A Segurança Social no debate político-ideológico
João Araújo
Membro da Comissão Nacional do PCP para as Questões da Segurança
Social
O Partido Comunista Português desde sempre
acompanhou os problemas da segurança social, procurando um amplo
debate, entre os seus militantes e os trabalhadores em geral,
para, assim, tomar uma posição, cada vez mais consolidada, em
torno da defesa dos direitos e das expectativas dos
trabalhadores.
Reconheceu-se, no entanto, em certos momentos cruciais desse
debate, a necessidade de um conhecimento mais profundo sobre os
elementos objectivos de apreciação da problemática da segurança
social, porque é indispensável analisar bem os problemas sem
cair na abordagem tecnocrática que leva o cidadão comum a
sentir-se incapaz de os perceber.
O debate político-ideológico em torno da Segurança Social está
em marcha e, por isso, continua a ser necessário o
aprofundamento de opiniões acerca do futuro da sociedade
portuguesa e da Segurança Social, para nele participarmos activa
e esclarecidamente.
A visão economicista que sobressai de algumas posições
subestima as providências necessárias ao desenvolvimento e
aperfeiçoamento do actual sistema de segurança social que,
apesar de defeitos e insuficiências que se devem apontar, tem
potencialidades sustentadas por concepções técnicas
socialmente avançadas.
Para o PCP, as dificuldades que derivam da acumulação, durante
muitos anos, de situações de falta ou reduzida protecção
social que precederam o 25 de Abril e as insuficiências do
sistema de segurança social português (cuja criação efectiva,
por Lei aprovada na Assembleia da República, ocorreu em 1984) não
desvalorizam as inegáveis realizações que foram concretizadas
e muito menos o imenso património social que foi erguido com
o trabalho e com o sacrifício de várias gerações de
trabalhadores.
A história da segurança social
O primeiro sistema de previdência social português foi criado há
63 anos, concretamente em 1935, ao qual, no início dos anos 60,
foi reconhecida insuficiente expansão, em matéria de aplicação
pessoal (as pessoas que abrangia); fraca cobertura dos riscos
sociais, em matéria de aplicação material; e incapacidade do
sistema de financiamento (com base na técnica de capitalização
pura) para serem melhorados os valores das prestações e ser
garantido o cumprimento das responsabilidades assumidas.
Em 1962 foi levada a efeito a reforma daquele sistema, que,
apesar de todas as críticas que podem ser feitas, designadamente
no que respeita ao tipo de gestão que foi seguido, levou à criação
do segundo sistema de previdência social português, com o qual
se criavam condições para uma generalização do âmbito
pessoal, se enquadravam as eventualidades tradicionalmente
cobertas pelos sistemas de segurança social (faltava a do
acidente de trabalho, que ainda continua fora do sistema de
segurança social; a de desemprego, embora prevista, só veio a
ser regulamentada em 1974), que veio a manter-se, na prática, até
Abril de 74.
Pode dizer-se que este sistema se manteve, na prática, só até
Abril de 74, porque, de então até 1984 (ano em que ocorreu a
criação legal do primeiro sistema de segurança social português),
a necessidade de satisfazer as exigências do movimento popular
que se gerou, de eliminar graves insuficiências de protecção
social, de responder a imperativos constitucionais e de remediar
efeitos de atrasos, lacunas e distorções acumulados do passado,
foi desencadeado um processo de evolução e reformulação
legislativas que determinou medidas que já pouco tinham a ver
com o sistema de previdência social e se integravam num futuro
sistema de segurança social (foi um período de transição da
Previdência Social para a Segurança Social).
São desse período a criação da pensão social
(1974), o subsídio de Natal para os
pensionistas (1974), o subsídio de desemprego (1975), o
suplemento de grande inválido (1975),
o complemento por cônjuge a cargo (1975), o
regime dos independentes (1977), o regime não
contributivo (1980) e várias medidas de melhoria para os trabalhadores
do serviço doméstico (1978), do abono de família
e prestações complementares (1977), da maternidade
(1976) e outros.
Em 1984, a Lei da Segurança Social (Lei n.º 28/84, de
14/08) reafirma o direito à Segurança Social, que é tornado
efectivo pelo sistema de segurança social e exercido nos termos
estabelecidos na Constituição, e fixa os princípios do sistema
- da universalidade, da unidade, da igualdade, da eficácia, da
descentralização, da garantia judiciária, da solidariedade e
da participação.
Nesta Lei são também apresentadas as disposições gerais dos
regimes de segurança social, da acção social, das garantias e
contencioso, do financiamento, da organização e participação
e, ainda, um capítulo dedicado às iniciativas particulares
(instituições qparticulares de solidariedade social e esquemas
de prestações complementares).
Os trabalhadores é que têm sustentado fundamentalmente a
Segurança Social
A história da nossa Segurança Social oferece referências úteis
às reflexões que devemos fazer para avaliar se o que vai
acontecendo, ou vai sendo proposto para que aconteça, é uma
evolução positiva ou negativa.
Ressalta, por exemplo, que a evolução da protecção social,
que se operou imediatamente após 25 de Abril de 1974, levou a um
considerável crescimento do número de pensionistas e a uma
melhoria dos valores das pensões, em resultado de largas faixas
da população estarem excluídas dos regimes de previdência e
de uma forte carga de carências sociais herdadas do passado, que
exigiu um grande esforço financeiro, a que o sistema respondeu,
apesar de não terem sido tomadas as medidas necessárias para
evitar a sua descapitalização.
Mas a Previdência Social foi sustentada financeiramente pelos
trabalhadores, essencialmente por trabalhadores por conta de
outrem (embora o regime financeiro enuncie contribuições a
cargo dos trabalhadores e das entidades patronais, o valor das
contribuições para a segurança social é sempre deduzido na
remuneração do trabalho) e também o sistema de segurança
social tem sido sustentado, principalmente, pelas contribuições
do regime geral (dos trabalhadores).
No primeiro sistema de previdência foi usada a técnica da
capitalização pura, no segundo (reforma de 1962) foi usada a técnica
da repartição atenuada (capitalização atenuada) e desde 77
que o método de equilíbrio financeiro tem sido o de repartição.
A Lei n.º 28/84, ao enunciar as fontes de financiamento, refere,
além das contribuições dos trabalhadores e das contribuições
das entidades empregadoras, as transferências do Estado.
Nos termos desta Lei e do anterior decreto-lei n.º 461/75, de
25/08, os encargos relativos ao regime não contributivo, à acção
social e ao regime especial das actividades agrícolas deveriam
ser suportados por transferências do Estado.
No entanto, estas transferências do Estado ficaram, ao longo dos
anos, muito aquém dos valores devidos, gerando uma dívida do
Estado à Segurança Social, que a preços correntes de cada ano,
entre 1975 e 1995, ultrapassou os 1 400 milhões de contos.
Foi, portanto, o esforço contributivo dos trabalhadores que,
também, sustentou financeiramente grande parte dos encargos
relativos a esquemas de protecção social que deveriam ter sido
suportados, no âmbito duma responsabilidade da colectividade
(solidariedade nacional), por transferências do Estado.
O financiamento dos sistemas públicos
Cabe aqui colocar uma questão central do debate político-ideológico
que está em curso em Portugal e na Europa - a questão do
financiamento dos sistemas públicos de segurança social.
A falta de rigor nas fronteiras financeiras dos regimes e
sub-regimes que constituem o sistema de segurança social português
não tem permitido reconhecer claramente a verdadeira afectação
dos fluxos financeiros, o que deu oportunidade a que, com base
nalguns equívocos, fossem apresentadas análises alarmistas da
situação financeira da Segurança Social.
E, com as ideias neoliberais a assumirem o papel de verdades
a que todos temos que nos submeter, logo apareceram as
teses sobre reformas dos sistemas de segurança social que
apostam na transferência para o mercado de algumas modalidades
de segurança social, designadamente de pensões, promovendo
produtos como os planos de pensões, os planos poupança reforma,
as contas poupança reforma e outros produtos financeiros.
Com variantes de modalidade e grau de concretização, o modelo
neoliberal vem sendo defendido por figuras ligadas aos
bancos, seguradoras, sociedades gestoras de fundos de pensões,
ao PP, ao PSD, ao PS e ao Governo (o Governo vai apresentar à
Assembleia da República uma proposta para a introdução de um
plafond para os valores das contribuições e das
pensões).
Os arautos do neoliberalismo, no quadro da teoria
dos três pilares, propõem um sistema público, limitado a
reduzir a miséria, de dimensão modesta para deixar espaço aos
sistemas privados, um sistema privado para a gestão de poupanças
obrigatórias e outro sistema privado para a gestão das poupanças
voluntárias.
A discussão político-ideológica sobre o financiamento dos
sistemas públicos de segurança social acaba por, no essencial,
confrontar a posição dos que procuram encontrar fórmulas de
transferir meios financeiros do sistema público para o mercado e
os que se lhes opõem.
Mas também as questões como a da recuperação das dívidas à
segurança social, da adequação das fontes de financiamento à
natureza das prestações e do alargamento e aperfeiçoamento do
regime financeiro do sistema, embora careçam de abordagens técnicas,
não dispensam posições políticas claras e firmes.
Felizmente que se vêm juntando aos comunistas muitos outros, com
referenciais políticos e ideológicos diferentes, que vêem que
o modelo neoliberal promete muito, mas dá pouco
(menos direitos, menos garantias, isto é menos protecção
social que os sistemas públicos) e, por isso, alinham na defesa
do direito à segurança social, do aumento das suas garantias e
da sua concretização num nível mais elevado, e preferem
medidas que salvaguardem, reforcem e aperfeiçoem o sistema público.
Em Janeiro deste ano foi apresentada a versão final do Livro
Branco da Segurança Social, isto é, um documento constituído
pelo Relatório da respectiva Comissão incumbida do estudo e por
um conjunto de Declarações Finais dos seus membros, que revelam
divergências de natureza ideológica e técnica.
É evidente que a questão da situação financeira do sistema de
segurança social público foi a mais tratada naquela Comissão,
até porque eram pretendidas propostas de medidas que garantam
a sustentabilidade da Segurança Social, entre as quais a
da introdução do chamado plafonamento e da segunda
pensão obrigatória (o que merece o comentário: - a criação
da Comissão não terá sido uma tentativa de impor as teses
neoliberais do Banco Mundial ?).
Os resultados do estudo de alguns dos cenários construídos
quanto a futuras situações financeiras do actual sistema de
segurança social revelaram que estes foram demasiado
pessimistas.
Pelo que é apresentado no Relatório, a Comissão acabou por
identificar a situação financeira real e prospectiva da Segurança
Social e concluir que, afinal, está de boa saúde.
Também em relação ao plafonamento e à segunda
pensão se pode dizer que a Comissão não conseguiu
ultrapassar o problema de que a sua implementação não
contribuirá para um reequilíbrio financeiro do sistema, criando
ainda graves dificuldades financeiras adicionais no médio prazo.
Algumas das questões levantadas no Relatório e,
particularmente, por membros da Comissão são importantes como
referências, para reflectirmos sobre a reforma do sistema, que
queremos que seja uma reforma de-mocrática do sistema de segurança
social.
Até houve na Comissão quem suscitasse questões que nos são
caras, como são, entre outras, a de uma reforma da Segurança
Social não poder arriscar-se a aumentar as desigualdades sociais,
a protecção social não poder deixar de ser um assunto do
Estado, para passar a ser mais um assunto dos indivíduos e do
mercado e, também, posições de discordância
quanto à introdução do plafonamento das contribuições.
Hoje, como sempre, sente-se a aspiração natural das pessoas
quererem ter uma melhor segurança social, por isso são
justificadas as preocupações quanto às reformas da Segurança
Social e os receios de que possa vir a concretizar-se uma política
de transformações privatizadoras do sistema e redutora de
direitos.
O sentido das reformas que têm sido procuradas noutros países
europeus é o da diminuição das responsabilidades de longo
prazo, da generalização de sistemas de previdência em regime
de capitalização obrigatória, de desenvolvimento da previdência
privada e de sistemas de reformas progressivas, mas, pelo menos
ao nível dos trabalhadores, a recusa em aceitá-las é
manifesta.
Os problemas decorrentes das alterações que se revelam na vida
das sociedades, como acontece na sociedade portuguesa, conduzem
sem dúvida à necessidade de reformas no sistema de segurança
social, mas é quanto à natureza e objectivos dessas reformas
que as divergências são grandes.
Numa época marcada pela instabilidade social e por profundas
modificações na forma de vida das populações, a Segurança
Social constitui um instrumento insubstituível de justiça
social e de solidariedade, desempenhando um papel decisivo no
processo de integração e participação na vida da sociedade,
designadamente nas situações de doença, invalidez, velhice,
desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição
de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho.
A concretização do direito à Segurança Social gera condições
de progresso e de desenvolvimento, por isso o sentido de uma
boa reforma da Segurança Social só pode ser o de defender,
reforçar e aperfeiçoar o direito à Segurança Social e o
sistema público que o efectiva e garante.
Os comunistas continuam dispostos e determinados a intervir
activa e convergentemente com quantos se assumem empenhados em
defender, reforçar e aperfeiçoar o direito à segurança social
e sistema público que o torna efectivo.