Repartição do Rendimento Nacional
Evolução de 1953 a 1993

Por Sérgio Ribeiro
Doutor em Economia
Deputado ao parlamento Europeu




Nota prévia

O Banco de Portugal (BP) acaba de editar as Séries Longas para a Economia Portuguesa, trabalho de grande fôlego e que corresponde à criação de séries estatísticas de 1953 a 1993 tornando possível o estudo da evolução da economia portuguesa a partir de elementos estatísticos consolidados que obedecem a um mesmo critério e a um mesmo tratamento para um período longo.

No caso da repartição do rendimento nacional (RN), o BP publicou, durante anos, dados que possibilitavam o estabelecimento de séries, embora de ano para ano houvesse alterações relativas a anos anteriores o que tornava as séries precárias, não consistentes. Tendo deixado de publicar esses dados nos últimos relatórios, a publicação das “séries longas” veio repor a possibilidade de trabalhar no sentido de se verificar como evoluiu a composição desses indicadores estatísticos macro-económicos. Mas já se levantam grandes dificuldades para a sua actualização.

Numa perspectiva de classes e de luta de classes - de que não abdicámos fazendo de conta que umas deixaram de existir e sendo a outra tão condenável que só referi-la perturbaria a “paz social”...-, interessa sobretudo analisar como evoluiu a remuneração do “factor de produção”/trabalho em confronto com a evolução da remuneração do “factor de produção”/capital.

No entanto, há que sublinhar que, a partir das “séries longas”, se podem retirar muito úteis informações quantificadas de realidades vividas e temporizadas, mas com a reserva dessas informações resultarem de adaptação dos conceitos estatísticos, operacionais, fazendo-se, com eles, “pontes” para conceitos de outra ordem e de outra ideologia, como são os marxistas.

O que importará conhecer, no pe-ríodo de 41 anos das “séries”, é como se repartiu o que se assimile a RN pelas remunerações ao “factor de produção”/trabalho e ao “factor de produção”/capital. Ou seja, conhecer como, na óptica do rendimento, foram remunerados os factores/fautores da produção, calculada esta como o somatório dos valores acrescentados (VAB), isto é, o produto interno bruto a custo de factores (PIB-cf).

Para tanto, há que optar e, num artigo como este, o que se fará é confrontar a parte do RN que foi para ordenados e salários (O&S) e a que foi para excedente bruto de exploração (EBE), tendo esta sido calculada diminuindo, ao total do PIB-cf, as remunerações do trabalho (no território) (RT), que são os O&S mais o que é chamado contribuições sociais efectivas e fictícias dos empregadores (CS). Esta última sub-rubrica, tem evolução muito interessante mas de que não se fará, por agora, análise desenvolvida pois, para a fazer, ainda mais teríamos de alongar, quer a nota prévia quer o artigo no seu conjunto. As CS deslocam a curva dos O&S ligeiramente para cima, uma vez que são consideradas “remuneração do trabalho”. No entanto, serão referidas a par e passo.

A base será o PIB-cf, uma vez que é o indicador que soma as RT (no território) e o EBE, sendo, portanto, apropriado para se avaliar o efeito das políticas internas na repartição dos rendimentos resultantes do que internamente foi produzido.

Basta pensar na importância das remessas dos emigrantes para ver como uma política interna, nacional, de efectiva expulsão de trabalhadores, pode, na óptica de rendimentos, beneficiar dessas remessas para fazerem subir substancialmente o rendimento disponível (RD) - outro conceito - das famílias. Não em resultado de valorização das remunerações ao trabalho no interior, mas por causa oposta. Em Portugal, as remessas dos emigrantes chegam a ultrapassar 7% - em 1991 - do RD e a taxa de poupança das famílias pode reduzir-se a quase metade se se excluírem essas remessas. Outra “ponte” para estudos futuros ou a continuar...

O ponto de partida e o período 1953-1966

Em 1953, primeiro ano da série, utilizando os actuais dados e de acordo com a opção de tratamento, a repartição entre os O&S e o EBE era equilibrada, 49% e 47%, embora a referência a este equilíbrio nada tenha de laudatória pois, como no final dos anos 50 houve quem sublinhasse, com os poucos elementos de que então se dispunha, as parcelas do “trabalho” na repartição do RN eram bem superiores a 50% em países com que Portugal se queria confrontar nesses tempos do 1º Plano de Fomento, apesar das reservas quanto à comparabilidade dos sistemas contábil/estatísticos nacionais.

Tal equilíbrio manteve-se relativamente estável até 1966, apesar de um certo afastamento em 1958 em desfavor dos O&S, com o EBE a ultrapassar os 50%. Nos primeiros anos de guerra colonial e de surto migratório, entre 1961 e 1966, as posições relativas foram alternando, ora com os O&S ora com o EBE com ligeira vantagem.

O período entre 1967 e 1973

Em 1967, pela primeira vez, os O&S chegaram aos 50% da repartição, marcando o começo de uma tendência que se confirmou até 1973. Ela é o reflexo de um período da vida portuguesa em que houve, larvar mas consistentemente, uma relevante movimentação social e política que estas séries estatísticas traduzem. Não se trata, como simplisticamente se poderia interpretar, do “fim do salazarismo” e/ou da “abertura marcelista”. É, sim, a desesperada procura de continuidade de um regime socio-político já condenado, de prosseguir o fascismo e a guerra colonial apesar da crescente e diversificada oposição que se juntava à resistência de sempre, à luta permanente, contínua, do Partido Comunista.

Para esses reflexos na repartição do RN muito contou a movimentação sindical, aproveitando uma nova legislação (dec.-lei 49212, de Agosto de 1969) de certo modo imposta pela Organização Internacional do Trabalho (OIT/BIT), assim como a instauração dos primeiros passos para um sistema de protecção social, praticamente inexistente e que o posicionamento internacional do País e a luta interna (de resistência e de defesa dos trabalhadores e do povo português) também impuseram, como se pode descortinar nos documentos do 3° Plano de Fomento (1968-73).

Esta última tendência comprova-se na maior importância das CS, que va-liam cerca de 4% do PIB-cf em 1953 e revelam uma subida tendencial muito lenta até aos 6% de 1967 para saltar para os 9% em 1973.

No período em consideração, os valores da parcela dos O&S foram sempre superiores a 50%, com as parcelas do EBE a rondar os 40%.

1974-1975!

Os anos de 1974 (e só conta por metade) e de 1975 foram anos “diferentes” em Portugal. Em termos de repartição do RN, 1974 representou um salto significativo na parcela dos O&S, que atingiu 57% contra 34% do EBE, o que foi confirmado com o ainda maior salto (e correlativa queda) de 1975, atingindo os O&S o valor de 64% e o EBE o valor de 26%.

Importa dizer que, nas diferentes formas nacionais de o traduzir quantitativamente, fruto dos diferentes sistemas estatísticos, os valores acima de 60% como parcela para o “trabalho” nunca foram escandalosos. O contrário é que o poderia ser!

Também é de referir, como parênteses, que a queda que observou a parcela do EBE em Portugal nesses anos resultou, em grande parte, do abandono e sabotagem de empresas, com fuga de capitais para o estrangeiro.

O período de 1976 a 1980

Se houver quem, de boa fé, ainda coloque algumas reservas à expressão “recuperação capitalista”, a quantificação da repartição do RN decerto as eliminará pois, partindo de uma repartição O&S/EBE de 64/26, de 1975, ela foi sendo alterada até atingir 46/44 no ano de 1980.

Isto é, enquanto a parcela dos O&S se manteve acima de 50% entre 1967 e 1973, para ter um salto brusco em 1974-75, de 1976 a 1980 verificou-se uma queda brutal que levou essa parcela abaixo dos valores de antes de 1967, com evidente recuperação do EBE, que só não ultrapassou os seus valores anteriores por efeito do aumento das CS, nesse ano já nos 10%.

A “travagem” e a retoma de recuperação (a)celerada de 1981 a 1984

Os anos de 1981 e 1982, observados através da evolução desta relação, aparecem como anos de hesitação, em que se travou a queda da parcela dos O&S e a subida do EBE, até com uma inflexão em 1982, para o que não terão sido estranhas algumas tentativas governamentais de resposta à evidente insatisfação (e até revolta) popular face ao rumo da sociedade portuguesa que invertia caminhos de esperança.

Neste interregno, a parcela dos O&S no RN foi sustida nos 46% e subiu para 48% em 1982, com o acrescido significado das CS terem passado a 12% do PIB-cf. Mas logo em 1983 foi retomada a tendência que vinha de 1976, cruzando-se as parcelas da repartição, com o EBE a ultrapassar os O&S, o que não se verificava desde 1965. Em 1984, a parcela do EBE foi de 51% e a dos O&S desceu para menos de 40%, nível nunca antes ultrapassado (para baixo!). O que demonstra até que ponto a “recuperação capitalista” levou longe o ataque à parcela dos O&S na repartição do RN.

De 1985 a 1990 e de 1991 a 1993

Entre 1985 e 1990 estabilizou a repartição, com o EBE a cerca de 50%, e os O&S ao nível dos 40% escassos (38% em 1985, 39% em 1986, 87 e 88 e 40% em 1990). Estes valores da parcela para o “trabalho” são excepcionalmente baixos, significativamente inferiores aos dos períodos anteriores, mesmo os que se situam entre 1953 e 1966, em que o valor mais baixo foi de 44%. É certo que as CS mantiveram tendência ascendente, mas o facto é que, de 1985 a 1990, estabilizaram nos 11/12%.

Para 1991, 92 e 93, verificou-se alguma ligeira recuperação dos O&S - 42, 43 e 42% -, com quebra mais acentuada do EBE pelo facto das CS terem subido para 13 e 14% em 1992 e 1993. De qualquer modo, além do necessário estudo a fazer das CS, da sua divisão entre efectivas e fictícias e das suas aplicações, é de sublinhar que a ligeira subida dos O&S não fez com que o seu nível atingisse o valor mais baixo observado em todos os anos antes de 1983, ou seja os 44% de 1958, ficando sempre abaixo das parcelas do EBE, o que também não se verificou entre 1966 e 1983.

Um paralelismo evidente e indispensável

Não só o estudo das CS será necessário e urgente para completar esta abordagem da evolução da repartição do RN. Que, no entanto, valerá por si só de tal modo ilustra expressivamente um tempo português relativamente longo.

Esta evolução quantificada, com todo o significado no plano social, decorreu como resultado/reflexo das políticas internas marcadas pela relação de forças sociais, de classe. Há um claro paralelismo entre o faseamento que decorre da repartição do RN e um outro faseamento a partir de períodos de predominância ou de domínio político, tal como protagonizados por partidos ou personalizados por figuras políticas.

Não vamos fazer uma análise exaustiva, ou sequer minimamente aprofundada, desse paralelismo entre as políticas-políticas e as políticas-económicas (*), mas deixamos algumas referências que se podem justapor ao faseamento que as “séries longas” possibilitou e justifica no que respeita à repartição dos rendimentos:

- fascismo, colonialismo e país fechado ao exterior (Salazar);

- aparente abrandamento por necessidade de sobrevivência, “modernização”, alguma abertura ao exterior (Marcelo, Rogério Martins, Sá Carneiro);

- ruptura com o fascismo e colonialismo, novos rumos para Portugal (25 de Abril de 1974, 28 de Setembro de 1974, 11 de Março de 1975);

- recuperação capitalista, primeira “carta de intenções” ao FMI (PS, PS com CDS, Mário Soares);

- reacção popular e travagem na (a)celerada recuperação, tentativa “social-democrata” (PSD, AD, Sá Carneiro, governos presidenciais, Lurdes Pintassilgo);

- retoma da recuperação capitalista, segunda “carta de intenções” e a “Europa connosco” (PS, Bloco Central, Mário Soares, Mota Pinto, Ernani Lopes);

- estabilização em situação de grandes desfavor para os trabalhadores e as actividades produtivas nacionais (inte-gração na CEE, Cavaco, Cadilhe);

- necessidade de ligeira (e insuficiente) correcção das políticas anti-sociais.


Cruzar, actualizar e utilizar na luta política de hoje

Este trabalho abre pistas de reflexão e de continuidade. Pelo menos para quem o fez. Uma, que surge de imediato, resulta da necessidade de cruzar os elementos da “série longa” relativa aos rendimentos, e sua repartição, com a da evolução demográfica, e sua vertente social, sobretudo face às transformações que se verificaram ao longo de todo o período no que respeita ao trabalho, seu conceito e utilização da força de trabalho.

Depois, é também necessário que as “séries longas” se possam actualizar, isto é, que não nos tenhamos de quedar em 1993 quando já se está no final de 1997. No entanto, esta actualização é muito difícil e não se entende como, tendo o BP editado estas tão úteis “séries”, depois não possibilite a sua fácil actualização, através dos elementos que são apresentados nos seus relatórios anuais. Nos que se seguem a 1993, podem encontrar-se quadros relativos ao PIB na óptica da despesa, ao RD de particulares e ao PIB na óptica da produção, sem que seja possível fazer a “ponte” para as “séries longas”, tal como as abordámos numa tentativa de as aproveitar numa perspectiva social, que se pretende fundada em conceitos marxistas. Talvez não seja por acaso que existe esta dificuldade...

Por último, estas indispensáveis pistas de continuidade de trabalho representam muito estudo por fazer, muita análise a continuar aproveitando o que nos faculta informações muito interessantes e úteis. Para interpretar a realidade passada e para ajudar à luta pela transformação social.

(*) - como, durante anos a fio, procurámos fazer nas aulas de Estudos Aplicados de Economia, no Instituto Superior de Economia.


«O Militante» Nº 231 de Novembro/Dezembro de 1997