Porque razão as mulheres de Teatro
não têm voz no Teatro?

Por Fernanda Lapa
Actriz encenadora




Em 1994, um pequeno grupo de mulheres de Teatro de Lisboa resolveu investigar até que ponto o Teatro em Portugal seria um Anjo - quer dizer, não teria sexo.

É claro que estas mulheres, profissionais de há muitos anos, andavam preocupadas com muitas coisas, as mesmas que preocupavam os seus colegas homens e mais algumas que lhes diziam directamente respeito.

Por exemplo: que raramente tinham voz na escolha do teatro que se ía fazendo; que raramente possuíam os meios de produção mínimos para afirmar a sua identidade criativa; que passavam a vida à espera de serem escolhidas e raramente podiam fazer escolhas; que nos elencos eram minoritárias e estavam mais vezes desempregadas que os seus colegas do sexo masculino; que passavam a vida a interpretar figuras criadas por homens e que, talvez por isso, a imagem de mulher que davam no palco era, na maior parte das vezes, completamente desligada do real.
Resolveu este grupo de mulheres, para tentar objectivar o seu mal-estar, analisar os números e fazer um pequeno estudo estatístico do panorama teatral do ano anterior. Concluíu, então, que o Teatro Português não era afinal um Anjo assexuado, mas pelo contrário uma figura muito masculina. Uma espécie de pater-família, liberal é certo, mas absolutamente nada democrático visto ignorar, ou mesmo impedir, a expressão regular da identidade feminina nos palcos portugueses.

Resolveu, então, este grupo de mulheres, fazer qualquer coisa que pudesse ajudar a alterar este estado de coisas e, a 8 de Março de 1995, apresentou-se publicamente como uma nova Companhia de Teatro, totalmente dirigida por mulheres. Numa homenagem a Molière, decidiu chamar-se Escola de Mulheres. E, porque esse grupo acreditava que sem trabalho não se produz Arte, acrescentou-se Oficina de Teatro.

Com o primeiro espectáculo - uma dramatização de textos de várias escritoras de língua portuguesa - foi lançado o Manifesto, que tentava responder a duas questões que imediatamente surgiram: Porquê? e Para quê?

Porquê?

Somos mulheres de Teatro, profissionais com experiências diversas e reconhecidas, pertencentes a gerações diferentes mas com o sentimento comum do papel de subalternidade a que a mulher tem sido reduzida no panorama teatral português.

Referimo-nos à condução dos processos criativos, à política de reportórios, ao relacionamento com os poderes instituídos, bem como, de um modo geral, às tarefas que envolvam poderes de decisão. Consideramos que, como consequência, a imagem da mulher veiculada pela esmagadora maioria do Teatro produzido em Portugal não reflecte a evolução profunda do seu papel na sociedade portuguesa nos novos desafios que enfrenta, na procura de uma dinâmica comportamental autónoma, nem na concretização da sua identidade - situação tanto mais aberrante quanto é sabido que dois terços do público que acorre aos teatros é constituído por mulheres.

Pretendemos, por isso, contribuir para a alteração deste estado de coisas e para o consequente enriquecimento do tecido teatral português, através de um projecto inédito no nosso país, o qual:

1 - Privilegie a criação e o trabalho feminino no Teatro

2 - Promova uma nova dramaturgia de temática feminina e dê da mulher uma imagem consentânea com a realidade.

Privilegiar a criação e o trabalho feminino no Teatro

Desde os anos sessenta que nos EUA, Canadá e Europa se vêm formando Companhias de Teatro essencialmente femininas, que privilegiam textos de autoria feminina, representados
e dirigidos maioritariamente por mulheres.

Propõem ao público formas inovadoras e universos humanos raramente abordados no Teatro. Essas unidades de produção de espectáculos têm conseguido afirmar-se e obtido apoios estatais importantes, na medida em que o seu papel é mundialmente reconhecido na luta contra a discriminação, pela igualdade e o direito à diferença das mulheres.

O Movimento do Teatro Independente, que eclodiu em Portugal com o 25 de Abril, contou, desde a primeira hora, com a participação empenhada de muitas mulheres.

Passados quase 20 anos, nos dezanove grupos independentes, com subsídio regular, existentes em todo o país (1993), apenas uma única mulher se encontrava na direcção artística, sendo interlocutora reconhecida pela Secretaria de Estado da Cultura (SEC).

Segundo dados fornecidos pela SEC, esses mesmos grupos teriam estreado em 1993, 46 novos espectáculos, dos quais somente 4 de autoria feminina e 1 de co-autoria. Quanto a encenadora, apenas 2, analisados 37 desses espectáculos, 20 eram de elenco maioritariamente masculino, 15 com distribuição paritária e somente 2 com maioria de mulheres.

O reportório habitualmente representado não reflecte o papel que, em Portugal, nos últimos anos, a mulher, apesar de tudo, tem vindo a desempenhar e as novas contradições que daí advêm, veiculando, quase sempre, pontos de vista masculinos sobre as mulheres.

Procuramos, através do nosso projecto, contribuir para um Teatro mais justo - que dê iguais condições e oportunidades de trabalho às mulheres - mas também mais adequado ao real, um Teatro que não exclui os homens, antes convida os que quiserem juntar-se a nós como iguais para uma investigação sobre as aspirações, as dúvidas e inquietações de toda a sociedade e não apenas de parte dela.

Promover uma nova dramaturgia de temática feminina e dar da mulher uma imagem consentânea com a realidade

Em Portugal não existe uma forte tradição dramatúrgica. A agravar este estado de coisas, as poucas obras teatrais publicadas e/ou levadas à cena são esmagadoramente de autoria masculina, reflectindo consequentemente o universo masculino.

Como tal, pretendemos não só promover a escrita teatral no feminino e divulgar dramaturgia feminina inédita, como trazer à prática teatral escritores de língua portuguesa.

Para quê?

Criação de uma Companhia Teatral itinerante, sediada na Grande Lisboa e composta maioritariamente por mulheres, cujos objectivos são:

1 - Produção de espectáculos teatrais que promovam a criação feminina nas várias áreas: autoria, interpretação, encenação, cenografia, desenho de luzes, etc.

2 - Produção de espectáculos teatrais de temática feminina

3 - Produção de dramaturgia de autoria feminina, com a colaboração de escritoras de língua
portuguesa

4 - Divulgação, através de leituras encenadas, de dramaturgia feminina inédita

5 - Work-in-Progress: trabalho directo com grupos populacionais específicos, grupos desfavorecidos e outros para a elaboração de espectáculos

6 - Promoção de encontros entre autoras teatrais portuguesas

7 - Criação de ateliers de formação, especialização e reciclagem nas várias áreas da criação teatral, bem como nos “ofícios” do teatro não tradicionalmente femininos

8 - Criação de uma rede de intercâmbio europeia que permita a recolha de informações, o encontro de criadoras e a circulação de espectáculos

9 - Organização de um Festival Internacional de Teatro Feminino

10 - Apoio e incentivo à criação de primeiras obras de jovens criadores teatrais.

É evidente que o Governo cavaquista de então recusou liminarmente tomar conhecimento da existência desta Companhia. No Concurso Público Anual para atribuição de subsídios à produção teatral, nem resposta obtivemos. Foi a tentativa (gorada) de redução ao grau zero.

E começou a saga da tentativa de sobrevivência e afirmação do projecto.

Para uma Companhia de Teatro, o local próprio de trabalho é essencial, já que as ferramentas são fundamentalmente os corpos e as vozes dos actores. Nem em Lisboa, nem na Grande Lisboa, nenhuma entidade pública ou privada, retrógrada ou esclarecida, nos acoitou.

Até hoje, para conseguirmos pôr em prática parte do que nos propomos, somos obrigadas a dispender o triplo das energias, quer a mendigar espaços de empréstimo, quer a executar o dobro ou o triplo das tarefas que os nossos colegas homens normalmente executam.

Quando o Governo “rosa” ganhou as eleições, a Escola de Mulheres possuía já um curriculum importante e granjeara respeito junto da classe teatral. Obtivemos então um pequeno subsídio e a promessa de, em 97, ser reconhecido o estatuto a que teríamos direito.

Hipocritamente o estatuto foi-nos concedido. Somos agora uma Companhia apoiada anualmente. O conteúdo é que foi esvasiado. Impossível, com a dotação concedida, ter um elenco fixo de intérpretes, sala de trabalho apetrechada, serviços de produção e técnicos especializados para uma regular produção de espectáculos.

Consideradas abaixo de Companhias recém-formadas, não podemos deixar de concluír que este Governo não tem outra resposta ao facto de sermos mulheres e querermos mexer com o instituído senão marginalizar-nos.


«O Militante» Nº 231 de Novembro/Dezembro de 1997