamente, e com base na distribuição dos "déciles" centrado no "décil" intermédio - 5 - para a metade superior e a metade inferior, imaginem-se quatro situações ficcionadas (mas não tanto quanto isso...) com as designações inventadas (?!...) de "americanos, "europeus", "vikings" e "lusitanos". Igualando a 200 o "décil" 5 dos "europeus, teríamos:
  "americanos""europeus""vikings""lusitanos"
"décil":    
+ alto580360380340
5280200240130
+ baixo13012018080
o que representaria que, estando a falar apenas de assalariados, enquanto um "lusitano remediado" (130 contos) ganharia pouco mais que 45% de um "americano remediado" (280 contos), 65% de um "europeu remediado" (200 contos) e 55% de um "viking remediado" (240 contos), um "lusitano rico" (340) ganharia quase 60% de um "americano rico" (580 contos), 95% de um "europeu rico" (360 contos) e 90% de um "viking rico" (380 contos), e um "lusitano pobre" (80 contos) teria um salário de cerca de 60% de um "americano pobre" (130 contos) mas já só ganharia 65% dum "europeu pobre" (120 contos) e menos de 45% de um "viking pobre" (180 contos).
Para mais nos aproximarmos da realidade, seria de ver a distribuição dentro de cada "décil", particularmente no mais alto, pois o valor de cada "décil" é também uma média e é fácil imaginar (estamos apenas a imaginar...) que os valores extremos mais altos ainda mais se aproximariam entre si. Em resumo, poderia dizer-se que os assalariados "pobres" dos países em que é maior a dispersão salarial são ainda mais pobres e que os assalariados "ricos" se aproximam entre si à medida que são mais ricos. O que, na lógica de rendimentos e de menor desequilíbrio social, justificaria a defesa de encurtamento do leque salarial - ou de rendimentos - a partir de subida dos salários mais baixos e nunca o contrário.
Este exemplo numérico serve, também, para ilustrar a pálida - e distorcida - representação da realidade que as estatísticas oferecem. Na verdade, na aproximação "lusitana", se 80 contos para os de mais baixo rendimento e 130 contos para os de mediano/remediado salário mostrariam que a ficção criada não está muito longe da realidade, já os 340 contos para o "décil" mais alto é mesmo... pura ficção, ainda que se tenham em conta as dispersões dentro do "décil", como já foi anotado.
Recentemente, numa visita do governador do Banco de Portugal ao PE para dar conta dos seus (e de outros) esforços pró-euro, questionado sobre o tema da dispersão salarial e a estratégia e lógica dominantes, respondeu que as estatísticas distorciam a realidade pois a dispersão em Portugal era menor porque os salários mais baixos beneficiam de remunerações que não entram nas estatísticas, como subsídios de alimentação e de transporte. Ora o argumento não colhe pois também aos salários mais altos se somam outras retribuições que não se incluem nas estatísticas salariais, como é o caso dos carros, gasolina, despesas de representação, participações em resultados.
De qualquer modo, há que trabalhar com o que se tem e fazer as comparações com base no que as estatísticas facultam, sempre com a preocupação de sublinhar que não se trata da realidade mas de representações dela, necessariamente pálidas e até eventualmente distorcidas. Com a perfeita consciência de que nada substitui a realidade, que dela não nos podemos afastar, abrigados em gabinetes... por mais forrados a estatísticas que estejam!
Acrescente-se que a dispersão salarial não é, nem reflecte, a questão de fundo. A verdadeira questão de fundo reflecte-se, sim, na repartição das remunerações entre o capital e a força de trabalho. Esta observação (de fundo!) não retira significado ao problema da dispersão salarial, pois não é dispiciendo estudar como se dispersa a parcela que, de acordo com as estatísticas, cabe ao "factor de produção-trabalho", ilustrando desequilíbrios e situações de desigualdade social, e também porque serve para justificar medidas e políticas económicas/financeiras.


Os "orçamentos familiares"

Deixando de parte a ficção, única forma de aproximar as estatísticas sobre dispersão de salários de situações reais, o caso português pode ser estudado a partir dos "inquéritos aos orçamentos familiares" do Instituto Nacional de Estatística.


Necessidades e luxos dos diversos déciles


Os dados dos inquéritos também são apresentados em "déciles". Com base nesses dados, observa-se que as "famílias portuguesas" (cerca de 330 mil por "décil") com menor orçamento tinham, em 94/95, o limite superior de despesas anuais totais de 513,3 contos, e a despesa média de 340,3 contos. No outro extremo, um número idêntico de famílias tinha o limite superior de 37.773,4 contos, ou seja, quase 75 vezes mais, e a despesa média de 7.081,3 contos, ou seja, pouco acima de 20 vezes mais.
Continua a aproximação da realidade! A despesa nos agregados que compõem as perto de 330 mil "famílias portuguesas" no mais alto escalão de orçamento varia entre 4.814,5 contos (limite superior do 9º "décil") e 37.773,4 contos, seu limite superior, isto é, um "leque" de quase 1 para 8, muito significativo não obstante as reservas que merece o limite superior. Bastaria lembrar qual seria esse limite se a amostra incluísse a família do "big chief" de um dos grandes grupos económicos com sede (ou sucursal) em Portugal, ou um jogador de futebol daqueles que ganham por mês mais que o que esse limite superior refere para o ano. Note-se que no 2º "décil" o "leque" é de 1 para 1,5, e que, no 3º e seguintes até ao 9º, oscila entre 1 para 1,2 e 1 para 1,4, o que torna ainda mais significativa a enorme dispersão - de 1 para 8! - no grupo dos mais altos orçamentos familiares.
Representando cada grupo de agregados 10% do total, o 1º "décil" apenas gasta 1,5% da despesa total, o 2º - 2,8%, o 3º - 4,0%, o 4º - 5,3%, o 5º - 6,7%, o 6º - 8,4%, o 7º - 10,3%, o 8º - 13,1%, o 9º - 17,4 e o 10º "décil", os 328,8 mil agregados com mais elevada despesa, gasta quase um terço do total, 30,5%. O grupo de agregados do 7º "décil" é o único equilibrado, pois com 10% dos agregados gasta cerca de 10% da despesa total; os 6 grupos de famílias com despesa inferior, 60% ou quase dois milhões de "famílias", gasta menos de 30% da despesa total enquanto os 3 grupos acima da média, bem menos de um milhão, gastam mais de 60% da despesa total.
Ainda se acrescentaria um dado interessante. Dividindo as despesas por rubricas - alimentação, vestuário e calçado, habitação, saúde, transportes, cultura e recreio, e outras - é notório que os agregados de menores orçamentos os dispendem sobretudo no que se pode considerar necessidades incompressíveis, enquanto os agregados de mais elevada despesa libertam uma percentagem muito mais elevada para o que não representa necessidades essenciais.
O 1º "décil" gasta 49,1% do seu orçamento em alimentação, enquanto o 10º "décil" gasta tão-só 13,5%; em contrapartida, em cultura e recreio, as percentagens são de 1,2% e 6,1%, respectivamente. Outro dado: nos transportes e comunicações, o 1º "décil" gasta 4,8% e o 10º gasta 28,9%, mas, dentro desta rubrica, os transportes públicos valem 0,9% e 0,5% e os automóveis particulares 0% e 18%, respectivamente!
Em resumo, numa arrumação de minha responsabilidade, a evolução, ao longo dos "déciles" das percentagens de dispêndio em necessidades é a seguinte:

84,4% - 77,7% - 73,9% - 73,7% - 68,7% - 65,8% - 61,8% - 57,3% - 51,6% e 42,9%

e a evolução das percentagens em luxos é, natural e simetricamente, a seguinte:

15,6% - 22,3% - 26,1% - 26,3% - 31,3% - 34,2% - 38,2% - 42,8% - 48,4% e 57,1%

Para completar, lembraria que 84,4% da média da despesa do 1º "décil" é inferior a 290 contos e que 57,1% da média da despesa do 10º "décil" é superior a 4.040 contos! Ou seja, a "família média" do mais elevado escalão estatístico gastaria, em luxos, 75 vezes mais do que a "família média" do mais baixo escalão estatístico gastaria nesse tipo de despesas (na relação de um mês para 6 anos e um trimestre) e 14 vezes o que esta mesma "família média" gastaria em necessidades essenciais (um mês de luxos de uns daria para mais de um ano de necessidades dos outros). E isto não é mais do que uma pálida imagem estatística...


A evolução ou tendência resultante das opções políticas

Sendo esta a realidade, ou sendo este o reflexo estatístico, por via dos "orçamentos familiares", e porque a realidade está permanentemente a mudar, importará ver em que sentido vai essa mudança. A existência de dados homólogos relativos a cinco anos antes, possibilita passar de verificações estáticas para uma aproximação de qual teria sido a evolução no período de intervalo, que é a primeira metade da década de 90.
O que choca no confronto, de imediato, é que, em cinco anos e com base nos preços de 1995, a despesa médias dos dois "déciles" mais baixos, isto é, 20% dos agregados familiares portugueses com os "orçamentos familiares" mais baixos, viram diminuídos, em absoluto, os seus orçamentos: - 2,9% no 1º "décil" e - 1,5% no 2º! O 3º "décil" manteve praticamente o mesmo nível - teria subido 0,5% - e, a partir desse escalão de orçamentos, há crescimentos, sempre a subir até aos + 15,4% do "décil" superior, onde se encontram os 10% dos agregados familiares portugueses com maiores rendimento e orçamento.
Esta evolução revela que, enquanto os mais de 300 mil agregados familiares de menores rendimentos (1º "décil") diminuíram em 10,3 contos os seus orçamentos médios, os mais de 300 mil agregados familiares de maiores rendimentos acresceram os seus orçamentos médios de 943,7 contos. Daqui decorre que a dispersão de orçamentos das "famílias", assim medida, se agravou significativamente no curto espaço de um lustro. Usando expressões mais impressivas, os mais pobres ainda mais pobres ficaram, os mais ricos ainda mais ricos passaram a ser.
Tal não acontece por acaso. É o resultado de uma política que não pode ter tréguas por parte de quem se mova por uma maior justiça social. O que nada tem a ver com igualitarismos, mas que tem a ver, sim, com a recusa de uma evolução que, em cinco anos, leva a relação entre o menor e o mais alto dos orçamentos médios, de 1 para 17,5 vezes a 1 para mais de 20 vezes, num agravamento da desigualdade social de quase 20%. O que é inaceitável como evolução ou tendência.
Ainda se poderia deixar um outro confronto, entre a parcela que representa cada "décil" da totalidade da despesa, não só comparando as percentagens de cada agrupamento nos dois períodos dos inquéritos do INE - as partes que lhe cabem da despesa total, em 1990 e em 1995...

 10º
% 901,73,14,45,67,08,510,412,917,129,3
% 951,52,84,05,36,78,410,313,117,430,5

Segundo estas percentagens, só a partir do 8º "décil", ou seja, os 30% dos agregados familiares de maior nível de despesa tiveram melhoria relativa na primeira metade da década de 90, pois os 70% de menor nível de despesa perderam sempre posição relativa, o que ilustra, por uma outra maneira, o agravamento do desequilíbrio social.
Se se cruzar esta abordagem com a já realizada em termos de repartição de rendimento, é inevitável a conclusão de que, repartindo-se o rendimento nacional por forma desfavorável aos trabalhadores, por ser crescentemente desequilibrado em favor da remuneração ao capital, os agregados de menor orçamento familiar são os dos trabalhadores e os de maior orçamento familiar são os daqueles que têm rendimentos que provêm de outras origens que não as do trabalho, particularmente os rendimentos provenientes de aplicações de capital.


O exemplo que vem do outro lado do Atlântico

Será ainda útil fazer, de novo, a ligação com a estratégia "europeia" e o recurso que a Comissão usa com o "exemplo" dos EUA. Até porque se poderia dar o caso desse "exemplo", por ser uma realidade em movimento traduzida em dados estatísticos, com particular relevo para a "repartição salarial", obrigar a corrigir algumas das observações inevitavelmente cépticas (*) que estão atrás.
Não se vai gastar muita cera com este defunto, como se diz em linguagem popular. Para poupar prosa (ou cera...) aproveita-se uma recente notícia lida no jornal francês Libération, disponível para qualquer viajante em sobrevoo da França a 13 de Março último. Nessa notícia, baseada num relatório publicado pelo maior banco alimentar dos EUA, em 1997, mais de 26 milhões de cidadãos americanos - 10% dos cidadãos do "país mais rico do mundo"! - recorreram à sopa dos pobres, aos lares e serviços alimentares de urgência, revelando que o acréscimo de pedidos de ajuda alimentar foi de 16%. Esse acréscimo, como continua a notícia, fez com que dezenas de milhar de pessoas (200 mil em Nova York) tenham visto recusado o acesso a esses centros por se ter esgotado a alimentação a dar aos que só com ela contam para matar a fome: "essas vítimas da fome são em maioria do sexo feminino (62%), são crianças (38% têm menos de 17 anos) e são idosos (16% têm mais de 65 anos)"!
Mas não é certo que, nos EUA, se observa uma saudável situação financeira, um crescimento económico significativo, um nível de investimento que permite uma taxa de desemprego que é um objectivo invejado pelos "euro-peus"? E não é também verdade que, para os excelentes resultados financeiros, económicos e sociais porque o desemprego é da área social, a flexibilidade dos salários para baixo e a redução dos custos de trabalho não salariais teriam sido factores decisivos?
Dir-se-á que sim. Di-lo o relatório da Comissão, mas deve acrescentar-se que, entre os cidadãos norte-americanos que têm de recorrer à sopa dos pobres, quase um terço não estava desempregado pois tinha, pelo menos, um emprego. Pode, por este facto, falar-se de exclusão social com (ou apesar do) emprego. E a tendência não é de curto prazo, meramente ceonjuntural. A deriva liberal começa a somar décadas.
Nos EUA, a parte do PIB dos 5% mais ricos (a metade superior do "décil" mais elevado) passou de 16,5% em 1974 para 21,1% em 1994. Em contrapartida, abaixo do limiar da pobreza, calculado estatisticamente com base em níveis de rendimentos por agregado familiar de 3 - 4 pessoas, estão 14% da população, perto dos 40 milhões. Há ainda o impressionante dado de os "muito pobres", que dispõem apenas de metade do limiar da pobreza, serem quase 15 milhões de cidadãos.
Não se trata, pois, de apenas estimar a dispersão salarial como positiva para atrair investimento e criar empregos. Ela mais parece o isco de uma "ratoeira". De uma "ratoeira" de pobreza e de exclusão social, em que os trabalhadores são alvos, para benefício e alimento da acumulação do capital financeiro transnacional.


Um simples comentário final

O que os números facultam será tão elucidativo quanto inibe comentários, dada a crueza da sua denúncia.
No entanto, é preciso afirmar, reafirmar, insistir até à exaustão, que a realidade que estes números reflectem, e de que não serão senão uma imagem, não é inevitável, fatal, resultado de dinâmicas sem alternativa. A realidade, assim esboçada, é o fruto de uma estratégia e de políticas e mecanismos que a servem. Ora, apesar, das tentativas para se impor um pensamento único, uma estratégia única, políticas únicas e instrumentos e mecanismos únicos ou com uma única utilização ao serviço de objectivos únicos de interesses únicos, apesar desse esforço em todos os registos e em todas as campanhas ditas de informação e que de propaganda são, há alternativas. Ou melhor, esta estratégia e estas políticas, são, elas sim, alternativa. E são alternativa que não serve a humanidade.
Nem é preciso sair dos Tratados que consagram, institucionalmente, a construção desta União Europeia, para encontrar princípios e objectivos que são contrariados pelas opções (de classe) que, na prática, colocam no terreno e aceleram "construções europeias" que servem outros princípios e objectivos que, também estando nos Tratados, são, na prática, adoptados como prioritários e exclusivistas.
O princípio da solidariedade entre-Estados, sem prejuízo das suas respectivas soberanias, o objectivo da coesão económica e social, a prática de uma cooperação e de um concerto de políticas que, sendo nacionais, têm de se realizar no quadro de um mundo cada vez mais internacionalizado e interdependente, configuram uma alternativa. Verdadeira, viável. Ao serviço dos povos. Que só estes poderão e serão capazes de impor!


(*) - Por mero (e feliz) acaso, enquanto escrevia este artigo, folheei um texto de Marx (a dissertação da sua tese de doutoramento - Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epícuro) e encontrei esta "pérola" que ajuda a suportar a mal-intencionada etiqueta de euro-cépticos que nos colocaram: "... o cepticismo constitui o mal necessário que se teria oposto aos dogmatismos epicurista e estoicista". Substituam-se, por favor, os dogmatismos epicurista e estoicista pelo dogmatismo das forças e partidos social-democrata e democrata-cristão e teremos muita coisa explicada... embora seja preciso chegar às posições de classe que estão por detrás desses dogmatismos.


«O Militante» Nº 235 - Junho / Agosto - 1998