A revisão constitucional ainda não acabou!

Por João Amaral
Vice-Presidente do Grupo Parlamentar do PCP




A Lei de Revisão Constitucional foi publicada no dia 20 de Setembro, estando assim em vigor desde o passado dia 5 de Outubro de 1997.

É possível e politicamente útil fazer agora um balanço completo da sua génese, do processo seguido para a sua efectivação, do seu alcance. Mas, uma observação fundamental a fazer refere-se à forma prevista para executar algumas das mais graves alterações aprovadas. Trata-se das situações (designadamente no que respeita ao sistema eleitoral para a Assembleia da República, ao sistema eleitoral para as Câmaras Municipais e ao voto dos não residentes em Portugal para o Presidente da República) em que a execução das alterações introduzidas está dependente de lei a aprovar pela Assembleia da República por maioria de dois terços dos Deputados presentes.

Degradação do texto constitucional

Isto significa uma degradação do texto constitucional, já que matérias com o alcance e importância como as mencionadas deixam de estar definitivamente reguladas, como deviam, no texto da Constituição. É uma degradação do texto da Constituição entregar à lei, em vez de regular devidamente na Constituição, qual o sistema eleitoral para a Assembleia da República, a definição do universo de eleitores do Presidente da República ou a definição da forma de eleição e de composição da Câmara Municipal, todas matérias que eram devidamente reguladas na Constituição.

Mas esta entrega à lei significa também que algumas portas que a revisão constitucional abriu para serem perpetrados graves atentados à democracia não têm que ser forçosamente transpostas. A revisão constitucional permite, mas não impõe, a violação da regra da proporcionalidade na eleição da Assembleia da República. Permite, mas não impõe, a violação dos princípios da eleição directa da Câmara Municipal e sua composição plural, segundo a regra da proporcionalidade. Quanto à eleição do Presidente da República, passando a ser previsto que sejam eleitores os não-residentes, a revisão prevê que seja a lei a definir quais é que, em concreto, o poderão fazer, não impondo assim que todos o possam fazer, designadamente aqueles que não têm ligações relevantes à realidade nacional.

É por tudo isto que a primeira palavra na análise da revisão constitucional tem de ir para a afirmação de que algumas das piores alterações visadas pela revisão constitucional não estão consumadas e podem ser inviabilizadas desde que a lei não as acolha.

Para que isto suceda, é essencial reforçar a denúncia política e jurídica das soluções que a revisão constitucional veio permitir (mas não impor) para as eleições da Assembleia da República, Presidente da República e Câmaras Municipais. E é necessário incentivar a luta a todos os níveis contra essas soluções previstas na revisão constitucional. É importante recordar que a aprovação dessas normas durante o processo foi feita sob uma chuva de críticas vindas dos mais variados sectores, desde o movimento popular, passando pelos mais conhecidos constitucionalistas, até conhecidas figuras democráticas e mesmo alguns dos Deputados da bancada socialista (que, no entanto, acabaram por não levar até ao Tribunal Constitucional as suas objecções, apesar do PCP ter disponibilizado as assinaturas que, juntamente com as desses Deputados, seriam suficientes para a fiscalização da constitucionalidade da lei de revisão constitucional). Foi a força desse movimento de opinião (onde tem de ser salientada a acção dos ex-Deputados Constituintes e da Assembleia da República que promoveram no Porto algumas sessões de denúncia) que muito
provavelmente influenciou a configuração das soluções constitucionais, ajudando a transferir para a Lei a concretização daqueles atentados aos princípios eleitorais democráticos.

Caracterização da revisão

Nessa batalha política, a que o nosso Partido é chamado, importa ter presente a história, o processo e o conteúdo desta revisão constitucional.

Quanto à caracterização da revisão, o essencial pode resumir-se chamando a atenção para dois pontos. Primeiro: a revisão constitucional de 1997 tem como primeiro objectivo possibilitar aos dois partidos do bloco central, PS e PSD, garantirem o rotativismo no governo, facilitando a obtenção de maiorias e dificultando e diminuindo a representação política de qualquer força política alternativa, em especial do PCP. Segundo: a aprovação da revisão constitucional de 1997 vem revelar mais uma vez o profundo entendimento entre PS e PSD, com o PS a aceitar e a partilhar as reivindicações políticas da direita, em conjugação com o PSD.

Estes dois pontos essenciais mostram que o PS e PSD como partidos políticos caminham no sentido de, em conjunto, concretizarem uma reconfiguração do regime político português, que sirva aos dois no acesso ao poder (em conjunto ou rotativamente), visando garantir a perpetuação das políticas de direita que ambos executam, ao serviço dos mesmos interesses.

Tornam-se assim mais claras as razões que levaram à realização desta revisão constitucional, o processo que foi seguido e o tipo de alterações realizadas. Quanto à realização desta revisão, muitas foram as vozes que disseram publicamente que não existia em Portugal nenhum problema de regime, que impusesse a realização de uma revisão. Reputados constitucionalistas apelaram à estabilidade do texto constitucional, salientando que entre 1982 e 1992 tinham sido realizadas três revisões, duas delas muitas extensas. Mas, PS e PSD estavam determinados, e tinham de facto um problema de regime. Esse problema decorre das dificuldades em se imporem ao eleitorado como alternativa um do outro, com o risco de o eleitorado vir mais tarde ou mais cedo a reforçar uma real alternativa. A revisão constitucional torna-se assim necessária para PS e PSD, para defender e potenciar administrativamente a representação política dos dois partidos do bloco central, pela viciação da democraticidade do sistema eleitoral.

Processo

Quanto ao processo, se os objectivos eram no essencial aqueles, então forçosamente tinham de ser concretizados conspirativamente pelos estados maiores dos dois partidos.

Guterres e Marcelo, bem como Lacão e Marques Mendes, portaram-se como um "gang" de assaltantes, combinando às escondidas o golpe de mão à Constituição, que depois as suas obedientes bancadas parlamentares concretizaram. Se o objectivo fosse (como chegou hipocritamente a ser anunciado por Guterres) realizar uma revisão com alguns aperfeiçoamentos à Constituição, aprovados de forma transparente e com a colaboração de todos os partidos, então o terreno para a revisão teria sido o do Plenário da Assembleia e o da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional. Mas, o objectivo pretendido não era o anunciado. Este servia só para “embalar” a opinião pública na operação de lançamento da revisão. O objectivo político da revisão só servia o PS e o PSD e a política de direita que ambos executam e por isso, por uma razão da lógica estrutural decorrente do objectivo verdadeiro, a revisão só seria possível por um negócio PS/PSD, feito à revelia da Assembleia, às escondidas, de sopetão, nas costas de toda a gente, executado a mata-cavalos.

O que se passou desde a assinatura do acordo PS/PSD até à votação da lei da revisão foi um processo político vergonhoso. O debate sério foi substituído pela obediência. Os recalcitrantes da bancada do PS foram deixados falar aqui e ali, mas, por cima disso, estava a vontade política da direcção do PS, empenhada de alma e coração na concretização do acordo. Todos os prazos foram apertados, até à cerimónia final da votação da lei a 3 de Setembro passado, um ritual que deu à Assembleia o estatuto de câmara de eco da vontade dos estados maiores do PS e do PSD.

Conteúdo

O essencial do acordo está nas alterações já referidas. É a admissão dos círculos uninominais na eleição da Assembleia, a admissão do voto dos não-residentes na eleição do Presidente e a admissão de que as Câmaras deixem de ser eleitas directamente e deixem de ter uma composição plural segundo a regra da proporcionalidade.

Mas a revisão não se ficou por aqui. A revisão constitucional é muito extensa, envolve alterações a numerosíssimos artigos, pela primeira vez obrigou mesmo a uma renumeração de artigos. Esta extensão deve-se a três factores conjugados: à necessidade sentida pelo bloco PS/PSD de aproveitar a oportunidade para desferir mais alguns golpes na arquitectura democrática da Constituição, em domínios onde poderiam estar a sentir que a Constituição estava a ser um obstáculo; à necessidade de “enfeitar” as malfeitorias espalhadas pelo texto com umas pequenas benfeitorias; e ao facto de o processo de aproximação ao acordo PS/PSD ter sido longo, o que levou a Comissão a trabalhar meses em minucioso trabalho, que abriu espaço a espalhar pela Constituição muitas alterações, às vezes simples “bonitinhos” completamente inúteis.

As melhorias do texto constitucional não relevam no balanço da revisão. Enunciá-las ao lado dos atentados efectivados, seria simultaneamente desvalorizar esses atentados e dar a essas melhorias um valor que não têm. Num trabalho técnico, o enunciado de “bonitinhos” e pequenas melhorias será necessário; numa apreciação política, o seu diminuto valor torna-os irrelevantes, praticamente sem incidência no quotidiano dos cidadãos. Aliás, muitos desses “bonitinhos” limitam-se a dar assento constitucional a soluções já existentes na Lei, ou então, são soluções que podiam ser aprovadas por lei ordinária, mesmo sem assento constitucional.

Alterações de sentido negativo

Já quanto às alterações de sentido negativo, elas vão pesar nas instituições e no quadro jurídico. Um enunciado sumário mostra a sua extensão.

Assim: o capítulo das regiões autónomas foi profundamente modificado, designadamente quanto à competência legislativa, valor das leis da República nas regiões, direitos financeiros das regiões, estatuto do Ministro da República, relações entre os órgãos de soberania e as regiões, tudo com um sentido geral que traz perigos para a unidade e a coesão nacionais (trata-se de uma matéria complexa e extensa, sobre a qual esta nota muito geral é claramente insuficiente e redutora, já que as alterações neste capítulo, consideradas individualmente, não têm um sentido unívoco); a regionalização foi gravemente dificultada, pela introdução de um estranho referendo, que muito se aproxima de um referendo sobre uma norma da Constituição, o que é inconstitucional; o número de Deputados pode ser reduzido até 180, o que é outra forma de conseguir distorcer a proporcionalidade; é admitida, de forma subtil, a possibilidade de governamentalizar o Ministério Público; é possibilitado que o Conselho Superior da Magistratura deixe de ter uma maioria de juízes, possibilitando a sujeição da magistratura a uma instância politicamente dominada; são atribuídas às Forças Armadas missões externas num quadro de subordinação a alianças como a NATO; são admitidas restrições ao direito de greve; é eliminada a obrigatoriedade da existência de um sector público; é prevista a detenção para identificação (uso do B.I.); é admitida a extradição de portugueses, bem como a extradição para países que apliquem a prisão perpétua; é constitucionalizado o segredo de justiça, na tentativa de limitar o jornalismo de investigação; é admitida a transformação das Forças Armadas num corpo profissional, sem participação da generalidade dos cidadãos; são permitidas restrições aos direitos fundamentais das polícias, incluindo de polícias que hoje não sofrem essas restrições (caso da PJ). Esta enumeração está longe de ser exaustiva, mas mostra que, à boleia do essencial, muitas alterações negativas foram introduzidas.

Uma última nota: se uma revisão constitucional podia ter algum sentido útil, seria para permitir um referendo à adesão de Portugal ao Tratado de Maastricht e à moeda única. Mas aí, a resposta do PS e do PSD foi negativa. A única alteração realmente necessária não foi feita!


«O Militante» Nº 231 de Novembro/Dezembro de 1997