O «Festival dos Cem Dias»
Ruben de Carvalho
Membro do Comité Central
O conceito de realizar um conjunto de
espectáculos em Lisboa nos 100 dias anteriores à abertura da
EXPO 98 tem as suas origens essencialmente na experiência da
Exposição de Sevilha.
Analisando o programa do certame realizado na capital andaluza,
verificou-se que dele faziam parte numerosos espectáculos da
mais variada índole (clássicos, populares, bailado, música,
teatro, etc.), em geral com o elevado nível que a dimensão do
evento justificava e desenvolvendo-se dentro do próprio
recinto da exposição e durante o seu período de funcionamento.
Estes dois últimos aspectos vieram, porém, a dar origem a
resultados frequentemente amargos para promotores e artistas. Na
verdade, verificou-se que a esmagadora maioria do público, uma
vez dentro do recinto, se interessava muito mais por o fruir em
movimento, visitando exposições, utilizando restaurantes ou
simplesmente passeando e apreciando os aspectos urbanísticos e
arquitectónicos e, pese a qualidade dos espectáculos bem como
as excelentes condições técnicas criadas nos respectivos
recintos, as audiências médias foram, em geral, desoladoramente
baixas. O visitante da EXPO não se dispunha a ficar uma ou duas
horas fechado num qualquer recinto (por vezes com bilhetes pagos
além da entrada) para assistir a um espectáculo que, em última
instância, admitia poder vir a usufruir noutra altura. Na EXPO,
o que lhe interessava essencialmente era - a EXPO!
Esta experiência veio acrescentar-se a reflexões e estudos de
maior âmbito que nos últimos anos têm sido dedicados à
intervenção cultural, nomeadamente nas grandes cidades, e ao
próprio conceito de festival que durante várias
décadas constituiu um factor importante de dinamização da
criação artística e do gerar de públicos.
Cem dias antes
Na sua origem, o «Festival dos Cem Dias» comporta assim uma
solução de contornos positivos: considerando que uma
realização como a EXPO não pode prescindir de uma
significativa componente de mostra de artes performativas e de
espectáculo (seja em apoio de produção nacional, seja
proporcionando aos públicos locais produções estrangeiras),
optou-se por anteceder essa mostra. Evitava-se o que
acabaria por ser um desperdício de apresentações com fracas
audiências durante o funcionamento da própria EXPO e
promovia-se um conjunto estruturado de eventos que,
simultaneamente, supriam aquela componente programática da
realização e serviam de promoção no período de três meses
imediatamente anterior ao seu início.
Para o período de funcionamento do certame, apontou-se para
realizações de recorte mais festivo (cortejos, corsos, etc.) e
espectáculos de carácter mais popular ou individualizadamente
ligados a presenças internacionais («dia de» determinado
país).
É evidente que, à partida, esta solução pode apresentar um
relativo inconveniente: a programação que preenche o «Festival
dos Cem Dias» acaba por se dirigir quase exclusivamente ao
público nacional, não constituindo um factor de valorização e
atracção do programa da EXPO face ao desejado afluxo
turístico. Trata-se, contudo, de um falso problema: para além
da já referida situação verificada em Sevilha, a verdade é
que a componente mais vistosa dos «Cem Dias» (as presenças
estrangeiras) será exactamente aquela que acaba por não
constituir grande atractivo para o visitante não-português: nas
suas terras, eles terão possibilidades de, mais tarde ou mais
cedo, ter as mesmas ofertas, se entretanto não as tiveram mesmo
já.
Nestas circunstâncias, o que resta discutir será a
programação do Festival, seja da óptica deste tipo de
realizações de concentração de eventos, seja na selecção
global efectuada.
É evidente que o «Festival dos Cem Dias», adoptando embora a
designação de Festival, não corresponde ao figurino de
homogeneidade temática habitualmente associada à designação:
não se trata de um festival de cinema, ou de rock,
ou de teatro ou de música barroca. No fundo, o
que permite a designação será tão só o concentrar, num
período relativamente curto de tempo, um conjunto extremamente
variado de realizações culturais.
Os problemas dos festivais
A experiência indica que este tipo de acção concentrada tem
vindo a enfrentar crescentes
reservas por parte do público e da crítica, até na medida em
que esta concentração é
relativa: existindo na realidade, o prazo é excessivamente
dilatado, o que gera dispersão e
um excesso de oferta incompatível com os recursos económicos do
público.
Tratando-se de festivais não temáticos e nos quais, pelo
contrário, se procura atingir o maior
número possível de áreas, o resultado é frequentemente pouco
satisfatório para os públicos
(e críticas) especializados.
Note-se, por exemplo, o que sucede com o jazz. Críticos e fans
preferem o fim de semana
de Matosinhos ou do Seixal com uma dura concentração de
espectáculos e nomes e
acabam a considerar-se «preteridos» pelas três ou quatro
presenças de jazz em realizações
como os «Cem Dias». E o mesmo se pode dizer de áreas como o
teatro, a música clássica,
etc..
Acresce que, nomeadamente em Portugal, há uma significativa
faixa de público culturalmente ecléctica e que reage
negativamente à simultaneidade de espectáculos que, embora de
carácter bem diverso, igualmente lhe interessariam.
O que se escreveu incide essencialmente sobre a componente de
espectáculos, mas (correctamente aliás) o «Festival dos Cem
Dias» incluiu um sugestivo programa de exposições, algumas de
real interesse e qualidade, correspondendo ao conceito
multi-media e de multi-culturalidade que hoje preside a todo este
tipo de eventos. No seu todo, revelou-se, por outro lado, um
empenho na participação de criadores portugueses que é de
sublinhar.
Há ainda que referir que a sucessão de eventos estruturados nos
últimos anos em Lisboa (FIT, Festas da Cidade, LISBOA 94, EXPO)
tem vindo a constituir factor de valorização de equipamentos
culturais já existentes (museus, património vários), mas
sobretudo de uma rápida apropriação pelo público de salas e
recintos (CCB, Culturgest) que, até pelos seus traços
arquitectónicos, quebraram o «monopólio» da Gulbenkian, com
vantagens mesmo em termos de classe. A frequência do complexo de
Belém aos fins de semana e durante a semana tem características
sociais e etárias bem diferentes do que se verificava há poucas
dezenas de anos.
A polémica sobre as escolhas, bem como sobre os orçamentos é
tão antiga e terá tantos mais anos quantos aqueles que tem a
cultura e a sua fruição. Haverá sempre críticas e reservas,
mas a consideração lúcida é em períodos mais longos que tem
de ditar os grandes julgamentos. A dialéctica entre a
intervenção oficial no campo da cultura e o funcionamento do
mercado cultural é realidade em mutação quotidiana, mas, pesem
os problemas (que seguramente não o serão certamente apenas da
cultura, mas também da própria realidade do País no seu todo)
o que parece não oferecer dúvidas é que a oferta cultural em
Portugal tem conhecido percursos positivos.