É preciso lutar na Europa pela cooperação e solidariedade
de Estados independentes e soberanos
Em 6 de Novembro passado teve lugar no Instituto
de Defesa Nacional um debate entre Álvaro Cunhal e Mário
Soares.
O debate teve como tema: "A União Europeia e a crise da
independência/identidade nacional/soberania «finis
Patriae»?". Ele fez parte de um colóquio internacional,
intitulado "Portugal na Transição do Milénio" e
realizado pelo Pavilhão de Portugal na Expo 98, pela Faculdade
de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e
pelo Instituto de Defesa Nacional.
Publicamos a seguir a intervenção inicial feita pelo camarada Álvaro
Cunhal.
O tema proposto para este debate - com a interrogação final:
o fim da pátria? - envolve tantos, tão
variados e complexos problemas que o escasso tempo disponível
não dá mais do que para aflorar aspectos que se considerem
essenciais.
Assim farei, dividindo a exposição em cinco pontos.
1º - A divisão internacional de trabalho, a
internacionalização dos processos produtivos e a criação de
zonas de integração económica constituem o sentido e uma
necessidade objectiva do desenvolvimento económico na época que
vivemos. O desenvolvimento económico não se pode encontrar em
soluções autárcicas, mas em sistemas de cooperação
internacional.
Entretanto, a tendência verificada nos processos de integração
entre países com níveis de desenvolvimento muito diferenciados
é para a hegemonização das decisões pelos países mais
desenvolvidos e poderosos em defesa dos interesses próprios com
sacrifício dos interesses e com obstáculos ao desenvolvimento
económico dos países mais atrasados.
A efectiva dependência destes em relação àqueles tem sido a
realidade da proclamada interdependência.
A experiência torna indispensável a luta de cada povo para
assegurar a defesa dos seus interesses nacionais, do seu direito
de definir a própria política, da sua independência e
soberania nacionais.
2º - A adesão de Portugal à CEE estava já na
ordem do dia no tempo da ditadura fascista. Um cuidadoso estudo
do PCP feito nos anos 60 concluiu , por um lado, em termos
gerais, que a CEE era um instrumento dos grandes grupos
económicos e dos países mais desenvolvidos e de submissão e
absorção económica dos países menos desenvolvidos. E que,
para Portugal, dado o atraso relativo da sua economia e a
consequente falta de capacidade de concorrência num mercado
único, a integração teria consequências desastrosas para o
aparelho produtivo e graves limitações à independência e
soberania nacionais.
Daí a oposição a tal hipótese e a advertência das suas
consequências.
Após o 25 de Abril um novo e aprofundado estudo realizado em
1980 confirmou as
conclusões dos estudos anteriores.
Pelo seu atraso relativo, Portugal não estava em condições de
aderir à CEE. As
consequências da adesão seriam ruinosas para a economia
portuguesa, nomeadamente para a indústria, a agricultura e as
pescas.
Como razão para contrariar a adesão, acresciam as profundas
transformações democráticas resultantes da Revolução de
Abril.
Com a nacionalização da banca e de sectores básicos da
economia e uma reforma agrária na principal zona do latifúndio
e com outras conquistas democráticas, extinguiram-se os grandes
grupos monopolistas dominantes e realizou-se uma radical mudança
da estrutura socio-económica do país.
Essa nova realidade foi consagrada, aliás como princípios
insusceptíveis de revisão, na Constituição da República
elaborada e aprovada em 1976 pela Assembleia Constituinte eleita
por sufrágio universal. A nova estrutura económica abria
possibilidades de desenvolvimento económico e a melhoria das
condições de vida do povo português.
A integração de Portugal na CEE passou a ser defendida pelos
governos anos depois, inseparavelmente ligada ao objectivo de
destruir as novas estruturas económicas resultantes da
revolução de Abril e de adaptar Portugal às estruturas dos
outros países da Comunidade. Ou seja, de restaurar em Portugal o
capitalismo monopolista.
3º - A análise e as previsões das
consequências desastrosas que teria a integração
confirmaram-se inteiramente.
Com a adesão de Portugal à CEE em 1986, acompanhando a
reconstituição e restauração dos grandes grupos monopolistas
e sacrificando os interesses nacionais aos interesses, decisões
e imposições dos países mais ricos e poderosos, o aparelho
produtivo nacional foi sendo desorganizado e destruído e a
dependência externa tornou-se quase universal.
Na indústria, a resultante da integração pode
caracterizar-se como um processo de
desindustrialização. Indústrias básicas e
estratégicas foram sacrificadas à imposição hegemónica (na
divisão internacional do trabalho) dos países mais
desenvolvidos.
Siderurgia e metalomecânica praticamente liquidadas.
Construções navais gravemente reduzidas em quantidade e
qualidade.
Indústrias tradicionais, como têxteis e conservas de peixe,
condenadas a uma crise
profunda.
Milhares de empresas industriais reduziram drasticamente a
produção, muitas faliram, encerraram as portas, atiraram os
trabalhadores para o desemprego.
Ao mesmo tempo, mesmo antes das privatizações da EDP, Telecom e
transportes, já o capital estrangeiro toma importantes
posições, não só em grandes bancos privatizados, como em
empresas básicas e estratégicas do sector público, entretanto
privatizadas ou em vias de privatização.
O apossamento da produção industrial por empresas estrangeiras
tornou-se avassalador na metalurgia e metalomecânica, nas
indústrias químicas, nas bebidas e tabaco, nas indústrias de
alimentação. É significativo que caiba a empresas estrangeiras
parte significativa das exportações de produtos industriais.
No sector mineiro, em vez do aproveitamento dos recursos
nacionais e da firme invocação do princípio da preferência
comunitária, entregam-se as reservas às grandes
transnacionais, encerram-se minas, atiram-se milhares de
trabalhadores para o desemprego.
No comércio, grupos estrangeiros e nacionais da grande
distribuição de bens de consumo e de bens industriais, ganham
posições dominantes com a falência e liquidação de numerosas
pequenas e médias empresas comerciais e o agravamento da
situação de sectores produtivos (agrícolas e industriais) aos
quais esses grupos, em posições quase monopolistas, impõem
condições leoninas de preços, de prazos e de pagamentos.
A agricultura portuguesa foi forçada a um retrocesso e
a uma crise permanente.
A integração significou: a redução importante da produção,
com o estabelecimento de quotas, subsídios para não se produzir
e multas para casos de se excederem as quotas; com a invasão do
mercado nacional por produtos importados, tanto dos outros
países da UE como de países terceiros, impedindo o escoamento e
forçando à destruição dos produtos nacionais, que nuns casos
nem sequer são colhidos, noutros condenados à lixeira, noutros
a receberem miseráveis indemnizações para que sejam
enterrados.
A integração vertical internacional dos hiper e supermercados
é um instrumento poderoso deste desastroso processo.
Daqui resultou a queda vertical da quota de
auto-abastecimento que anteriormente era quase total em
relação a alguns produtos (caso dos hortícolas) e determinante
ou considerável noutros (frutos, cereais, carnes).
Pôs-se assim em causa o nível de segurança alimentar do
país, elemento do próprio conceito de segurança nacional.
Isto significou o veloz agravamento da balança
agro-alimentar e a correspondente quebra vertical da taxa
de cobertura.
A nova reforma da PAC, pretendendo impor a baixa dos preços dos
cereais, do leite, da carne de bovino, representa para Portugal a
perda de muitas dezenas de milhões de contos.
A imposição de novas regras para a Organização Comum do
Mercado (OCM) do vinho, azeite, produtos hortícolas e
frutícolas penaliza fortemente Portugal.
Em consequência, de 1986 a 1995, foram liquidadas mais de 100
mil das 500 mil pequenas e médias explorações agrícolas
anteriormente existentes.
Neste processo, as assimetrias regionais sofreram rápido
agravamento.
Nas pescas, aí estão também os resultados: quebra
acentuada da descarga do peixe em lota; subida em flecha das
importações de peixe e seus derivados; abate de centenas de
embarcações, sem se efectuar a renovação da frota;
distribuição de quotas penalizadoras para Portugal;
insuficiente aproveitamento das águas territoriais e pesca
ilegal por embarcações estrangeiras; diminuição do número de
trabalhadores, não abrangidos aliás por direitos gerais dos
trabalhadores portugueses; e ainda acordos da UE com países
terceiros, nomeadamente no Atlântico Norte (bacalhau e palmeta),
com quotas discriminatórias e lesivas para Portugal.
A destruição de importantes sectores e sub-sectores do aparelho
produtivo teve como elemento e consequência o agravamento das
condições de trabalho e de vida, a liquidação de direitos
fundamentais dos trabalhadores, a generalização da
precarização e a revelação de que o desemprego atinge mais
dia menos dia, se é que não atingiu já, meio milhão de
portugueses.
Não se trata de opiniões. Trata-se de dados e factos
incontestáveis da real situação.
De tal forma evidentes e sentidas, que muitos, que tinham só
certezas, adiantam agora interrogações, dúvidas e
discordâncias; e onde se anunciava a harmonia e conciliação de
interesses, surgem crescentes contradições, divergências e
conflitos.
4º - A situação agravou-se e agrava-se com o Tratado
de Maastricht e sua precipitada ratificação.
À cooperação dos países membros, conforme
formulação anterior da Comunidade
Europeia, sucedem-se, como elementos formativos de uma
federação europeia, as políticas comuns
em todos os sectores fundamentais da acção própria dos
Estados. Políticas comuns na área económica (agricultura,
indústria, pescas); políticas comuns na área financeira
(monetária, cambial, fiscal, orçamental); política externa
comum; política de defesa e segurança comum.
Às políticas comuns, decididas por orgãos supranacionais
dominados pelos países mais desenvolvidos e poderosos, se devem
submeter as respectivas políticas dos países membros.
Trata-se de uma renúncia a que se chamou transferência
de soberania dos Estados menos desenvolvidos.
Trata-se da tentativa de instaurar uma Europa concebida como um
bloco político-militar, com um poder político central
(estabelecido de facto ou institucionalizado) nas mãos dos
países mais poderosos.
A União Económica e Monetária (UEM) (moeda única, banco
central) e a integração militar (UEO) representam
importante papel neste processo de natureza federalista.
Ao objectivo de alcançar a Moeda Única - que aliás é uma
miragem armadilhada de consequências ainda imprevisíveis e
incalculáveis - já o Governo, sem ter em conta a actual
situação específica da economia portuguesa e a rigidez
das imposições externas, submete Portugal a graves
limitações do défice orçamental, da dívida pública e das
taxas de inflação e de juros (convergência nominal).
Com a aprovação e institucionalização no Tratado de
Maastricht do Pacto de Estabilidade, Portugal poderá
ficar amarrado de futuro a tais orientações impostas do
exterior pelo Banco alemão, impeditivas do seu desenvolvimento
económico e geradoras de desemprego, da liquidação de direitos
sociais e do descartar de obrigações do Estado nos domínios da
saúde, da educação e da segurança social.
Por sua vez, a integração militar (UEO), que nenhum preceito
dos tratados tornava obrigatória, significa renunciar Portugal a
ter a sua própria política de defesa nacional e integrarem-se
as forças armadas portuguesas (incluindo a orgânica, as armas,
as missões) na estratégia militar e objectivos militares
específicos dos países mais poderosos.
Portugal perde, neste quadro, aspectos fundamentais da sua
independência e soberania nacionais e torna-se um Estado
apendicular e periférico submetido ao estrangeiro.
Não é este, certamente, nem o presente nem o futuro que
Portugal possa aceitar.
Nem tão pouco a Europa assim concebida é um sistema final. Mais
que ilusão, é perigosa aventura querer construir uma Europa
federativa, com um efectivo poder político central, chame-se ou
não governo, dominado pelos países mais ricos e poderosos.
Perigosa ilusão e aventura também conceber uma Europa,
potência económica, política e militar, com uma Moeda Única e
forte, uma política externa e forças armadas comuns para
afrontar os Estados Unidos.
Um tal projecto, a ir por diante, tem como perspectiva não a paz
social e a fusão numa imaginária nação europeia, mas o
desencadear de grandes lutas sociais, de explosões violentas de
nacionalismos, de intervenções militares, conflitos e guerras.
O bom caminho para a Europa é o de cooperação internacional e
não de um bloco político-militar.
5º - Por tudo quanto se acaba de referir, o
tema proposto para este debate - A unidade europeia e a
crise da independência/identidade nacional/soberania: finis
patriae? - tem rigorosa formulação e é de extrema
importância e actualidade para Portugal.
Porque, na União Europeia, a independência e a soberania de
Portugal, valores inalienáveis da nação e do Estado, estão a
ser tão gravemente comprometidas que se convertem em laços
de dependência e submissão.
Porque uma Europa política, com órgãos supranacionais
dominados pelos países mais desenvolvidos e pelos interesses dos
grandes grupos económicos e das transnacionais, atinge
profundamente os interesses de Portugal, trava o seu real
desenvolvimento, agrava o desemprego e as condições de trabalho
e de vida do povo.
Porque, por muito que insistam algumas teorizações, a União
Europeia não apaga nem pode apagar a identidade das nações,
antes cria novos motivos para reforçar, particularmente nos
países cujos interesses são sacrificados, o amor do povo pela
sua nação, pela sua pátria, e a consciência da sua identidade
e dos seus direitos.
No que respeita à organização política da Europa, é
imperativo lutar contra soluções que não só mantenham mas
reforcem ainda mais o real e quase absoluto poder político dos
países mais ricos e poderosos. Concretamente, que Portugal diga
não às novas imposições supranacionais que o Tratado de
Maastricht comporta.
Imperativo também lutar para que venham a prevalecer na Europa
ideias e soluções de cooperação e efectiva solidariedade de
Estados independentes e soberanos.
É necessário lutar no concreto para que os objectivos de coesão
económica e coesão social não sejam letra morta
desmentida pelo aumento das distâncias e por diferentes
velocidades de desenvolvimento.
É necessário insistir em invocar os interesses vitais
e as situações específicas, bem como a regra da
unanimidade em questões fundamentais, princípios da livre
associação e cooperação, que estão desde já a ser
comprometidos e correm o perigo de perder qualquer sentido dadas
conhecidas propostas de aumento de número de votos a favor da
Alemanha, França e Reino Unido em órgãos supranacionais.
Isto não basta porém. Para assegurar o futuro de Portugal na
complexa situação criada como membro da União Europeia - e
(importa sublinhá-lo) é neste quadro que actualmente se impõe
considerar soluções -, é um imperativo a definição e
adopção de uma política que sirva os interesses e direitos
nacionais, uma política de desenvolvimento económico com a sua
vertente social, política de mobilização de recursos e
potencialidades, de defesa dos direitos dos trabalhadores e do
povo em geral, de solução dos graves problemas sociais e de
fortalecimento da democracia política e que Governo e Povo,
reagindo contra imposições externas lesivas dos interesses
portugueses, se unam na luta pela sua realização.
Conclusão referente ao tema proposto para este debate. A União
Europeia não põe termo às pátrias nem ao patriotismo, antes
pelo contrário, nomeadamente no que respeita a Portugal, coloca
a necessidade imperativa para os portugueses de afirmar o seu
patriotismo e lutarem na defesa dos interesses nacionais, para
garantir a independência e a soberania do nosso Estado-nação,
da nossa pátria, da pátria portuguesa.