O socialismo no limiar do século XXI




Albano Nunes
Membro do Secretariado do Comité Central

O Seminário sobre “O Socialismo no limiar do século XXI” realizou-se em Havana de 21 a 23 de Outubro.
Foi promovido pelo Partido Comunista de Cuba no marco do vasto conjunto de iniciativas em homenagem a Ernesto Che Guevara pelo 30º aniversário da sua morte.
Este Seminário contou com a presença de cerca de 200 participantes em representação de 97 partidos e movimentos, provenientes sobretudo da América Latina, mas também da América do Norte e Europa e ainda (em número muito mais reduzido) da África e Ásia.
O Seminário realizou-se nas excelentes instalações do Palácio das Convenções.
Após uma sessão plenária de boas vindas e abertura - em que o camarada José Ramon Ballaguer, membro do Bureau Político do PC Cuba, leu a contribuição cubana -, o Seminário desenvolveu-se por três secções em que, para além de numerosas intervenções previamente preparadas, foram possíveis breves trocas de pontos de vista.
Foram os seguintes os temas das secções:

1) Realidades do socialismo contemporâneo;

2) Vigência do pensamento marxista e leninista e os marxistas contemporâneos;

3) O imperialismo e a actualidade.

Na sessão plenária final foram feitos breves resumos dos debates nas secções, todos eles confirmando a actualidade do pensamento marxista-leninista e a exigência da transformação socialista da sociedade.
Não houve conclusões finais.
O Partido Comunista Português esteve representado pelo camarada Albano Nunes, membro do Secretariado do Comité Central e responsável pela Secção Internacional, que participou nos trabalhos da 2ª secção e que leu a intervenção que publicamos.



Queremos antes de mais agradecer aos camaradas cubanos o convite ao Partido Comunista Português para participar neste Debate Internacional sobre O Socialismo e o Século XXI.
O tema proposto é extraordinariamente vasto e complexo, mas de flagrante actualidade.
Participamos com a convicção de que ele propiciará um útil intercâmbio de experiências e reflexões e contribuirá para o fortalecimento dos laços de cooperação e solidariedade internacionalista, particularmente necessário nas condições de globalização do grande capital.
Com a nossa presença associamo-nos também às homenagens do povo cubano a essa grande figura de comunista e de revolucionário que foi Ernesto Che Guevara. E testemunhamos a fraternal solidariedade dos comunistas portugueses para com um partido e um povo que, enfrentando com dignidade e determinação o criminoso bloqueio imposto pelos EUA, persistem corajosamente no rumo socialista da sua revolução.


1. Com esta breve contribuição apenas pretendemos tocar algumas questões básicas, por ventura “elementares”, mas que por isso mesmo consideramos importante precisar.
Começamos com a avaliação do século XX que agora termina, porque uma tal avaliação determina em medida fundamental os objectivos que apontamos e as perspectivas que desenhamos quanto à luta libertadora dos trabalhadores e dos povos neste limiar do século XXI.
É uma realidade que, com referência à avaliação dominante no movimento comunista algumas décadas atrás, o processo de edificação da nova sociedade se revelou mais difícil, complexo e demorado que o previsto e que o capitalismo revelou uma inesperada capacidade de resistência, adaptação e mesmo de recuperação. Tudo isto coloca a necessidade de reexaminar o caminho percorrido assim como muitas questões relativas à teoria e à prática do socialismo que, sem fundamento suficiente, haviam sido dadas como adquiridas.
Nada autoriza porém a pôr em causa a realidade - como põe um revisionismo histórico oportunista - de que no século XX se verificaram grandes avanços no processo de libertação social e humana e que, a partir da revolução de Outubro de 1917 tiveram (e estão a ter) lugar tentativas e experiências valiosas tendo como orientação e objectivo a construção do socialismo.
Ao contrário do que pretendem os ideólogos do capitalismo, o desaparecimento da URSS e as derrotas do so-cialismo no Leste da Europa não representam o fracasso do ideal comunista mas o fracasso de um “modelo” historicamente configurado que se afastou do ideal comunista em aspectos essenciais relativos ao poder político, à democracia participativa, às estruturas sócio-económicas, ao papel do Partido, à teoria, contrariando características fundamentais de uma sociedade socialista sempre proclamadas pelos comunistas.
Como afirmámos no nosso XIV Congresso, “o século XX passará à história não como o século da “morte do comunismo” mas como o século em que o comunismo nasceu como concretização de um projecto alternativo ao capitalismo e como solução historicamente necessária das suas contradições”.


2. A identificação dos traços e características actuais do sistema mundial capitalista reveste- se da maior importância para o acerto na definição das tarefas que hoje se colocam aos comunistas e outras forças revolucionárias e progressistas.
Desde o tempo em que Marx e Engels fundamentaram cientificamente o carácter necessariamente transitório do capitalismo e em que Lénine conduziu a primeira revolução socialista vitoriosa, o capitalismo conheceu profundas mudanças. É entretanto uma evidência que a sua natureza exploradora, opressora e agressiva não se alterou, mantendo-se por isso as razões para a continuação da luta por uma nova sociedade mais livre, mais justa e mais humana, finalmente livre da exploração do homem pelo homem, a sociedade socialista.
Na fase actual do capitalismo monopolista de estado, crescentemente transnacional, o capitalismo não só confirma a sua incapacidade para dar resposta aos problemas dos trabalhadores e dos povos como conduz ao seu brutal agravamento. Por toda a parte, nos países capitalistas desenvolvidos como nos países do chamado Terceiro Mundo, assiste-se a uma polarização riqueza/miséria sem precedentes, a um insuportável aumento das injustiças e desigualdades sociais, à precarização crescente do trabalho e da existência para a grande maioria, ao desmantelamento sistemático de conquistas e direitos alcançados pela luta de gerações - económicas, sociais, políticos, culturais, nacionais - que configuram uma autêntica regressão civilizacional.
Desenvolve-se o militarismo. Intensificam-se as ingerências e agressões do imperialismo contra povos soberanos. Delapidam-se os recursos naturais e cresce o perigo de catástrofes ambientais. É flagrante a contradição entre as extraordinárias potencialidades criadas pelas conquistas da ciência e da técnica para solucionar os grandes problemas do nosso tempo e o seu efectivo agravamento.
O “Horror Económico” que aí está tem responsáveis. É inseparável do poder económico e político dos grande grupos económicos e financeiros multi e transnacionais. Grupos que se apropriam das grandes conquistas da revolução científica e técnica em prejuízo e em contradição com o interesse social geral. Grupos cada vez mais poderosos e tentaculares em resultado do acelerado processo de concentração e centralização do capital conduzido por governos e instituições internacionais que dominam. Grupos que, na ânsia do lucro e da acumulação, intensificam a exploração do trabalho assalariado e desenvolvem a esfera financeira e especulativa em detrimento do investimento produtivo, gerador de emprego e riqueza.
O capitalismo, que há muito já constituía um obstáculo ao progresso social, tornou-se nos nossos dias uma ameaça para a própria civilização humana.
Verifica-se assim que os interesses da classe operária e dos trabalhadores assalariados na luta pela abolição da exploração do capital coincidem com os interesses gerais da humanidade.
Desmentindo os apologetas do capitalismo como sistema historicamente terminal e forma superior de civilização humana, verifica-se que neste limiar do século XXI existem não menos mas mais razões para rejeitar e combater o sistema e prosseguir com confiança a luta pela sua superação revolucionária, pelo socialismo.


3. Embora num quadro de atrasos e dificuldades, em boa medida determinados pelo enfraquecimento das forças revolucionárias e progressistas e das organizações de classe dos trabalhadores, pode dizer-se que em todo o mundo se desenvolve, sob as mais diversas formas e com as mais variadas motivações e objectivos, a resistência e a luta popular.
O PCP valoriza muito esta realidade que desmente os profetas do conformismo e da impotência e confirma que, mesmo nas condições mais adversas, os trabalhadores e os povos não cruzam os braços, não se rendem, não se submetem. Naturalmente que em geral se trata de lutas por objectivos parciais, limitados, não directamente políticos e muito menos revolucionários. Mas que só um profundo desprezo pelas massas e pelo papel decisivo da acção das massas no processo de transformação social pode conduzir a minimizar. A experiência histórica mostra que entre a luta social e a luta política, a luta por objectivos parciais concretos ou por uma alternativa “global”, a luta por melhorias e reformas no quadro do sistema ou pela sua superação revolucionária, não existe nenhuma “muralha da China”. Pelo contrário, trata-se de realidades complementares e indissociáveis. Desde que, evidentemente, se não confine a luta aos limites consentidos pelo capitalismo, e não se perca nunca de vista a perspectiva de ruptura revolucionária com o sistema, desde logo no que respeita à questão central do poder.
Para o PCP o caminho da revolução é o caminho das massas, da sua organização e da sua mobilização para a luta. Desde logo no plano de cada país. A nosso ver o espaço nacional continua a ser marco decisivo e incontornável da luta de classes. A própria luta em defesa da independência e soberania nacional ganha maior importância na actualidade.
Simultaneamente é necessário fortalecer os laços de cooperação e solidariedade internacionalista dos povos, dos trabalhadores, dos comunistas e dos progressistas de todo o mundo. Há problemas comuns que exigem uma resposta em comum. Os próprios processos objectivos de internacionalização, de cooperação e integração, de divisão internacional do trabalho, conduziram a uma mais estreita interdependência dos povos e da sua luta. A dialéctica dos factores nacionais e internacionais ganhou maior importância.
O desenvolvimento da acção comum ou convergente das forças do progresso social é desde logo indispensável para fazer frente à ofensiva global e planetária do imperialismo e às tentativas de imposição de uma “nova ordem” totalitária. Daí a importância que atribuímos ao processo de cooperação de forças de esquerda e progressistas na Europa frente a uma União Europeia dominada pelas grandes potências e pelo grande capital, e que, entre outros, teve no Comício de 24 de Maio em Lisboa um momento de massas muito significativo. Daí a nossa solidária participação no processo do Forum de São Paulo. Daí a nossa valorização de iniciativas multilaterais que, como este Debate, contribuem para melhorar o conhecimento e a compreensão e tecer relações de solidariedade internacionalista.


4. A luta pelo socialismo assume em cada país, antes e depois da conquista do poder pelas forças revolucionárias, formas necessariamente diversificados. Não há nem pode haver “modelos” de revolução.
Diferenças no grau de desenvolvimento económico, na arrumação das forças sociais, nas tradições e na cultura, nas características da vanguarda revolucionária, no enquadramento externo entre outras, determinam que assim seja. Isto para além da própria dinâmica do processo revolucionário em que a energia e a criatividade das massas se manifesta exuberante. Sabemos que assim é por experiência própria com a revolução do 25 de Abril de 1974. Vemo-lo na extraordinária experiência acumulada pelo movimento comunista e revolucionário, em que é oportuno destacar a profunda originalidade e criatividade da revolução cubana, incluindo hoje nas condições do “período especial”, explorando novos caminhos e persistindo na opção socialista da sua revolução. Vemo-lo ainda nas consequências negativas que resultaram, por cópia ou exportação, da transplantação mecânica de soluções e experiências alheias, erigidas em receitas de valor universal quanto a vias de revolução e “modelos” de sociedade.
Hoje tudo isto é mais claro do que décadas atrás.
80 anos passados sobre a primeira revolução proletária vitoriosa, no findar de um século que, não obstante as dramáticas derrotas do socialismo, representou grandes avanços no processo de libertação social e humana - dispomos de um património de experiências riquíssimo cujo conhecimento e assimilação é da maior importância para prosseguir com maior segurança a luta por uma sociedade nova.
O leque de questões a exigir investigação, exame e certamente também experimentação, é muito amplo. Por exemplo: as que se relacionam com a edificação de sociedades socialistas nas condições de competição e confronto com o capitalismo, aliás mundialmente hegemónico nos planos económico e ideológico; a natureza do socialismo como período de transição entre o capitalismo e o comunismo, questão que se perdeu de vista durante muito tempo; soluções que, após milénios de sociedades baseadas na exploração e opressão de classe, estimulem uma superior produtividade do trabalho; a construção de sistemas de poder popular que garantam a democracia directa e participativa e assegurem o controle efectivo do exercício do poder a todos os níveis de forma a impedir deformações e abusos.
Poderiam formular-se muitas outras. De qualquer modo uma conclusão se tem de dar necessariamente por adquirida: a nova sociedade só pode ser construída pela acção revolucionária e o empenhamento consciente e criativo das massas, nunca apenas em seu nome ou sem o seu empenhamento e muito menos contra a sua vontade. É assim que na concepção programática do PCP socialismo e democracia (considerada não em termos formais mas nas suas múltiplas vertentes - económica, social, política e cultural) são inseparáveis.


5. A terminar, duas palavras sobre o PCP.
Com as derrotas do socialismo na URSS e Leste da Europa foi desencadeado uma formidável ofensiva ideológica visando o enfraquecimento, diluição, degenerescência ou liquidação dos partidos comunistas e outras forças revolucionárias tendo como ideias centrais o “fracasso do socialismo”, a “falência do marxismo-leninismo”, “o declínio irreversível do movimento comunista”, etc..
Logo no seu XIII Congresso Extraordinário (Maio de 1990) e posteriormente nos seus XIV e XV Congressos (Dezembro de 92 e 96), o PCP deu uma resposta muito clara a tais campanhas confirmando e renovando a identidade comunista do PCP. Identidade que se traduz fundamentalmente na natureza de classe do partido, no objectivo do socialismo, na teoria revolucionária que o inspira, numa concepção e numa prática de estrutura e funcionamento democrático que asseguram a sua unidade e capacidade de intervenção, na ligação estreita e indissolúvel à classe operária e às massas, no seu patriotismo e internacionalismo. É afirmando a sua independência e autonomia política e ideológica e a sua identidade que o PCP desenvolve a sua acção.
Sem dúvida que não temos vivido em Portugal tempos fáceis. O processo de recuperação capitalista com a reconstituição do poder económico e político dos monopólios que a revolução de Abril liquidara, a desfavorável evolução mundial, o processo de integração de Portugal na União Europeia, nomeadamente com as suas nefastas imposições supranacionais e políticas neoliberais; o empobrecimento da democracia; transformações e mutações do aparelho produtivo que afectaram a base social de apoio do partido - pesaram negativamente na evolução da influência orgânica, política e eleitoral do PCP. Mas, ao contrário dos que profetizavam “o declínio irreversível do PCP” o nosso partido continua profundamente enraizado no povo, está unido, conta com um forte colectivo de 140.000 membros, exerce uma influência determinante no movimento sindical e outras organizações unitárias de massas, mantém sólidas posições no plano institucional, com destaque para o poder local democrático.
Na luta em defesa dos interesses dos trabalhadores, do povo e do País, na firme oposição à política de direita do actual Governo do Partido Socialista (que, como a generalidade dos partidos social-democratas, se rendeu ao neoliberalismo e aos ditames do grande capital), na procura de uma alternativa de esquerda para Portugal - o PCP afirma-se como uma força necessária e insubstituível que tem diante de si reais perspectivas de fortalecimento. É que sentimos nomeadamente em sectores cada vez mais largos da juventude, junto de quem os valores, os ideais, a coerência e seriedade dos comunistas exercem crescente poder de atracção.
Esta uma razão mais a reforçar a nossa confiança no futuro do socialismo em Portugal e no mundo.

Havana, Outubro de 1997


«O Militante» Nº 232 - Janeiro / Fevereiro - 1998