A educação vista num relance

Por Paulo Sucena
Membro do Comité Central




Dois anos lectivos passaram desde que este Governo e esta equipa do Ministério da Educação (ME) tomaram posse. Verifica-se que, quase dois anos depois da posse, o ME prossegue a sua actividade como se tivesse recebido um sistema educativo de excelente qualidade em que apenas é preciso introduzir algumas melhorias avulsas. Na verdade, ainda não se viu o ME produzir uma avaliação global e rigorosa do estado da educação, designadamente no que respeita às principais medidas da reforma cavaquista, no sentido de, em diálogo com os professores e as suas organizações sindicais e com outros parceiros sociais, proceder à reforma da reforma e de superar com coragem e efi-ciência as falhas e erros mais graves, patenteados, há longos anos, pelo sistema.

O ME não quer inverter a marcha

Mas não, não foi nesse sentido que o ME caminhou. A reforma curricular e de programas mantém-se praticamente intocada, os modelos de avaliação dos alunos dos ensinos básico e secundário permanecem inalterados, a formação inicial e contínua de professores continua carecida de uma reflexão séria e despojada de quaisquer medidas concretas que assegurem a sua inequívoca qualidade e actualidade e não existe legislação que permita uma eficaz direcção e administração das escolas.

De outro ângulo, constata-se que velhos problemas estruturais, como o analfabetismo, a iliteracia e o insucesso escolar, não sofreram o "ataque" que era necessário à sua progressiva e real resolução. Deste modo somos confrontados com dados relativos a 1992 (retirados de "Um olhar sobre a educação", ME, 1996) que nos mostram que 75% das escolas estão sobrelotadas e que 59% das escolas secundárias têm taxas de ocupação superiores a 1.25; que o analfabetismo atinge quase 1 milhão de portugueses e que este número sobe preocupantemente se pensarmos em termos de literacia; que a taxa de escolarização mostra números confrangedores como os 27% de jovens do grupo etário dos 10-11 anos que ainda frequenta o 1º ciclo ou os 11% da população do grupo etário dos 12 aos 14 anos que não se encontra escolarizada, percentagem de não escolarização que atinge os 36% se nos fixarmos no grupo etário dos 15 aos 17 anos; aliás, deste grupo etário, o da normal frequência do ensino secundário, apenas 40% dos jovens frequenta aquele nível de ensino. O estudo a que nos vimos reportando previa que no ano lectivo de 94/95 apenas 58% dos estudantes obtinha o diploma do ensino secundário. Se passarmos para o ensino superior, verificamos que apenas 45% dos estudantes faz o curso em 5 anos e que 23% dos alunos matriculados no 5º ano regista como tempo de permanência no ensino superior, desde a sua primeira matrícula no 1º ano, oito ou mais anos. Quanto ao ensino básico, o próprio ME reconhece, hoje em dia, que 1/3 dos estudantes abandona o sistema sem concluir o 9º ano.

O panorama é preocupante

Este panorama é tanto mais preocupante quanto é certo que o estudo refere que 74% da população portuguesa dos 15 aos 64 anos possuem, no máximo, o 6º ano de escolaridade e em contrapartida apenas uns baixissímos 5% possuem o ensino superior. Esta situação reveste-se de contornos mais negros se considerarmos que, embora Portugal apresente uma estrutura demográfica com características de envelhecimento, o seu índice de juventude é bastante elevado em comparação com os países da União Europeia.

Se os números referidos não credibilizam o sistema educativo nem prestigiam a escola, o certo é que também o desemprego cuja maior incidência se verifica no grupo etário dos 15 aos 24 anos e nos jovens com níveis educativos intermédios é um factor importante do olhar negativo que a sociedade lança sobre a escola. É oportuno referir que não é legítimo a qualquer governante afirmar que este sistema educativo, pejado de insuficiências, de carências e parco de apoios, antidemocrático porque centrifugador dos alunos provindos de meios desfavorecidos, dá mostras de subida de qualidade pelo facto do Governo ter apostado nos exames do 12º ano os quais mostraram ligeiras subidas de notas em relação ao ano anterior. Tal juízo é totalmente mistificador.

Na verdade, como escreveu o Prof. A. Santos Silva, "os exames não são a panaceia para a aprendizagem. Não perderam a sua parte de aleatoriedade e incompletude, porque não permitem avaliar todas as competências necessárias e as que avaliam fazem-no em condições de grande pressão sobre jovens desprotegidos".

Seria mais uma grosseira mistificação propalar-se que os exames são a "solução milagrosa" para garantir uma boa qualidade de ensino porque ela só será atingida quando o Governo e o ME abandonarem as directrizes da política neoliberal com a consequente desresponsabilização do Estado na área educativa, com a abertura de atraentes canais para a expansão do sector privado em detrimento de uma escola pública de qualidade.

"Dois" ensinos básicos

Não se pode também deixar de referir como exemplo de uma política que menospreza a expansão de uma escolaridade básica de qualidade em moldes democráticos, isto é, assente numa escola inclusiva com a participação de todos, as medidas que pretendem expandir os "currículos alternativos" agora complementadas com um diploma legal (Despacho conjunto nº 123/97) que permite, num ano, aos alunos que não concluam a escolaridade obrigatória a obtenção do diploma do 9º ano de escolaridade.

Estamos assim perante uma ofensiva antidemocrática porque os alunos portugueses que freguentam o ensino básico serão divididos em dois grupos, os que frequentam turmas com currículos regulares e que depois de concluírem o 9º ano podem prosseguir estudos e os que frequentam as turmas com currículos alternativos a quem se dá a possibilidade de alcançarem um diploma do 9º ano se forem aprovados após a frequência de um ano de um curso com uma componente de formação geral (70-100 horas) onde se pretende o reforço (?!) de competências nos domínios da língua portuguesa, da matemática e da língua estrangeira, com uma componente sócio-cultural de igual duração e com uma formação técnica de 820-860 horas. Evidente se torna que com tal currículo não passa de cinismo a possibilidade que o Despacho admite no sentido destes alunos frequentarem o ensino secundário. A realidade que se instaura com o Despacho que criou os currículos e com este, recentemente publicado, é bem outra - é a de que passa a haver dois ensinos básicos, um de primeira e outro de segunda (ou de última?). Com que êxito para os alunos que frequentam o de segunda é o que ainda estamos para ver...

Necessário melhorar as condições de trabalho

Noutra perspectiva observa-se a incapacidade do ME para melhorar as condições de trabalho dos professores e dos estudantes e a sua relutância em regulamentar os incentivos à fixação de professores em zonas desfavoreci-das bem como um intolerável atraso na negociação das matérias relativas à estrutura da carreira e respectiva grelha salarial e na resolução do problema de cerca de 40.000 professores contratados que com muitos anos de docência se mantêm no estado de permanente instabilidade e insegurança de emprego.

Foi neste contexto educativo que os professores e os seus sindicatos, com especial relevo para a FENPROF, desenvolveram a sua actividade institucional e negocial, sempre sustentada por uma forte acção reivindicativa que envolveu dezenas de milhar de educadores e professores em diversas acções, com plenários distritais, regionais e nacionais, lançamento e entrega de abaixo-assinados, concentrações e vigílias levadas a efeito junto ao ME, realização de paralisações nas escolas e aprovação de moções e de outras posições de escola, colocação de faixas e pendões denunciando publicamente situações específicas, contacto e envolvimento da população através da assinatura de posições em defesa da estabilidade dos professores, de uma escola pública de qualidade e da expansão da rede pública da educação pré-escolar, tendo culminado com uma grande manifestação nacional de professores, em 16 de Maio, que foi um importante momento de afirmação dos educadores e professores portugueses em defesa dos seus objectivos reivindicativos e por uma mudança das políticas educativas.

Três grandes eixos reivindicativos

O responsável posicionamento negocial das organizações sindicais representativas dos professores e a sua firmeza reivindicativa aliados à sua tradição de luta exigem, no contexto em que vai abrir o ano lectivo de 97-98, que os professores e a FENPROF assumam três grandes eixos reivindicativos como fulcro da sua acção:

– o primeiro passa pela exigência de uma nova política educativa que, recusando os ditames neoliberais, defenda uma administração e direcção democráticas dos estabelecimentos de ensino e o incremento do princípio da autonomia, uma formação inicial e contínua dos professores de elevada qualidade e centrada nos interesses das escolas e nas necessidades dos docentes, a criação de condições de trabalho nas escolas capazes de proporcionar um ensino-aprendizagem conducentes ao sucesso educativo, uma reorganização escolar diferente e participada e uma educação pré-escolar pública e gratuita para todas as crianças;

– o segundo passa pela defesa de uma profissão dignificada e valorizada o que implica a aprovação de estatutos de carreira orientados nesse sentido;

– o terceiro diz respeito à promoção de uma profissão estável e respeitada que ultrapasse os inúmeros focos de ofensa aos direitos dos professores.

Esta luta por uma escola pública de qualidade, pela democratização do sistema de ensino e pela dignificação e valorização da profissão docente é uma luta de toda a sociedade de que é necessário sair-se vencedor. Sem essa vitória, que significa uma profunda mudança da política educativa, não é possível encarar com um mínimo de esperança o futuro do País. Os professores não abdicarão do seu papel nessa luta pela construção de um Portugal melhor.


«O Militante» Nº 230 de Setembro/Outubro de 1997