Os inquietos
Por Correia da Fonseca
Crítico de televisão
Houve um tempo em que os grandes debates acerca da televisão,
das suas eventuais nocividade ou bondade, se situavam quase
exclusivamente em torno da questão da violência na TV e da sua
provável repercussão sobre o real quotidiano, designadamente
sobre os segmentos infantis e juvenis do público. Havia outros
problemas, é claro, e alguns deles verdadeiramente fundamentais,
mas era a endémica polémica sobre a televiolência e os seus
efeitos que conquistara como que direito de cidadania e
residência, embora discretas, na comunicação social. O
resultado do debate, se é que verdadeiro resultado havia, era um
veredicto de absolvição por falta de provas: na impossibilidade
de demonstrar por A + B que a violência na TV resultava em
modelos de comportamento que a vida tendia a imitar, a televisão
era "mandada em paz" como se diz nos tribunais a
sério, livre para continuar a constituir risco grave para as
sociedades que, perante outros casos, não se coibem de adoptar
medidas preventivas que conjurem o perigo mesmo antes do
estabelecimento rigoroso, e provavelmente impossível, de uma
relação de causa e efeito. O que, já se vê, é de elementar
bom-senso.
A questão da violência na TV não está resolvida nem está ultrapassada. Ainda recentemente os gestores das três estações portuguesas de televisão assinaram um protocolo sobre o assunto, de eficácia provavelmente nula mas comprovador de que o problema subsiste. Porém, têm vindo a surgir na imprensa artigos de autores assumidamente preocupados com dúvidas de mais vasto âmbito, mais profundas, fundamentais. São o efeito da intervenção pública de "opinion makers" de diversa formação e diferente prestígio que vieram formular a acusação, ou no mínimo adiantar a suspeita, de que a televisão se tornou um factor destruidor da própria vida democrática. Da vida democrática tal como é entendida pelos autores e praticada melhor ou pior nos lugares onde estão implantados. Quer dizer: da vida nas democracias que em tempos eram designadas por "ocidentais", antes que o "Ocidente" transbordasse dos seus naturais limites geográficos e se estabelecesse em Tóquio, Moscovo, Jerusalém, Jacarta.
Os afectos e os negócios
Os elementos acusatórios são quase sempre envoltos em halos de indefinição bastantes para que fique a flutuar uma inquietação esparsa mas não o veemente impulso da adopção de medidas vigorosas. Refere-se a massificação, é claro, no âmbito da teoria mcluhaniana da "aldeia global", há décadas utilizada como acolhedor biombo que nos dispensa de ver, sequer de saber, tudo quanto existe fora da globalidade da tão famosa aldeia e que é talvez o mais importante. Invoca-se os múltiplos poderes que a TV exerce por indução, ditando a milhões de criaturas passivas o que elas hão--de pensar, escolher, sonhar, crer, rejeitar, odiar. O que elas hão-de "comprar" naquele muito amplo sentido da palavra que permite aplicá-la indiferentemente a uma embalagem de detergente ou a um presidente da república. Em suma, o que essas almas inquietas exprimem é o receio de que a televisão, que tem sido tão boa amiga no justo combate ao comunismo e a todas as doutrinas subversivas que lhe estão próximas, que foi mesmo uma aliada preciosa no derrube de muros e na libertação de mercados até então dificilmente penetráveis, ande agora a dar razão a más-línguas que não apenas lhe querem mal como são também adversárias do admirável mundo livre.
A formalização destes receios já deu motivo a enérgicos desmentidos oriundos de boas fontes. Que não senhores, que não há razão pa-ra sustos, que a TV não destroi valores, capacidades, lucidez. Que tudo são pesadelos de alguns in-telectuais ociosos que o pessimismo de fim-de-milénio anda a mordiscar. Dir-se-ia que estas palavras que se esforçam por ser tranquilizado-ras sem contudo serem tranquilas são de grandes amigos da TV co- mo maravilhosa conquista dos homens. Nestes casos, porém, como aliás em muitos outros, é conve-niente descascar um pouco a superfície das coisas para sabermos melhor o que está por baixo. No que diz respeito a estas generosas intervenções dos presumíveis amigos da ofendida, arriscamo-nos a dar de caras não com amizades e admiração pela TV mas sim com apaixonados afectos pelos múltiplos negócios que a televisão alimenta. Esta televisão, tal como existe e suscita as tais suspeitas, e não qualquer outra.
Rota de colisão
Porque a questão está aí mesmo: esta é uma televisão e são possíveis outras televisões. Esta televisão da década de 90 é, agora na Europa e outros lugares como já o era nas míticas Américas da livre oportunidade e do bem-estar, a TV resultante do êxito que a iniciativa privada (isto é, os poderosos grupos financeiros e negocistas) teve no seu assalto à possibilidade de fazer TV. Vêm alguns derramar algum choro, ou palavras de angustiada dúvida, por pressentirem que a TV que é distribuída a domicílio no mundo agora unipolar provoca efeitos aparentemente in-desejados: decepa a capacidade reflexiva, limita ho-rizontes, substitui a realidade por versões virtuais, injecta uma doentia avidez de posses múltiplas e sempre renováveis que a longo prazo desemboca à beirinha de delinquências de diverso grau. Pois sim. Mas parece estranho que tão percucientes verificações não se dêem conta de que essa televisão afinal tão perigosa, pelo menos tão suscitadora de preocupações, não é assim por acaso: é assim porque foi transformada em piloto automático para caça de clientes, com a rigorosamente necessária ablação de raciocínios que um tal objectivo implica. As clientelas a capturar são-no de álcoois fortes e de bons carros, de aparelhagens para ginástica doméstica e de férias nas Antilhas, mas antes do mais são clientelas da transnacionalidade da ordem capi-talista que, como escreveu um teórico nais propenso a desabafos imprudentes, seria o fim da História. Esta é a televisão para a submissão de mercados; e uma televisão assim revela-se, mais cedo ou mais tarde, em rota de colisão com os interesses fundamentais de cada cidadão, com o mais precioso da sua humanidade e, a uma outra escala, com os projectos de sobrevivência colectiva.
É assim. Podia não o ser. E porque podia não o ser, torna-se óbvio que a TV que está aí, e cuja prática se volta contra os homens de tal modo que suscita inquietações até nos que querem defendê-la, consubstancia o roubo, cometido por alguns contra quase todos, de um património que devia ser comum. Tais inquietações não são compartilhadas pelos que desde sempre denunciaram a expoliação e advertiram contra as suas consequências. Esses, quando muito, divertem-se um pouco com elas: não esperavam que lhes chegassem corroborações vindas de zonas tão distantes. Para lá disso, como é natural, obstinam-se na tarefa que escolheram: lembrar que há outras televisões possíveis e, essas sim, desejáveis. E trabalhar quanto podem para o seu advento. Pois, assim como não chegámos ao fim da História, também não chegámos ao fim da televisão.