Recordando

Com alguns comentários




Sérgio Vilarigues


Como é conhecido, o Partido Comunista Português nasceu no dia 6 de Março de 1921, pelo que, em Março próximo vai comemorar o seu 77º aniversário.
O trajecto percorrido foi relativamente longo e sobretudo muito difícil e, por isso mesmo, exaltante, em especial para quem viveu uma boa parte desse trajecto. Trajecto esse feito em permanente luta pelas reivindicações dos trabalhadores e das massas populares, pela liberdade, a democracia, a independência nacional, a paz e o socialismo para o povo português.
O Partido desenvolveu-se a par e passo com as lutas pequenas, médias e grandes que organizava, e as espontâneas que dirigia com altos e baixos e até com paragens breves para reparar estragos, curar as feridas, fruto das variadíssimas batalhas travadas, reorganizar as forças, analisar e estudar as experiências colhidas e definir melhor as tácticas de luta e os objectivos a atingir pelas lutas de massas em cada etapa do caminho a percorrer. E assim se iam vencendo, dia após dia, mês após mês, ano após ano, os tremendos obstáculos que se opunham ao seu desenvolvimento como Partido revolucionário da classe operária e de todos os trabalhadores
portugueses, à sua marcha juntamente com outros sectores sociais e outras forças políticas - quase sempre dispersas e, em geral, com vida curta -, a caminho da vitória sobre a ditadura fascista que chegou, finalmente, em 25 de Abril de 1974, com a conquista da Liberdade política e da Democracia pelo povo português e para o povo português.


Dezenas de anos de luta na clandestinidade

Os 48 anos de luta contínua nas mais difíceis condições de clandestinidade, imposta pela ditadura fascista, em especial os 34 anos que decorreram desde a reorganização do Partido de 1940-41, foram tanto mais notáveis quanto, durante muito tempo, estivemos praticamente desligados e isolados do movimento comunista e operário internacional.
Lutávamos sempre, e hoje continuamos a lutar, com falta de meios económicos e técnicos. Nos primeiros anos após a sua fundação e durante e após a reorganização de 1940-41, a coisa foi séria, mesmo muito séria. Não tínhamos dinheiro para alugar casas com e em condições minímas para os revolucionários profissionais poderem trabalhar e viver. Não dispúnhamos de meios para montar um aparelho técnico clandestino eficiente e seguro, para obter artigos alimentares, roupa e calçado. E muito menos para ajudar os familiares que viram aumentar as suas dificuldades com a saída, forçada ou não, para a clandestinidade dos homens e mulheres que quase sempre eram os principais sustentáculos das famílias. Valia-nos o admirável espírito de solidariedade existente entre todos os membros e simpatizantes do Partido, dos trabalhadores, intelectuais e estudantes e de alguns democratas e antifascistas de vários sectores da sociedade. Esta solidariedade ajudava muito, mas não podia chegar para suprir, já não digo todas as necessidades, mas, ao menos, as mais prementes.


Tarefas muito difíceis

Eram, pois, tarefas muito difíceis, mas lá se iam realizando simultaneamente com a criação, a estruturação e o alargamento da organização do Partido e de uma infinidade de formas de organização extra-partidárias dos trabalhadores e das variadas camadas da população de Norte a Sul do País, no sentido de fomentar, organizar e conduzir as lutas reivindicativas de carácter económico, social, político e cultural, no terreno legal e semi-legal, nos locais de trabalho e de habitação, nos campos, nas escolas, nas ruas, em todo o lado onde pulsava o coração da classe operária e restantes trabalhadores e massas populares.
A criação de suportes do trabalho político e de organização do Partido era uma tarefa cheia de dificuldades, mas absolutamente necessária para que todo o aparelho pudesse funcionar melhor, com eficiência, ou apenas funcionar bem ou assim-assim.
A montagem de tipografias clandestinas e seu funcionamento pleno, com tudo o que lhes estava ligado - adquirir papel apropriado assim como todo o material de impressão, a redacção, a tarefa de imprimir, o aparelho de distribuição à escala nacional -, era, ou foi, das tarefas mais complexas, sensíveis e difíceis do Partido. Embora com altos e baixos, como era natural, foi realizada com relativo sucesso, em especial de 1941 a 1974.


A defesa do Partido

No entanto, a defesa dos quadros do Partido que constituiam todo o aparelho clandestino do Partido, incluindo os quadros técnicos, era ainda mais complicada e responsável, pois tratava-se do que o Partido tinha de mais precioso, isto é, homens, mulheres com muitas virtudes, corajosos, dedicados, fiéis ao Partido, à classe operária e ao País, mas também com não poucos defeitos e debilidades várias, como era natural que assim fosse e assim seja hoje, em condições diferentes das de então, é certo.
A sua defesa dependia, em primeiro lugar, da estreita ligação das organizações do Partido às massas, da existência de meios materiais ainda que insuficientes, tudo issso aliado ao comportamento normal dos quadros perante o meio em que viviam as outras pessoas, ao cumprimento sem falhas de todas as regras conspirativas estabelecidas pelo Partido, ao exercício constante da vigilância revolucionária, a uma compreensão plena da necessidade da existência de uma disciplina dura, diria de ferro, e mesmo de uma forte e consciente auto-disciplina, capazes de ajudar a vencer toda e qualquer tentação de se deixar embrenhar por caminhos de facilidade para realizar as suas tarefas revolucionárias.
A defesa do Partido e de toda a sua actividade exigia dos seus quadros um conhecimento, o mais completo possível, da topografia das zonas e regiões onde actuavam ou onde iam movimentar-se, assim como a preocupação de andarem sempre à frente da polícia, saber usar os transportes em cada situação e momento dados nas melhores condições de segurança possíveis, sempre com a ideia de que não existiam transportes 100% seguros e de que todos eles eram bons e todos eles eram maus. O que se impunha então era que cada um dos militantes, dentro da orientação geral traçada, avaliasse cuidadosamente a situação concreta em cada momento dado antes de encetar a marcha, soubesse escolher bem qual o transporte mais conveniente nessas condições e servir-se dele até ao local certo, que se considerasse mais seguro, não hesitando em abandoná-lo discretamente à mais pequena suspeita que lhe surgisse. Em tais casos, mais valia pecar por exagero do que se deixar ganhar pela ideia da facilidade, de que não havia razões para suspeitas, de que tudo se iria passar como o previsto anteriormente, isto é, tudo bem.
Ir logo directo para o local escolhido para realizar a tarefa antes indicada, quase nunca era aconselhado. Antes de avançar havia que fazer, anteriormente, um cuidadoso balanço crítico dos passos dados até aí, ver se tudo tinha corrido normalmente, com segurança, tudo relativo claro está, porque certezas absolutas são sempre muito más conselheiras.


Problemas humanos dolorosos

Quando as crianças atingiam a idade da fala e da curiosidade que, em geral, as caracteriza, exigiam cuidados de vigilância extremos. Não se podia perdê-las de vista, era preciso evitar que algum vizinho as abordasse a sós mesmo que se pensasse ser apenas para as acariciar, pois uma simples palavra inocente poderia pôr em perigo a segurança de um fortim do Partido, dos seus ocupantes e mesmo de outros elementos que, eventualmente, viessem trabalhar com eles. Numa palavra, a partir de determinada altura as crianças das casas do Partido tornavam-se perigosas para a segurança das mesmas, dos militantes seus pais e dos outros a quem estavam ligados pela necessidade da acção do todo contra a ditadura fascista.
Havia que encontrar soluções para conjurar o perigo, mas só víamos uma possível e eficaz: a separação dos pais e a entrega às famílias respectivas, o que significava ir aumentar as dificuldades das mesmas. Este era um passo muito doloroso para os pais e muito traumatizante para os filhos no momento e, posteriormente, pela vida fora. Eram crianças que se sentiam sem pais sabendo que os tinham num qualquer lugar de Portugal.
Nalguns casos, mesmo logo após o 25 de Abril, arrumar todos os problemas em bases sólidas, a contento de todos, não foi tarefa fácil, havia que legalizar tudo e todos para passarem a ser quem realmente eram.
Como íamos dizendo, a separação era muito dolorosa para pais e filhos, mas a segurança e a vida dos revolucionários assim o exigiam. Os dias imediatos que se seguiam eram extremamente difíceis para os pais, de tristeza permanente porque, além do mais, não podiam acompanhar o desenvolvimento dos filhos queridos. Era necessário da parte do Partido dedicar-lhes uma atenção muito especial no sentido de os ajudar a vencer a dor e a saudade que os atingiam e, num ou noutro caso, por vezes mesmo um certo desânimo.
Com a continuação da sua actividade revolucionária cada vez mais intensa e com o apoio amigo e fraterno dos seus camaradas de combate reanimavam e venciam relativamente breve o tremendo choque que lhes causara a separação daquilo que tinham de mais querido e precioso, os filhos. E a vida e a acção continuavam como antes.


«O Militante» Nº 233 - Março / Abril - 1998