A casa de Eulália *




Sentados numa esplanada da cidade velha, os três camaradas conversavam e bebiam cañas frescas - de sabor redobrado pela caloraça do ar.
A beber parecidos. Diferentes no estar. António, atento, olhando para um lado e para outro como que à espera de qualquer súbita novidade. Manuel observando tudo em volta e seguindo com agrado a passagem das raparigas. Renato, de perna traçada com lassidão, dir-se-ia distraído, mal acompanhando a conversa com uma ou outra palavra solta.
A um observador desatento ali conduzido, vindo de longe e de olhos vendados subitamente descobertos, a animação da rua, as esplanadas cheias, a gente que circulava, os grupos parados na sombra dos prédios, tudo pareceria habitual num domingo igual a todos os domingos de verão, ali no centro da cidade, não longe da Puerta del Sol.
Igual naquele recanto e naquele momento a um primeiro olhar. Porque logo à observação se revelavam coisas novas e estranhas. Estranho e novo os carros que passavam de quando em quando, cortando o sossego da rua com buzinares e gritaria. Estranho que muitos homens e mulheres ostentassem na cabeça bonés de feitios variados com letras e insígnias. Mais estranho ainda que, ao ouvirem-se, vindos de outras ruas, estalidos lembrando bombas de Santo António, logo os ouvidos se apurassem e os gestos se suspendessem.
Precisamente num momento em que António comentava a tranquilidade do local, soou um desses estalidos e o jovem, lançando uma mirada até ao fundo da rua, viu gente a convergir velozmente para um ponto e estacar em grupo. Logo comentou:
- Se calhar, mais uno que han matado...
Como outros emigrados, falava assim, meio espanhol, meio português. Além de hábito adquirido, era o mais prático para portugueses: todos os compreendiam.
- Talvez... - disse pacatamente Renato, bebendo um gole da cerveja.
Talvez, ainda que não certo. Nas útlimas semanas multiplicavam-se os atentados contra militantes e vendedores de jornais da esquerda. Mortos alguns.
Naquela rua, naquele momento, na cidade velha tudo estava mais ou menos tranquilo. Mas Madrid fervia num vulcão.
Sucediam-se manifestações e confrontos. Circulavam carros com velocidades loucas, gritando slogans e abrindo à deslocação do ar enormes bandeiras dos partidos. Aqui e além, estalava o tiroteio e - curioso! - eram raras as fugas e as correrias.
Circulavam boatos de um golpe militar em preparação contra o Governo da República e dizia-se que os fascistas se haviam sublevado no Cuartel de la Montaña, agora de portões cerrados, sem contacto com o exterior.
Para um vizinho espanhol noutra mesa a situação era clara.
- Si sobreviene el golpe van a llevar por culo.
Muito bem, era uma previsão. E então, para eles, os três que ali estavam, portugueses e emigrados políticos, que fazer no caso do golpe?
António trabalhava pela manhã numa oficina de reparação de automóveis. Directamente ligado ao partido tinha uma tarefa muito particular. Conhecedor da fronteira, era geralmente encarregado de receber do lado espanhol e conduzir os clandestinos a Madrid ou de organizar saltos de regresso de Espanha para Portugal. Nas últimas semanas mantinha um contacto regular com um camarada responsável que fora buscar à fronteira.
Viera com uma missão especial, que António só parcialmente conhecia: conseguir a libertação de dois outros camaradas que, ao atravessarem a fronteira pelo Guadiana, haviam sido presos pela Guardia Civil, levados a tribunal por serem portadores de armas, condenados e encerrados na prisão de Huelva. O camarada não lhe dissera o nome e ele não lho perguntara. Para António ficara sendo apenas o camarada e assim se referia a ele.
Manuel não tinha ainda a vida assente. Chegara há pouco, depois de uma situação perigosa que lhe fora criada numa jornada das juventudes. Não tinha pensado no que fazer em caso de um golpe fascista. Opinião geral tinha.
- Saber não sei, mas não vou ficar de braços cruzados.
Renato assumia posição diferente. Participara na greve de 18 de Janeiro, era conhecido na terra e andara a monte pelo pinhal de Leiria. Levando a mulher consigo, conseguira sair de Portugal não se sabia como e agora trabalhavam, ela em serviços domésticos, ele empregado numa loja, que aliás fechara há dias.
- Se dão o golpe, é com eles. Vim de Portugal para não ter lá mais sarilhos, não vim para Espanha para os ter cá.
E, como António lhe atirasse que tal posição nem parecia dele, acrescentou:
- Parece, sim. Se quiser sarilhos, em Portugal há muito que fazer.
Assim discorriam nessa tarde e se despediram já ao crepúsculo. Renato ia para Las Ventas num extremo da cidade, António e Manuel seguiam ambos para a Puerta del Angel noutro extremo, pois estavam hospedados na mesma casa.

* Capítulo 1 do romance A Casa de Eulália, de Manuel Tiago, Editorial "Avante!", Lisboa, 1997.



«O Militante» Nº 232 - Janeiro / Fevereiro - 1998