Alguns acontecimentos recentes trouxeram à ribalta da vida
pública os problemas específicos das mulheres portuguesas e a
questão política e social da igualdade de direitos, reconhecida
na Constituição e nas leis avulsas mas frequentemente negada na
prática.
Referimo-nos concretamente à discussão, na Assembleia da República, das propostas de lei visando a despenalização do aborto e à volta da violência exercida sobre as mulheres, bem como à luta pelo cumprimento da lei das 40 horas, que interessa, para o bem e para o mal, especialmente às mulheres e, corolário de todo este processo, à maior manifestação do Dia da Mulher realizada no nosso país e que encheu de determinação e alegria a Avenida da Liberdade, em Lisboa, no último dia 8 de Março.
Duas organizações unitárias estiveram (estão) no cerne da retomada deste processo reivindicativo e de consciencialização: o Movimento Democrático de Mulheres (MDM) e a Comissão Nacional de Mulheres da CGTP-Intersindical Nacional. O Militante falou com Rosa Xisto, membro do Secretariado do MDM, e Graciete Cruz/i>, membro da Comissão Executiva e responsável pela mencionada Comissão da CGTP-IN. Objectivo: fazer um ponto da situação e traçar perspectivas de actuação futura nesta frente importantíssima de trabalho político.
Vinte e três anos depois do 25 de Abril, como se posicionam estas duas organizações perante os novos desafios?
Esta entrevista foi coordenada pelo camarada Armando Pereira da Silva.
Rosa - A primeira coisa a reter é que o MDM, ao contrário do que algumas pessoas pensam, não é só para comemorar o 8 de Março... Afirma-se hoje como um forte movimento de opinião, de intervenção e de reivindicação. Dirige-se à generalidade das mulheres portuguesas, independentemente da sua situação profissional ou social. Mas, na situação presente, é óbvio que se preocupa prioritariamente com as mulheres com menos possibilidades de intervenção social. Reivindica as condições que permitam essa intervenção, começando por exigir que as organizações femininas sejam consideradas parceiro social e que possam ter uma intervenção determinante ao nível de toda a política relacionada especificamente com as mulheres. E a primeira dessas condições é claramente o direito ao emprego em pé de igualdade, sem o qual a emancipação é impossível.
Graciete - O principal objectivo da Comissão Nacional de Mulheres da CGTP-IN é chamar a atenção para a situação de desigualdade a todos os níveis - que penaliza sobretudo as mulheres trabalhadoras - sem ignorar todos os outros problemas específicos. O certo é que muitas das desigualdades reais verificam-se no mundo do trabalho, começando pelo acesso ao emprego, continuando nos níveis de remuneração, culminando no preenchimento dos lugares de responsabilidade. As mulheres trabalhadoras ganham em média menos 25% que os homens e, sendo 46% dos trabalhadores por contra de outrem, só ocupam 25% dos cargos superiores. Compete à Comissão da CGTP-IN dinamizar a estrutura, da base ao topo, para a intervenção neste domínio. O papel activo das mulheres na vida económica e social do país é um aspecto fulcral que nos preocupa, tanto mais que as políticas seguidas nos últimos anos não têm sido propícias à igualdade e promoção social dos trabalhadores, sobretudo das mulheres.
Rosa - Há questões imediatas para as quais as organizações femininas, e portanto o MDM, têm de procurar resposta, pelo esclarecimento e pela reivindicação. Por exemplo: a violência sobre as mulheres. Há uma lei aprovada unanimemente pela AR em 1991, por proposta do PCP, que nunca foi aplicada por falta de regulamentação.
Agora a Alta Comissária para as questões da igualdade e da família anuncia outra lei, mas esta mais redutora, porque se limita praticamente à violência doméstica. Ora isso seria um contra-senso, tanto mais que iria iniciar novo ciclo de regulamentação! Há que mobilizar as mulheres e as estruturas políticas contra esta manobra dilatória e exigir que os partidos representados na AR tomem posição sobre esta matéria.
Outro exemplo: as alterações à lei sobre a interrupção voluntária da gravidez. Há que dar continuidade à campanha e valorizar os resultados sociais obtidos, como a adesão da juventude. O chumbo das propostas de lei redobrou a indignação das mulheres. É inevitável que a questão volte a ser colocada.
Vamos fazer um esforço junto dos partidos para que, nas próximas eleições, haja mais mulheres em lugares elegíveis para as autarquias. Este é um problema que nos preocupa imediatamente, tanto mais que o acordo PS/PSD de revisão constitucional é particularmente gravoso para as mulheres. Elas serão as primeiras vítimas, por exemplo, da redução do número de deputados e é lógico que situações como a votação das propostas de lei sobre a interrupção voluntária da gravidez serão mais frequentes. Este não será um aspecto decisivo da revisão, mas...
A questão da moeda única também nos preocupa: a submissão aos critérios de convergência nominal terá efeitos desastrosos sobre o emprego, salários, políticas sociais, segurança social, etc.. Mais uma vez, as mulheres serão as primeiras vítimas. Daí que, em nossa opinião, se justifique plenamente e seja vitalmente necessário o reforço do MDM e da sua influência. Que há consciência disso, não temos dúvidas: o aumento das dificuldades tem trazido mais mulheres ao movimento, novas organizações vão surgindo pelo País.
Graciete - No âmbito da CGTP-IN, é lógico que, para nós, a questão central e o problema social mais grave é o aumento do desemprego. Este fenómeno negativo afecta sobretudo as mulheres mais jovens, mas também de forma particularmente gravosa as que têm mais de 40 anos. No conjunto da população activa, as mulheres são as menos qualificadas profissionalmente, as que frequentam menos cursos de formação, estão colocadas nas actividades piores remuneradas. A partir dos 40 anos, as dificuldades redobram.
Daí a nossa luta contra a destruição do aparelho produtivo, pelo emprego e pelos direitos; contra a contenção dos salários e os aumentos dos preços que impedem a melhoria das condições de vida e tendem a perpetuar as desigualdades; contra a revisão constitucional anunciada, dada a gravidade das suas consequências; pela defesa, melhoria e universalidade do sistema de Segurança Social. Mas há um problema muito actual que nos preocupa especialmente: o da precaridade do emprego que atinge hoje níveis inadmissíveis. Importa lembrar que, por exemplo, o trabalho a tempo parcial no nosso país é um fenómeno em 70% feminino. E a tendência é para eternizar a precaridade, que penaliza os direitos das mulheres e os seus salários. A situação tem-se agravado em termos gerais, não só pelas políticas seguidas, mas também por falta de fiscalização que imponha o cumprimento da legislação actual.
Rosa - Em termos políticos, anunciam-se algumas intenções de combate ao desemprego, através da criação de novas profissões na área social - infantários, acompanhamento de idosos - especialmente vocacionadas para a camada feminina da população activa. A bondade do projecto não estaria em causa, se não sofresse de um vício original: o baixo nível de qualificação, e portanto de remuneração, previsto à partida para essas actividades. Ora por uma questão de justiça e de direito, o MDM defende e luta por competências e direitos iguais no mundo do trabalho. Neste momento as mulheres, que são metade da população activa, apresentam-se em termos gerais com melhor qualificação académica de base. Mas são encaminhadas para níveis de responsabilidade e de salário mais baixos. Os quadros femininos estão a ser gastos em 2, 3 anos, queimados na selva do trabalho precário e dos recibos verdes. Que programa de emprego é este?
O empenhamento e a competência do MDM na abordagem destes problemas é reconhecido internacionalmente: por indicação da Federação Democrática Internacional das Mulheres (FMI) vamos organizar em Bruxelas, nos dias 10 e 11 de Julho, um debate sobre Desemprego e Precaridade - trabalho a tempo parcial.
Graciete - A existência de cidadãos tratados de maneira diferente, a quem é atribuído um estatuto de inferioridade, empobrece a democracia. Daí que a actividade destes movimentos seja essencial para a própria democracia e o seu aprofundamento. Esta questão não diz unicamente respeito às mulheres... É uma luta de homens e de mulheres, hoje essencial tanto no nosso país como na Europa. É esse o sentido da acção da Comissão Nacional de Mulheres da CGTP-IN: identificar os problemas e mobilizar a estrutura sindical para a sua resolução, com base na certeza de que a mulher é elemento presente e indispensável na luta colectiva por uma sociedade mais justa e mais humana, sem a exploração do homem pelo homem. Não abdicamos desse papel.
Rosa - A manifestação de Lisboa em 8 de Março é um exemplo paradigmático desta nova consciência. Ela mostrou que as reivindicações das mulheres têm grandes possibilidades de se tranformarem em acções de massas, motoras da opinião pública. Esta e outras acções recentes do MDM, como o Congresso sobre a Mulher e o Desporto, comprovam a amplitude unitária da influência destes movimentos. A tarefa de mobilização à volta dos problemas das mulheres é essencial em termos políticos. Se a manifestação nacional de Lisboa foi o que foi, nem por isso o 8 de Março deixou de ser assinalado com outras iniciativas no resto do País: debates, convívios, e até o nascimento nesse dia de novos núcleos em zonas politicamente difíceis: Madeira, Almeida, e também Mértola. O enorme desfile de Lisboa tornou visível a presença de milhares de mulheres que nunca tinham participado, a alegria contagiante da juventude. Rentabilizar este avanço é uma tarefa de todos, é uma responsabilidade da sociedade. As mulheres assumem-se claramente como protagonistas da mudança.
Graciete - A presença de muitos milhares de participantes na manifestação, a grande combatividade, criatividade e imaginação, o apoio público de muita gente habitualmente calada, são indicadores significativos da nova realidade apontada pela Rosa Xisto. Mas não podemos deixar de lembrar, pela positiva, a coincidência mobilizadora da luta pelas 40 horas. É que tanto o não cumprimento desta lei como o princípio da flexibilidade e da polivalência que a acompanha penaliza enormemente as mulheres. A flexibilidade pode ser terrível para a sua vida pessoal e familiar. As mulheres trabalhadoras (especialmente na indústria têxtil) têm estado em força na luta pelas 40 horas. Também elas marcam presença no combate pelos direitos e pela afirmação da igualdade.
Rosa - Os últimos desenvolvimentos da questão feminina em Portugal impõem às organizações não governamentais, ao Governo, aos partidos políticos, a toda a sociedade, o dever de tornar visível, cada vez mais visível a participação das mulheres em todos os aspectos da vida pública - nas autarquias, no desporto, na política, na cultura... De reconhecer o seu protagonismo no desenvolvimento do País. Neste momento, esse é um dos principais combates do MDM.
Extracto da Resolução aprovada em 8 de Março de 1997
(...) as mulheres e homens participantes na manifestação de 8 de Março, decidem apresentar aos órgãos de soberania oito reivindicações prioritárias:
1 - A aplicação da lei recentemente aprovada na Assembleia da República que consagra o estatuto de parceiro social às organizações femininas;
2 - Adopção de medidas concretas que fomentem o emprego feminino em termos quantitativos, garantam a aplicação efectiva dos direitos específicos das mulheres, designadamente das trabalhadoras, e assegurem a sua participação em todas as áreas da vida nacional;
3 - A elevação do poder de compra dos salários e das pensões, de modo a fazer face ao aumento dos preços, melhorar a qualidade de vida e potenciar a aproximação aos níveis médios comunitários;
4 - A garantia da universalidade, melhoria e alargamento dos direitos à segurança social e à saude e consagração da idade da reforma aos 62 anos para as mulheres e homens.
5 - A concretização das 40 horas semanais, no máximo, como horário normal de trabalho, pondo termo à violação de direitos, na definição e redução dos horários de trabalho praticados, bem como o fim da flexibilização e da desregulamentação dos horários e do tempo de trabalho;
6 - A alteração da lei que permite a Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG), no sentido de incluir razões de ordem social, articulada com a aplicação efectiva das disposições legais sobre o Planeamento Familiar e a Educação Sexual, pressupondo a obrigatoriedade das temáticas da Igualdade e da Educação Sexual tanto na formação inicial como contínua dos professores, como ainda a revisão dos planos escolares no mesmo sentido;
7 - A criação de estruturas sociais de apoio à família, por forma a contribuir para a eliminação das diferenças no trabalho, na vida política, social, económica e cultural;
8 - A regulamentação e aplicação da Lei 61/91 que garante protecção às mulheres vítimas de violência.