Acrise da Saúde continua
Por Carlos Silva
Santos
Médico de Saúde Pública e Ocupacional
Membro da Comissão Nacional para as Questões da Saúde do PCP
Os problemas da saúde/doença são objecto de uma elevada
atenção e preocupação por parte dos portugueses, de tal modo
que este sector se destaca na vida nacional, não só pela
importância da resposta que dá às situações, mas, muito
particularmente, pelo grau de insatisfação e insegurança que
cria devido às deficientes condições de funcionamento de
muitos dos seus serviços.
Dois anos decorridos desde a tomada de
posse do actual Governo e as expectativas existentes, quanto à
efectiva melhoria da prestação de cuidados de saúde e quanto
à alteração do rumo que vinha a ser seguido pelos governos
anteriores, foram defraudadas. Os responsáveis pelo Ministério
da Saúde não definem opções políticas claras e coerentes
quanto à efectiva defesa e modernização do Serviço Nacional
de Saúde (SNS) e mostram evidente incapacidade de concretizar
propósitos genéricos e alguns objectivos constantes de
documentos como "estratégia nacional de saúde para
1997" e as suas versões regionais, que têm sido
merecedores de apoio.
A acessibilidade aos centros de saúde e unidades hospitalares
continua a constituir um gravíssimo problema - com falta de
médicos de família, enfermeiros e outros técnicos,
inadmissíveis listas de espera, atrasos no atendimento de
utentes (mesmo quando portadores de doenças graves), e
acentuadas discriminações de natureza classista (de que o
Hospital de Santa Cruz constitui uma das expressões mais
escandalosas).
A prioridade aos Cuidados Primários de Saúde não foi concretizada. E a prestação de cuidados de saúde de qualidade continua a ser um objectivo longínquo, apesar das declarações positivas de carácter pontual e do empenhado esforço de muitos dos profissionais do SNS.
Os portugueses pagam pela saúde
directamente do seu bolso cada vez mais, para além do que
desembolsam através dos impostos (por isso a percentagem dos
gastos públicos em relação ao total da despesa com a saúde
não ultrapassava os 55.5% em 1993). São conhecidos propósitos
oficiais para acentuar a mercantilização da saúde, o que
conduzirá em linha recta ao agravamento deste quadro.
Dois traços negativos fundamentais
Na acção do Ministério da Saúde sobressaem dois traços
negativos fundamentais: a cedência às pressões dos grandes
interesses instalados no sector - multinacionais dos
medicamentos e dos equipamentos, sector convencionado dominado
pelos monopólios da hemodiálise e das análises clínicas,
grandes construtores civis - que repartem entre si o grosso dos
recursos públicos; e a manutenção, praticamente
inalterada, da herança política neoliberal de uma década
de governos do PSD e das suas traves mestras legislativas
(designadamente da Lei de Bases, Estatuto do SNS e decreto-lei da
Gestão Hospitalar).
A pressão dos grandes interesses e a retomada de iniciativa por parte dos sectores neoliberais (que apostam na privatização da saúde, na destruição do SNS tal como está constitucionalmente consagrado e na sua transformação num sistema mínimo e assistencialista para a população mais pobre) estão a agravar as contradições internas no Ministério da Saúde e a minar os propósitos de quantos afirmam pretender a defesa e a modernização do SNS.
É o caso da política do medicamento em que ressaltam as vultuosíssimas concessões feitas pelo Governo aos interesses que dominam o sector, de que é exemplo o ruinoso acordo celebrado há meses com a APIFARMA, onde prevaleceram os interesses das multinacionais farmacêuticas. Agravado pelo abandono de políticas que permitiriam uma significativa racionalização dos gastos neste sector e a diminuição dos encargos suportados pelos utentes, para além da moralização de todo o circuito de comercialização - prescrição, designadamente através da utilização dos genéricos, da elaboração de um Formulário Nacional para o ambulatório e do desenvolvimento de funções farmácia nas unidades do SNS.
São os acordos mantidos com o sector da medicina convencionada e que salvaguardam os ilegítimos privilégios privados construídos à sombra da subutilização dos recursos e das potencialidades do SNS.
É a política de restrições financeiras e funcionais em relação às unidades do SNS - nomeadamente dos cuidados de saúde primários - em flagrante contraste com as concessões feitas aos sectores privados que repartem entre si o fundamental dos recursos do sector.
É a linha da crescente desresponsabilização do Estado na área da saúde, consubstanciada na proposta do Ministério da Saúde de alteração do estatuto jurídico dos hospitais públicos, de modo a transformá-los em empresas públicas e a tornar possível a sua privatização parcial ou total (como a Ministra da Saúde explicitamente admitiu na esclarecedora recente entrevista que concedeu ao Independente) e do estabelecimento de um sistema de contratação individual dos seus profissionais.
É certo que sobre os hospitais públicos, do mesmo modo que sobre os centros de saúde e sobre o SNS no seu conjunto, incidem pesados constrangimentos de natureza burocrática, administrativa, organizativa e funcional. Mas esses constrangimentos podem e devem ser ultrapassados sem pôr em causa a natureza pública dos serviços de saúde, garante fundamental da concretização do direito à saúde constitucionalmente consagrado. É nesse sentido que importa empreender uma profunda reforma de orientação democrática - como aquela cujas orientações estratégicas e principais medidas o PCP apresentou ao País. E que urge também aprovar novas leis sobre a direcção e a gestão dos serviços de saúde e do SNS no seu conjunto e sobre o seu financiamento, e alterar as disposições privatizadoras que constam da Lei de Bases e do Estatuto do SNS.
Neste período de discussão do orçamento
é previsível que o Governo faça grande alarido com as
promessas de construção de novos equipamentos de saúde, sem
clarificar a opção de os colocar ao serviço e sob o controlo
das populações, omitindo as necessárias medidas de fundo para
a reforma democrática e global dos serviços de saúde.
A política de saúde desejável
A reforma do SNS tem, segundo a Comissão Nacional para as
Questões da Saúde do PCP, de orientar-se por cinco linhas
estratégicas fundamentais e quatro medidas de política
prioritárias.
Estratégias fundamentais:
desgovernamentalização, descentralização, autonomia e
financiamento suficiente; promoção da efectividade e
eficiência; gestão democrática e participada pelos
trabalhadores da saúde e pelas populações; garantia da
qualidade em saúde; humanização dos serviços.
Políticas prioritárias
. Aprovação de um plano de emergência em relação
aos problemas de acessibilidade aos centros de saúde e unidades
hospitalares, que ponha termo a inadmissíveis listas de
espera e atrasos no atendimento de utentes, designadamente
através da adopção de medidas de carácter extraordinário
até à normalização funcional da resposta dos vários
serviços; aproveitamento da capacidade instalada do SNS,
alargamento do funcionamento horário das consultas externas, dos
blocos cirúrgicos e dos meios complementares de diagnóstico;
introdução imediata de um sistema de financiamento das unidades
de saúde que tenha como base a quantificação dos serviços
prestados; abolição das taxas moderadoras.
. Aprovação de um pacote de medidas urgentes em
relação aos medicamentos: congelamento dos preços e não
elevação da comparticipação por parte dos utentes; efectiva
introdução dos medicamentos genéricos, aprovação de um
Formulário Nacional para o ambulatório (a exemplo do que já
existe a nível hospitalar) e desenvolvimento da função
farmácia nas unidades do SNS, o que limitaria
extraordinariamente a promoção que as multinacionais vêm
fazendo de medicamentos desnecessários, ineficazes e
dispendiosos, e permitiria uma racionalização de despesas da
ordem das muitas dezenas de milhões de contos.
. Aprovação de uma nova lei de direcção e gestão
democráticas dos serviços de saúde, que
desgovernamentalize o sector e substitua progressivamente os
mecanismos de comando burocrático administrativo central por
processos de autonomia e de auto-regulação democrática em que
concorram e se equilibrem os poderes da tutela, das comunidades
servidas pelos serviços e dos profissionais de saúde. A
aprovação desta nova lei envolve a revogação do decreto-lei
cavaquista da gestão hospitalar e a alteração dos articulados
de inspiração privatizadora e neoliberal que constam da Lei de
Bases e do Estatuto do SNS.
· Criação do Instituto de Avaliação da Qualidade
dos Serviços de Saúde, com carácter público, dirigido
por especialistas de reconhecido mérito técnico e científico,
de forma a atestar mediante avaliações periódicas a qualidade
do exercício dos serviços e estabelecimentos de saúde.
O poder local e a saúde
Em plena pré-campanha eleitoral para as autarquias é
necessário que os eleitos e candidatos da CDU valorizem a obra
feita e a fazer também nesta área que não é indiferente ao
poder local.
Apesar de não ter formalmente responsabilidade na prestação de cuidados de saúde, médicos e não médicos, o poder local sempre soube fazer a ligação fundamental entre bem- estar e saúde, entre qualidade de vida e as premissas essenciais à saúde, entre saneamento básico, água potável, habitação e urbanismo e a saúde das populações. Têm bastante razão aqueles que afirmam que as autarquias dão um contributo para a saúde não inferior ao atribuído aos serviços de saúde, hospitais e centros de saúde.
Na verdade, indicadores do estado de saúde como a mortalidade infantil, as doenças infecciosas de origem hídrica ou transmitidas por vectores (insectos e roedores) estão intimamente ligados ao desenvolvimento do poder autárquico e à sua atenção ao saneamento básico e ao abastecimento público de água.
Assim é fácil concordar com a definição de Município saudável que corresponda no essencial aos objectivos dos autarcas da CDU. Trata-se de uma autarquia que possui uma elevada cobertura da população com esgotos tratados, com abastecimento de água, com recolha e tratamento de lixos, com adequada rede viária, sem barracas ou casas degradadas e, muito importante, com munícipes informados e participantes.
Numa autarquia CDU que cumpra os requisitos base da saúde devem acrescentar-se outros factores intervenientes que, não dependendo directa ou unicamente do poder local, determinam, em última análise, o bem-estar das populações. São eles as disponibilidades económicas e as condições de usufruir de um ambiente ecológico, com acesso à cultura, ao desporto e ao lazer.
A defesa de serviços de saúde
acessíveis, globais e de qualidade faz parte das
responsabilidades dos autarcas e candidatos da CDU, esclarecidos
em matéria de política de saúde.
«O Militante» Nº 231 de Novembro/Dezembro de 1997