Eles têm o direito de saber
Este trabalho tem como objectivo principal dar
resposta às interrogações sobre a minha vida e actividade
política, sobre as «dúvidas e crenças mais profundas», sobre
«as prioridades da vida», sobre a opção de luta por um ideal
que condicionou de tal modo a vida familiar que fez com que «a
nossa família ficasse dispersa», nas palavras contidas na carta
do meu filho José Serra, que me foi dirigida no dia em que
completei 74 anos e que se reproduz a seguir.
Aceitei o desafio, reconhecendo que essa minha opção teve
profundas consequências, não só na minha vida e da Laura, que
sempre me acompanhou com muita dedicação e carinho, para além
da partilha dos mesmos ideais de luta, mas teve principalmente
consequências na vida dos nossos filhos. Basta dizer que só
passado algum tempo após o 25 de Abril de 1974 foi possível
reuni-los todos à nossa volta.
É preciso frisar que eu e a minha companheira, em virtude da
actividade política em que nos envolvemos como militantes
comunistas, fomos forçados a passar à clandestinidade para
evitarmos a prisão e podermos continuar a luta pelos ideais que
decidimos abraçar - a luta contra a tirania, a exploração e
opressão da ditadura fascista de Salazar, a luta pela
construção de uma sociedade liberta da exploração do homem
pelo homem, a luta pelo socialismo e o comunismo.
Fizemo-lo desde muito jovens, logo após constituir família e
já depois do nascimento da nossa primeira filha. Foi uma opção
assumida voluntária e responsavelmente de que não estamos
arrependidos e que repetiríamos se fosse caso disso.
Foram 27 longos anos da mais rigorosa clandestinidade,
entrecortados com várias prisões, fugas e longas separações.
Foi em tais condições, sem vida familiar estável, que foram
nascendo e crescendo os nossos filhos, separados frequentemente
de nós por razões de segurança e, sobretudo, por exigência
das rigorosas condições e regras conspirativas da luta
clandestina.
Está por fazer o balanço do que foi para eles esses anos de
vida, privados do carinho e apoio dos seus pais.
Está por fazer o balanço do que significou a vida clandestina,
mesmo para quem nunca esteve preso, com a privação de uma vida
familiar normal, à luz dos padrões da nossa sociedade, com a
privação do convívio com familiares e amigos, com a privação
de um simples espectáculo e até a restrição, imposta por
razões de segurança, de frequentar um qualquer lugar público
mais concorrido, assim como o condicionamento, pelas mesmas
razões, da utilização de transportes colectivos.
Tudo, naquela época, estava sob rigorosa vigilância e controlo
policial.
Vulgar, no regime fascista, era a prisão de um qualquer cidadão
sob a simples suspeita de hostilizar o Regime, com a violenta
separação dos familiares por tempo indeterminado, à sombra das
celeradas «medidas de segurança» aplicadas pelos sinistros
«Tribunais Plenários» com o pretexto de perigosidade para a
segurança do Estado fascista.
Muitos milhares de portugueses honestos, homens e mulheres, foram
assim sujeitos às maiores violências e torturas morais e
físicas simplesmente por amarem a Liberdade e insistirem no
direito de lutar por ela.
Neste quadro, com um distanciamento grande no tempo e após
madura reflexão, cheguei à conclusão de que os meus filhos,
assim como os filhos e netos deles, têm direito ao conhecimento
das motivações que determinaram e condicionaram as suas vidas e
o seu futuro. Pelo nosso lado, sentimos o indeclinável dever de
lhes facultar esse conhecimento.
Tornar público este depoimento pareceu-nos também oportuno e
útil para o esclarecimento das camadas da juventude que ascendem
à idade adulta, necessariamente interessadas no conhecimento da
«coisa pública».
Contribuir para lhes dar a conhecer a forma como, sem qualquer
interesse material, muito pelo contrário, abandonando
frequentemente cómodas situações materiais de emprego e
familiares, dezenas de milhares de homens e mulheres, militantes
comunistas e outros democratas, arriscaram a liberdade e a
própria vida para restituir ao povo português a dignidade de
viver em Liberdade e em Democracia.
(...)
Este esclarecimento público é tanto mais necessário quanto é
certo que se assiste na hora actual, manipulando uma opinião
pública desorientada e desinformada sobre muitos aspectos da
nossa vida política, a uma campanha de aviltamento da actividade
política democrática, por parte dos vários beneficiários e
herdeiros do regime fascista, os quais, de forma aberta ou
disfarçada, procedem a descaradas operações de branqueamento
daquele nefasto regime.
Ao sabor desta campanha, desfrutando frequentemente de apoio nada
inocente de alguns dos principais meios de comunicação social,
assiste-se com frequência à perversão, distorção e
denegrimento, por parte de certos políticos-politiqueiros, dos
valores e comportamentos verdadeiramente democráticos, em
benefício do espectáculo político mediático, demagógico e
populista.
Que este depoimento venha a contribuir para a separação das
águas, para que mais facilmente se possa distinguir o que em
termos políticos é verdadeiro ou falso, é também o nosso
objectivo.
Fazemo-lo pelos nossos filhos, pelos nossos netos e pela nossa
juventude.
* Este texto constitui, quase completamente, a «Explicação
necessária» que serve de introdução ao livro de Jaime Serra, Eles
têm o direito de saber, Edições «Avante!», Lisboa,
1997.