O saber não é uma mercadoria
Ângelo Alves
Membro da Comissão Política da JCP
O mundo encontra-se num estado
de desenvolvimento em que as tecnologias da informação divulgam
pelos quatro cantos do mundo todas as informações possíveis e
imaginárias, e portanto também o saber, mas este não deve ser
uma mercadoria.
Apesar de o conhecimento científico ter, cada vez mais, um papel
directo nos processos produtivos, o saber nunca deve ser
considerado uma mercadoria sob pena de esse saber e a sua
transmissão ficar apenas e unicamente na mão de alguns - os
detentores do capital.
Este pequeno deambular pelas questões ideológicas relacionadas
com a transmissão do conhecimento, da cultura e dos valores, em
suma da educação, vem a propósito das já sobejamente
conhecidas e discutidas propinas.
Num momento em que os estudantes do Ensino Superior e o ministro
da Educação continuam com o machado de guerra desenterrado
relativamente ao Ensino Superior, mais concretamente em relação
ao seu financiamento, é importante que se reflicta sobre o
porquê de uma luta que movimenta e mobiliza largos milhares de
estudantes, que já conta com seis anos de existência, e que
teve no passado dia 25 de Março um dos seus pontos mais altos.
Com efeito, a manifestação nacional frente à Assembleia da
República, que contou com a participação de mais de 10 000
estudantes oriundos de vários pontos do País, foi uma das
maiores de sempre do Ensino Superior, apesar das várias
tentativas do ministro para desvalorizar a importância das
reivindicações estudantis.
Logo quando explodiu a contestação à Lei de Financiamento rosa
o ministro tentou reduzir a contestação a um grupelho de
perigosos agitadores que não querem é pagar propinas.
Confrontado com a realidade nua e dura (para ele, claro) dos
números, altera a argumentação e o grupelho de agitadores
passa a estranha aliança entre JSD, FENPROF e PCP.
O ridículo destas afirmações foi evidente e aprofundou-se no
dia 25 de Março. A autêntica invasão das ruas de Lisboa, em
diferentes pontos da cidade, foi suficiente para mostrar que os
milhares de estudantes que não concordam com esta lei e com a
política do Governo não o fazem por interesses partidários,
mas sim pela defesa do Ensino Superior Público.
Mas a concentração, frente à Assembleia, onde, em ambiente de
festa, se encontraram finalmente os dois principais desfiles de
estudantes, demonstrou não só a força inerente aos números e
à dedicação, mas também a consciência política, a alegria e
a criatividade das massas estudantis. Através de palavras de
ordem ou de encenações com mimos, entre outras formas de
actuação, os estudantes provaram que não contestam apenas as
propinas mas também o estudante elegível, a falta de acção
social escolar, o desinvestimento, etc.. Provaram que sabem
porque é que fazem manifestações e provaram, ainda, que as
sabem fazer respeitando os valores da democracia e do respeito
pelos outros.
É certo que os estudantes, sendo jovens na sua esmagadora
maioria, se empenham, de uma forma especialmente dedicada, nas
lutas que travam. A história contemporânea do nosso País assim
o confirma. Mas não chegaria a fogosidade da juventude para
justificar o empenho que os estudantes têm em desenvolver a luta
contra mais uma lei de financiamento do Ensino Superior injusta.
PS e PSD: a mesma visão
A questão de fundo que norteia a consciência colectiva e
crítica dos estudantes do Ensino Superior é a percepção (mais
ou menos consciente e política) da possibilidade da existência
de outras formas de abordagem ao tema do financiamento do Ensino
Superior que possam resolver o estado grave em que se encontra o
nosso sistema educativo.
Ao analisarmos, numa pequena e rápida retrospectiva
histórica, os desenvolvimentos da luta contra as
propinas, facilmente chegamos à conclusão de que os estudantes
rejeitaram os diferentes embrulhos que continham uma
mesma intenção - a progressiva privatização do sistema de
Ensino Superior Público em Portugal através da progressiva
desresponsabilização do Estado, acompanhada do aumento da
comparticipação dos estudantes e das suas famílias no seu
financiamento.
A realidade mostra que, apesar de o Governo e o Ministério da
Educação terem mudado de responsáveis e de cor, os
pressupostos que conduziram à adopção de diferentes esquemas
de financiamento mantêm-se. Daqui se conclui rapidamente que se
partidos diferentes defendem princípios iguais
então partilham ideologicamente da mesma visão sobre a
educação.
Com efeito, tal é agora claro. Existe a mesma visão ideológica
por parte do PSD e do PS relativamente à Educação. Esta
ideologia comum assenta numa base de concepção da Educação de
inspiração neoliberal e que entende o saber como a já referida
mercadoria.
O que distingiu a acção do PS e do PSD na tentativa de
implementação destes valores foi sobretudo a arrogância e a
pressa que o PSD teve em aproximar do custo real a
comparticipação do estudante e da sua família.
Já no caso do PS a estratégia é outra. Tenta implementar
primeiro e cimentar bem, a ideia de que os estudantes do Ensino
Superior são uns privilegiados, que 56.700$ é muito pouco
dinheiro por dia e que é muito natural que esses privilegiados
tenham que pagar um serviço que o Estado lhes presta. Numa
segunda fase, tratará de proceder à aproximação do valor da
propina ao custo real de um estudante do Ensino Superior e, aí
sim, vitória! - está completado o processo de privatização do
Ensino Superior Público em Portugal.
Será que é isto que o ministro quis dizer quando na manhã do
dia 25 de Março (dia da manifestação nacional de estudantes)
irresponsavelmente fez futurologia barata e afirmou que, num
futuro não muito longo, ainda havia de ver os estudantes na rua
a lutar por esta lei de financiamento? É bom que esclareça.
Mas se esta abordagem não chegasse para demonstrar a justeza da
conclusão óbvia - PS igual a PSD -, bastaria olhar para os
orçamentos de Estado e ver quando e quanto foram reduzidos.
Erros e injustiças
Foi precisamente a partir do momento em que se começou a falar
de propinas que os orçamentos baixaram. Aí foi clara e
contundente a crítica dos estudantes a estes cortes feitos na
altura pelo PSD.
Agora o PS diz que as propinas não podem servir para o
funcionamento das instituições, mas sim para o aumento da
qualidade. Como é isso possível se o orçamento que marca o
aparecimento da propina rosa vem cortado em 10 milhões de contos
e as escolas têm orçamentos em que, na média, 90% das verbas
são para pagar salários?
Claro que estas medidas não contribuem para o aumento da
qualidade mas sim para a sua diminuição. O objectivo é outro:
mantendo o mesmo nível de qualidade, pôr os estudantes a pagar
parte do funcionamento das escolas e responsabilizá-los pelos
elevados níveis de insucesso escolar que decorrem dessa falta de
qualidade, implementando o conceito de estudante elegível.
Mas, se é verdade que estes objectivos ainda não foram
alcançados pela direita (PS, PSD, PP) devido à heróica
resistência das massas estudantis, não menos verdade é que as
políticas que têm vindo a ser seguidas trouxeram já muitas
maleitas. São disso exemplo o crescimento indiscriminado do
Ensino Superior Particular e Cooperativo e a composição
económica e social da população estudantil, recentemente
divulgada no inquérito sócio-económico aos estudantes do
Ensino Superior, da responsabilidade do Conselho Nacional para a
Acção Social no Ensino Superior (CNASES).
Conclui este inquérito que não são os estudantes com um maior
nível sócio-económico que frequentam maioritariamente o Ensino
privado, mas sim os estudantes com maiores dificuldades e que
têm que suportar por mês propinas na ordem dos 40 000$00. Esta
é uma das provas cabais de que em Portugal as políticas
seguidas pelos sucessivos Ministérios da Educação estão a ter
como resultado o aprofundamento das injustiças sociais e a
elitização do ensino público.
Mas as injustiças e erros não se ficam por aqui. Ao mesmo tempo
que se impõem dificuldades de ordem administrativa (numerus
clausus) e económica (propinas) aos estudantes que acabam o
secundário e desejam prosseguir os seus estudos, florescem os
estabelecimentos privados de Ensino Superior, que têm como
objectivo principal o lucro.
Ora, não havendo quaisquer estratégias definidas de
desenvolvimento do Ensino Superior que tenham em conta as
necessidades de desenvolvimento do País, assiste-se a um
crescimento do sistema no seu todo, completamente caótico. Por
um lado os magnatas da educação investem em cursos baratos (por
ex.: Direito, Línguas, Serviço Social), havendo um crescimento
exponencial das vagas para estes cursos a nível nacional. Por
outro o Estado prossegue numa linha desresponsabilizadora das
suas competências e não cria condições que permitam a
formação de quadros superiores noutros campos, como é o caso
de medicina que, recentemente, veio a público com a
possibilidade de invasão de médicos espanhóis no
nosso País.
Esta situação arrasta consigo duas consequências inevitáveis
e graves no plano social:
1ª - Temos um sistema de Ensino Superior
completamente descontrolado no seu crescimento e totalmente
descoordenado das necessidades de desenvolvimento do País.
2ª - Existem já, neste momento, grandes faixas
de licenciados desempregados no nosso País porque ingressaram em
cursos que continuam a crescer em número de vagas, apesar de
terem os seus canais de saídas profissionais completamente
entupidos. São efectivamente os valores do lucro fácil e da
mercantilização do saber a funcionar e a prejudicar o País.
Toda esta situação é a prova de que as famigeradas propinas
são apenas a ponta de um grande iceberg e que têm
muitos mais objectivos por trás do que unicamente o de pôr os
estudantes e suas famílias a pagar um segundo imposto.
Mercantilizar o saber
A privatização do sistema público de Ensino Superior traz
consigo modos e regras de funcionamento das instituições e da
própria sociedade gravíssimos. Senão vejamos, por exemplo,
alguns dos princípios que esta linha de orientação põe por
terra:
A educação não é encarada como um investimento da sociedade
em si própria e já não se assume como motor do desenvolvimento
de um país, pois já não é o Estado que define as prioridades
nem aposta no desenvolvimento do sistema mas sim as contas feitas
para retirar mais lucro das instituições.
Num Estado de direito como o nosso, em que estão consagrados na
Constituição direitos liberdades e garantias, a Educação em
vez de se tornar cada vez mais num direito essencial
transforma-se num luxo que só alguns poderão pagar. Assim, os
estudantes são os clientes do serviço (leia-se
educação) que alguns grupos lhes prestam.
Por último, e como consequência das duas anteriores
conclusões, o saber e o conhecimento tornam-se mercadorias que
se compram em supermercados que se chamam por acaso escolas de
Ensino Superior.
Por outro lado, temos as instituições de Ensino Superior -
pólos por excelência de saber de cultura e de formação humana
e cívica.
Ora, com a privatização do Ensino Superior, as próprias
instituições serão obrigadas a abandonar certo tipo de
princípios que norteiam o processo de ensino e investigação.
Abandono esse pressionado unicamente por razões de ordem
administrativa e financeira. Perde-se, assim, o que de mais rico
tem o sistema de Ensino Superior. A capacidade de ao mesmo tempo
ser um espaço de partilha de conhecimentos e seu aprofundamento
e de ser, por definição, uma verdadeira escola dos valores da
democracia. É esta componente importantíssima de formação
humana que as instituições devem ter (e que a lei da autonomia
tenta preservar) que se está a pôr em causa com a tentativa de
privatização do Ensino Superior.
São estas as questões que ficam quando se pensa a fundo nas
propinas. A estes pressupostos, que pervertem a função social
do Ensino Superior, a JCP diz não e portanto diz não à face
mais visível desta política - as propinas.
Quando os comunistas assumiram a luta em defesa do Ensino
Superior público também como sua, assumiram perante o povo
português um compromisso de extrema importância para a
sociedade: não permitir que se deturpe o sistema educativo
português, lutando para que este seja cada vez mais um motor do
desenvolvimento económico, social e cultural, garantindo, ao
mesmo tempo, que este seja, naturalmente (através da sua
função social), um garante do crescimento harmonioso da
sociedade em toda a sua dimensão e da igualdade de oportunidades
do povo português.
Isto tudo porque não queremos deparar um dia com uma situação
limite como a que descrevi no primeiro parágrafo.
A História demonstra que o saber nunca foi, não é e não pode
vir a ser uma mercadoria que é vendida por alguns e adquirida
por outros. É isto que significa gritar não às propinas.
Afinal uma palavra tão pequena e que significa tanto de mal para
a nossa sociedade.
Mas estamos cá é para lutar e vamos continuar a fazê-lo,
cientes da razão que nos acompanha e que consubstancia a nossa
força.