As lutas dos trabalhadores
nos primeiros meses de 1997

Por José Ernesto Cartaxo
Membro do CC e da Comissão Executiva da CGTP-IN




Nos primeiros meses de 1997 verificou-se um aumento da conflitualidade laboral. Este agravamento foi em parte devido à luta pela aplicação da lei das 40 horas, particularmente significativa nos sectores têxteis, de vestuário e de calçado. Mas o aumento das lutas exprime também o crescente desencanto face a políticas económicas e sociais que são na essência idênticas às do Governo PSD e que se traduzem na limitação dos direitos dos trabalhadores por via da crescente flexibilização (de que o PS é arauto), na contenção salarial, nos despedimentos e na precarização das condições de vida e de trabalho.

A política do Governo

A mudança governamental em Outubro de 1995, com a formação de um Governo PS, gerou grandes expectativas de mudança. Mas tais expectativas não se confirmaram.

Nos aspectos fundamentais da go-vernação, como é a política económica, não há alterações sensíveis em relação aos Governos anteriores, com as mesmas opções decorrentes de políticas monetaristas com total subordinação aos critérios de Maastricht. Prossegue-se uma política de privatizações, que foram mesmo aceleradas com o pretexto da redução do défice orçamental imposto pelas políticas comunitárias. E começaram os ataques visando o enfraquecimento da função social do Estado, com destaque para as intenções de reduzir a Segurança Social pública.

Esta continuidade, decorrente de opções que na sua essência nada diferenciam o PS do PSD, foi reconhecida pelo Governo com as teses da inexistência de alternativa, por um lado, e as de que existia "sensibilidade social" da nova equipa, por outro. Na conta desta sensibilidade social era sobretudo creditada a criação de um rendimento mínimo garantido e a prática do diálogo social.

Não obstante, cedo se evidencia que esta sensibilidade social era contraditória não só com as opções de política económica, mas também por compromissos com o grande patronato, particularmente com a CIP, que aparecem claros logo na fase inicial de governação e que explicam a febre "flexibilizadora" nas relações de trabalho. Esta situação envenena o primeiro processo de concertação social e o Acordo de concertação estratégica. Não no sentido de que tudo é negativo - existem, nalguns casos, respostas a reivindicações apresentadas pela CGTP-IN -, mas no de que, nas questões de fundo, existe um conteúdo limitador dos direitos dos trabalhadores e da função social do Estado.

Novos passos foram dados, primeiro com a aplicação da lei das 40 horas (em que o Governo e o patronato concertaram uma "interpretação" duma lei da Assembleia da Re-pública contrária aos direitos dos trabalhadores) e depois com a recusa de diálogo social nas vastas matérias do Acordo de concertação estratégica, agora com o pretexto de que a CGTP-IN o não subscrevera. "Diálogo desde que estejas de acordo comigo", passou a ser o novo lema do Governo.

A acção dos trabalhadores

Face a esta situação, os trabalhadores não cruzaram os braços e recorreram a meios de pressão e de luta para fazer valer as suas reivindicações ou salvaguardar os seus direitos. As lutas envolveram a generalidade dos sectores económicos e tiveram motivos muito diversificados como a melhoria dos salários contra a contenção salarial, a defesa do emprego, a redução da duração do trabalho e a aplicação da lei das 40 horas, a luta contra os despedimentos, a melhoria de carreiras profissionais, o pagamento de salários em atraso, a revisão dos contratos colectivos, as acções contra as privatizações, a defesa da função social do Estado, etc..

Foram realizadas importantes acções de massas de âmbito interprofissional, isto é, abrangendo vários sectores, das quais se destacam as de 8 de Março (manifestação no Dia Internacional da Mulher), 22 de Março (manifestação em Lisboa promovida pela Uniões Sindicais de Lisboa e Setúbal), comemorações do 25 de Abril e 1º de Maio, que este ano teve uma invulgar participação, 28 de Maio (Jornada da Confederação Europeia de Sindicatos - CES contra o desemprego), 5 de Junho (Tribuna pública em defesa do Sector Empresarial do Estado) 18 de Junho (Tribuna Pública pelas 40 horas) e diversas lutas conjugadas na segunda quinzena de Junho.

Um aspecto importante é a do aumento de lutas em Julho, período no qual um número significativo de trabalhadores está de férias: Gás de Portugal, Somincor, Pirites Alentejanas, Belos Transportes, Aldeamento Aldeia do Mar, STCP, Renault (Cacia), trabalhadores de pesca do sotavento do Algarve, guardas florestais, trabalhadores da administração local, trabalhadores têxteis de vários distritos, manifestação pelas 40 horas no Porto e outras.

A luta pela redução do horário de trabalho

A luta pela redução do horário de trabalho foi certamente a que mais marcou a conflitualidade nos sete meses decorridos em 1997 e o ponto de referência fundamental do 1º de Maio deste ano. Em diversos sectores e empresas esta luta teve como objectivo a redução de facto da duração do trabalho face à intenção patronal de não considerar as pausas na contabilização do tempo efectivo de serviço. Recorde-se que, em Dezembro passado, o Governo e o patronato recorriam à concertação social para "interpretar" neste sentido uma lei da Assembleia da República (Lei 21/96 de 23 de Julho).

Desde então tem-se travado uma intensa batalha, quer no plano legal com vista a uma correcta aplicação da lei, quer no terreno da luta, destacando-se nesta a que desde então (isto é, desde há 9 meses) vem desenvolvendo o sector têxtil, de vestuário e de calçado, contra o objectivo patronal de não considerar como tempo de trabalho as pausas em vigor no sistema de laboração por turnos.

O Governo e o PS tomaram uma posição de clara conivência com o patronato. O Governo subscreveu a "interpretação" abusiva da concertação social, dando mais um passo na corporativização das relações de trabalho; a ministra da Qualificação e do Emprego tem ignorado as posições do Provedor da Justiça que recomenda uma lei interpretativa ao mesmo tempo que tem produzido múltiplas posições contraditórias; e o PS rejeitou em Maio, na Assembleia da República, uma lei interpretativa do PCP com vista a uma maior clarificação.

Trata-se de uma batalha muito dura porque tem a ver com diversos aspectos centrais que estão no coração da actual conflitualidade. Primeiro, o carácter geral de uma política em que o PS/Governo aceita e promove a desregulamentação laboral sob o pretexto da competitividade das empresas. Segundo, compromissos com o patronato, particularmente com a CIP, como já se referiu. Terceiro, um processo complexo de corporativismo que desvirtua o papel da concertação social e acentua os aspectos mais negativos do período de Cavaco Silva (veja-se a "interpretação" das 40 horas, o papel da Comissão de Acompanhamento, etc.). Quarto, a questão das pausas tem um conteúdo muito amplo porque põe em causa o conceito de período normal de trabalho e de disponibilidade do trabalhador - são questões essenciais das relações laborais que estão em causa.

A luta pelo emprego

O emprego esteve no centro de muitos dos conflitos devido a processos de encerramento de empresas, de despedimentos declarados ou sob a capa das rescisões por mútuo acordo, dos salários em atraso que continuam a persistir em diversas empresas, dos processos ditos de reestruturação ou de racionalização, eufemismos para despedimentos colectivos, do desmembramento de empresas do sector público, etc..

Recordem-se entre outros os conflitos na CP contra o desmembramento da empresa; nas Pirites Alentejanas em Aljustrel, pela reabertura da mina; na Companhia Portugue-sa de Cobre pela sua viabilização e pagamento de salários em atraso; na Grundig/Blaupunkt em Braga contra o despedimento colectivo; na Dragapor pelo pagamento de salários em atraso; na Fábrica de Malhas IVER em Guimarães reclamando medidas urgentes de saneamento, e em tantas outras.

O Governo procurou difundir a ideia junto da opinião pública de que muitos dos conflitos sobre emprego se arrastavam e arrastam há vários anos e que era ele que os resolvia, sendo invocado os casos da Torralta e da Lisnave. O arrastamento destes conflitos é um facto real, mas este argumento não pode servir de anestesia crítica para as soluções encontradas. Trata-se, além disso, de situações que, tendo embora forte impacto público, não explicam a deterioração do emprego que está a ocorrer.

A questão de fundo é que as opções de política económica decorrentes da moeda única continuam a fragilizar o nosso aparelho produtivo e portanto a gerar encerramentos de empresas e despedimentos. E não só os sindicatos mas também o patronato vem alertar para esta situação real, como o do sector metalúrgico e metalomecânico que, no início de Julho, apontava para "a ameaça de encerramento de milhares de empresas".

Daqui decorre também a necessidade de alargar as lutas pelo emprego a nível internacional dada a crescente globalização das economias. Foi com este objectivo que se realizou a Jornada Europeia pelo emprego em 28 de Maio promovida pela CES na qual a CGTP-IN se empenhou activamente.

Que diálogo social?

O Governo fez do diálogo social uma palavra-chave da decisão política. Uma tal atitude é em si positiva, porque a situação social é complexa e porque marca um contraste com a política de cariz autoritarista dos Governos Cavaco Silva. Mas, para isso, o diálogo tem de ser real e tem de se apoiar em políticas diferentes. Tal não aconteceu e, muitas vezes, o "diálogo" é a justificação ideológica para uma maior intervenção de grupos de pressão do poder económico.

No domínio laboral, quatro aspectos devem ser destacados.

O primeiro é, paradoxalmente, o da ausência de diálogo nos vastos domínios cobertos pelo Acordo de concertação estratégica, através da não participação da CGTP-IN na comissão de acompanhamento do referido acordo, a pretexto de que não o subscreveu. Trata-se de uma singular concepção de diálogo já que este só funciona para quem está de acordo com o Governo.

O segundo é a continuação de uma política de bloqueio da contratação colectiva funcionando, uma vez mais, a concertação social como um meio de que o patronato e o Governo se servem para pôr na prática em causa o exercício deste direito.

O terceiro é o de que, inevitavelmente, as opções neoliberais incentivam uma posição de força do patronato, de radicalidade, de intransigência e de falta de diálogo e de negociação como meios de resolução dos conflitos colectivos. O patronato engrossou a voz e foi incentivado a fazê-lo logo com o acordo de concertação para 1996, como a CIP, através de um dos seus principais dirigentes (Nogueira Simões), o admitiu. Nas empresas, as opções sobre uma maior desregulamentação de trabalho tiveram efeitos imediatos de degradação das relações de trabalho. Que no final do século XX seja necessário uma decisão judicial para proibir a utilização dos "WCs magnéticos" constitui um triste sinal dos tempos em que vivemos.

O quarto é o de procurar intervir sobre as razões de descontentamento através de medidas de conteúdo administrativo e repressivo, como o é a legislação que visa impedir o corte de estradas. E como o é igualmente a limitação do direito à greve, através da constitucionalização dos serviços mínimos, o que pode abrir as portas a uma regulamentação excessiva e limitadora do direito à greve.

Resultados e perspectivas

As lutas realizadas tiveram resultados positivos. Sem pretender efectuar um balanço exaustivo, realcem-se alguns resultados directos das acções realizadas bem demonstrativos do lema sindical de que vale a pena lutar:

· aplicação da lei das 40 horas numa parte significativa de empresas com a salvaguarda dos direitos adquiridos, nomeadamente no que respeita às pausas;

· medidas que evitam o encerramento de empresas ou a diminuição dos postos de trabalho, de que é exemplo significativo o não encerramento da Torralta, ainda que permaneçam pontos obscuros sobre o acordo entre o Governo e o grupo Sonae;

· redução da precaridade de emprego em resultado da pressão sindical que vem sendo persistentemente desenvolvida e que se traduziu já no compromisso do Governo de legislar impondo normas restritivas à utilização abusiva de recibos verdes, quer na Administração Pública, quer no sector privado;

· acordos na sequência de lutas realizadas como aconteceu na Somincor (salvaguarda de alguns aspectos da laboração contínua), na Dragapor (pagamento de salários em atraso), e em outras empresas;

· medidas que garantem direitos dos trabalhadores contra violações graves, como é o caso já referido da decisão judicial que proibe os "WCs magnéticos";

· as acções realizadas pelos polícias, em 21 de Abril e em 19 de Junho, constituem em si um resultado, na medida em que são demonstrativas de que, queira ou não o Governo, a criação de um sindicato "é apenas uma questão de tempo", como afirmou um dirigente da Associação Sócio-Profissional da Polícia.

Registe-se ainda que, em resultado da pressão e da luta dos trabalhadores, a Inspecção Geral de Trabalho tem tido uma actuação mais interventiva em diversas matérias, pese embora a cobertura que tem vindo a dar ao patronato na questão da aplicação da lei das 40 horas.

As lutas desenvolvidas durante o mês de Julho mostram que não só o Verão não significou a diminuição da conflitualidade, mas perspectivam o seu alargamento e reforço após as férias. É, por exemplo, significativo que estejam já marcadas acções para Setembro, como sejam o anúncio de uma vigília a promover pela União dos Sindicatos de Braga, caso não seja até lá resolvida a questão das 40 horas, a anunciada greve dos profissionais de saúde, acções de contestação à revisão da Constituição da República Portuguesa e o Encontro Nacional de Polícias a promover pela ASPP, entre outras.

Estamos assim perante um quadro que aponta para o reforço e alargamento das lutas, condição imprescindível para uma mudança de rumo nas políticas por forma a responder aos problemas que afectam os trabalhadores e o País.


«O Militante» Nº 230 de Setembro/Outubro de 1997