A Guerra nos Balcãs *
A Guerra nos Balcãs é um título de hoje. Observado nos
escaparates ou nas montras das livrarias, poderá ser
interpretado como mais uma obra sobre o quadro político, militar
e estratégico resultante do desmembramento recente da
Jugoslávia Federal Socialista. Só a familiaridade com o nome do
autor, John Reed, nos remeterá para tempos mais recuados e,
naturalmente, para outros conflitos na Península Balcânica. A
leitura do livro, porém, proporciona uma tão prodigiosa como
preocupante fusão entre passado e presente, uma vertiginosa
viagem no tempo que nos faz cirandar entre a data da acção,
1915, os correntes anos 90, e acontecimentos passados há muitos
séculos, onde é possível detectar a génese de situações de
instabilidade que não foram, nem estão, resolvidas nesta
região.
Em tempo real, ao ler este livro situamo-nos em plena Primeira Guerra Mundial, cerca de um ano depois de Gavrilo Princip, estudante sérvio bósnio, ter assassinado, em Sarajevo, o arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do trono austro-húngaro. Depois da publicação de México Insurgente, John Reed viaja entre Salonica, Petrogrado e Constantinopla, para sentir o pulsar da guerra. Por razões jornalísticas e pessoais - não fora muito bem sucedido nas frentes francesa e alemã, e esperam-no dissabores em terras russas -, Reed, acompanhado pelo seu amigo Boardman Robinson, ilustrador, detém-se principalmente na região balcânica, ao mesmo tempo atraído e horrorizado por esse «imenso atoleiro de sentimentos guerreiros, de vingança, desprezo e nacionalismo», por esse cenário de conflitos quase tribais. Apercebe-se de purificações étnicas na Macedónia, caminha sobre campos de cadáveres empilhados nos Montes Gutchevo, na Sérvia, antevê o desmembramento do Império Austro-Húngaro, e pressente o fim próximo da autocracia russa. Começava, deste modo, a germinar o seu interesse por uma evolução que lhe iria proporcionar a pujante peça jornalística que o celebrizou - Dez Dias Que Abalaram o Mundo.
A oito décadas de distância, nos escombros deixados por uma nova crise balcânica cuja solução suscita ainda muitas e legítimas interrogações, A Guerra nos Balcãs é um documento precioso. Não para o estabelecimento de fáceis e traiçoeiros paralelismos históricos, mas sim pela oportunidade que proporciona de identificar características regionais e interesses estratégicos externos que vão sobrevivendo, nefastamente, à passagem
do tempo, das correntes políticas, militares e económicas, dos regimes e dos governos, às redefinições de fronteiras e à acumulação de acordos e tratados. Não resistindo, por uma vez, à tentação do paralelismo histórico, vejamos como assenta bem, aos tempos de hoje, esta frase escrita por John Reed em 1915, a propósito da situação nos Balcãs: «As ideias morreram na Europa.»
Cinicamente, depois de Edgar Morin se ter lamentado de que «a Europa morre em Sarajevo», a ideia pretensamente salvadora da crise balcânica dos anos 90 surge do lado de lá do Atlântico, o tão louvado Acordo de Dayton, imposto com a severidade de apertadas camisas-de-forças diplomáticas e militares, e ainda sem tempo de vida suficiente para a prova de fogo da História. Imenso cemitério humano, a Península Balcânica é também um cemitério de acordos e tratados. Colocado perante a «Paz de Dayton», John Reed não teria hesitado em voltar a recomendar às autoridades do seu país, os Estados Unidos, que não se envolvessem nos assuntos de uma Europa em crise, que o desiludiu. Os problemas de fundo subsistem hoje ainda, e toda a envolvente diplomática e militar, feita de hipócritas invocações de princípios, não consegue esconder esta realidade: o que está em causa nos Balcãs, hoje como ontem, são, de facto, interesses económicos e estratégicos - muitas vezes contraditórios - das grandes potências mundias.
* Do Prefácio de José Goulão ao livro A Guerra nos Balcãs, de John Reed, Editorial Caminho, Lisboa, 1997.