Lutas

Horário de trabalho
é referência fundamental

Por Manuel Carvalho da Silva
Coordenador da CGTP-Intersindical Nacional




A questão do não cumprimento, por numerosas empresas, da chamada lei das 40 horas, assumiu uma importância central na luta em curso do movimento sindical unitário. Para a CGTP-IN, o que está em causa é muito mais que a (não) aplicação da letra e do espírito de uma lei aprovada pela Assembleia da República: o horário de trabalho tem implicações sociais e contratuais que em grande parte estão na génese do próprio sindicalismo, mexe com a vida pessoal, familiar e profissional de milhões de trabalhadores. Além disso, a permissibilidade - para não dizer cumplicidade - do Governo na interpretação abusiva e distorcida da legislação em vigor quanto a esta matéria revela os verdadeiros objectivos de uma política desreguladora cuja concretização seria catastrófica do ponto de vista laboral e social.

Este problema assume, por isso, um lugar destacado na entrevista que O Militante propôs a Manuel Carvalho da Silva, coordenador da CGTP-IN. Mas nesta conversa foram igualmente abordadas questões relativas à actualidade do movimento sindical e ao rejuvenescimento e reforço da central sindical unitária dos trabalhadores portugueses.

Houve quem passasse a ideia de que a CGTP-IN encontrou na questão das 40 horas uma justificação política para sair do processo de concertação estratégica.

Pois foi. Mas enganaram-se e tentaram enganar o País. O trajecto de luta já percorrido demonstrou que a razão está do nosso lado. Ganhámos apoios, afirmou-se a importância dos sindicatos, aumentou a participação e a confiança, demos força a outras lutas. Foram conseguidas muitas reduções, sem perdas de direitos. Demonstrámos que a questão do horário de trabalho é um problema concreto de todos.

Porquê?

A interpretação que se pretende fazer do conceito do horário de trabalho, da sua duração, gestão e organização, levaria a curto prazo à alteração da noção de contabilização do trabalho para todos os seus efeitos, designadamente o remuneratório.

A subversão do conceito do período normal de trabalho transformar-se-ia em trampolim para a introdução de conceitos teoricamente novos que substituem a existência de um quadro de direitos individuais e colectivos nessa área. São os conceitos de disponibilidade no trabalho e de brio profissional que se tende a impor sob a capa do interesse supremo e comum da empresa. Esta transformar-se-ia numa referência sacrossanta a que tudo se submete, ou seja, em que os trabalhadores ficam ao dispor da vontade do patrão.

Portanto, o problema é mais amplo.

Sim, o quadro das relações laborais não é só este. Qual é a situação da sociedade nos nossos dias? É uma sociedade onde nos querem impingir a ideia de que o capitalismo cada vez mais liberal e explorador é o modelo único e definitivo para a sociedade humana. Uma sociedade das inevitabilidades dos projectos dos grandes senhores do capital em que quem está contra esses desígnios é marginalizado. Isto é modelo único, definitivo, para uma sociedade onde não haveria verso e reverso da medalha. Ora um dos sentidos essenciais da nossa luta é afirmar que não temos complexos de dizer não. Noutros países, o desenvolvimento deste processo de modelo absoluto teve contornos diferentes. Em Portugal, contudo, foi a partir da alteração do conceito de tempo de trabalho que se detectou um conjunto de outros factores com os quais se pretende alterar o quadro de relações laborais para o adequar a um sistema de domínio absoluto.

Ou seja: é uma questão extremamente sensível para o próprio movimento sindical...

O problema do horário toca a todos e a gestão do tempo de trabalho foi desde sempre uma referência central de justificação da existência dos próprios sindicatos, mas também da sua acção ao longo de décadas. As grandes lutas que corporizam a organização sindical têm no horário de trabalho uma referência fundamental: a definição de um tempo concreto de trabalho, direito de controlo desse tempo pelas partes e todas as questões inerentes à organização desse tempo. A vida do cidadão trabalhador é toda ela muito estruturada a partir dessa definição básica de um horário. Se for retirada a dimensão social que hoje existe no quadro das relações laborais no que concerne a fixação de um horário, elimina-se uma das componentes essenciais do contrato colectivo de trabalho. Aliás, a flexibilidade dos horários de trabalho feita de forma descontrolada leva à eliminação directa ou indirecta de inúmeros direitos dos trabalhadores. Já hoje temos exemplos: estabelecem numa semana trabalhar 50 horas e depois, nas duas semanas seguintes, trabalhar menos, de forma a que os trabalhadores saiam às 15/15 e 30. E então as empresas com grande percentagem de mulheres, algumas delas com filhos pequenos e que têm direito à amamentação, dizem-lhes isto: você nas semanas em que sai às três horas não precisa de ir amamentar os seus filhos, pode fazê-lo à hora a que sai. Coisa semelhante se passa com os trabalhadores estudantes, ou com a recomendação de que os trabalhadores só podem ir ao médico nas semanas em que têm uma parte do dia livre. São exemplos das ameaças que pendem sobre o quadro de direitos consagrados.

Contudo, a polivalência e a flexibilidade foram as contrapartidas que a lei deu aos patrões pela redução do horário.

Foram essas e não a alteração do conceito de tempo de trabalho. A CGTP-IN esteve contra a flexibilidade e a polivalência impostas por lei geral e dizemos que a flexibilidade só é exequível num quadro de aplicação caso a caso e com controlo dos trabalhadores e acordo entre as partes. Por isso só pode ser encarada ao nível da regulamentação colectiva por empresa ou sector de actividade e nunca em lei geral, para que os direitos não sejam postos em causa. A aplicação da flexibilidade e da polivalência numa lei geral leva à colocação na mão do patrão do poder discricionário. Há que fazer na sociedade uma discussão profunda sobre os impactos da flexibilidade e da polivalência numa visão estratégica. Ou seja, será que a polivalência de funções aumenta o emprego, como para aí se diz? No imediato, está demonstrado e reconhecido que não. O que cria condições para a estabilidade no emprego é um ensino e uma formação profissional adequados às necessidades. Mas hoje esse ensino e essa formação estão claramente desajustados da realidade social. Também a flexibilidade, se não for controlada, se a gestão e a organização do tempo de trabalho estiver nas mãos dos patrões, é clara e inequivocamente destruidora de direitos, destruidora de emprego.

De qualquer modo, não foi dada uma prioridade imediata à luta contra a flexibilidade e a polivalência...

Mas é esta a ideia que temos da polivalência e da flexibilidade. Simplesmente, entendemos que, aprovada a lei nos moldes em que o foi, a batalha se travava no terreno e o mais importante para nós era salvaguardar mecanismos de controlo que impusessem a participação dos trabalhadores, mecanismos esses seriamente ameaçados pelo chamado acordo estratégico, que traz consigo a pretensão da indução de uma alteração legislativa susceptível de vulnerabilizar esse controlo. Pretendem, entre outras coisas, o deferimento tácito em relação ao período de horários flexíveis, sempre que não houver oposição por parte da Inspecção Geral do Trabalho, o que permite um espaço de manobra, de conivência patrões-IGT. Pretendem também limitar mais os prazos de comunicação dos trabalhadores. E a lei ainda agora entrou em vigor...

Voltando à luta concreta pelas 40 horas de trabalho. O combate já atingiu os seus objectivos?

O conflito está no início!... Mas é já evidente que os trabalhadores não abdicam da redução dos períodos normais de trabalho para um máximo de 40 horas. Levantar-se-ão todos, progressivamente, contra a tentativa de alterar o conceito de tempo de trabalho. Porque a cada dia que passa eles apercebem-se do que quer o patronato: desregulamentar ainda mais; dispor como entender do tempo dos trabalhadores; eliminar direitos. Desiludam-se patrões e Governo: não conseguirão isolar os trabalhadores que estão há mais de três meses em luta nem os vergarão pelo cansaço. Vamos assumir compromissos de solidariedade, vamos alargar a resistência.

Porquê?

Porque esta manobra acabaria por sacrificar todos os sectores: indústria, comércio, agricultura, bancários, seguros, professores, serviços, administração pública. A alteração pretendida mexeria com a duração do tempo de permanência no local de trabalho, com a organização e gestão do tempo de trabalho, pondo-a nas mãos dos patrões, com conceitos de retribuição do trabalho, com férias, feriados e faltas. Essa alteração significaria, ainda por cima, um vergonhoso golpe legislativo, porque não respeita o conteúdo da discussão feita pela Assembleia da República nem o sentido da doutrina estabelecida na matéria, até por vários orgãos de soberania.

Contudo, é evidente que a luta dos trabalhadores não se limita ao problema do horário de trabalho.

Claro que não. A dinâmica da luta social no nosso País tem sido muito significativa, pese embora a existência de conecções profundas entre o horário de trabalho e muitas outras áreas. Mesmo em torno da luta pelas 40 horas, há um conjunto de acções, marchas, movimentações de grande significado e com aspectos, diria a título pessoal, muito bonitos e até comoventes. Aquela marcha que se fez entre Pevidém e Guimarães teve um envolvimento excepcional da população em geral. Era visível a comunhão de preocupações. Mulheres que estavam a fazer o almoço, deixavam essa tarefa, vinham para a rua, de avental. Lembro-me de uma senhora, aí com 75 anos, que saiu de casa, emocionada, em lágrimas, e disse: «É preciso que façam isso. Não passem o que eu passei!». As manifestações feitas nos últimos meses são acções muito importantes. No final do ano passado, em Lisboa, mas também já este ano. A manifestação de rua do dia 8 de Março teve sinais novos, que merecem ser estudados e aprofundados. Depois houve a manifestação de 22 de Março e outras movimentações. Os trabalhadores portugueses não dormem.

Nos últimos tempos, têm-se verificado formas de luta por objectivos concretos que nem sempre têm o eco merecido.

Isso é verdade. Falou-se bastante da luta em torno do problema da Renault, na Bélgica, que é evidentemente um facto de relevância excepcional a que não somos alheios. Mas em Portugal também temos feito coisas bonitas. Semanas atrás, os trabalhadores da Grundig travaram uma luta muito importante. Naquele complexo, que engloba um conjunto de fábricas com cerca de 4 500 trabalhadores, perante uma ameaça de despedimento sem fundamentação concreta, os trabalhadores levantaram-se, fizeram ali dois dias de greve, com participação de quadros e chefias, algumas até destacadas. Foi uma luta de coesão extraordinária, que impôs um recuo à administração e a reconsideração do problema. As televisões, salvo erro com uma excepção, não transmitiram nada disto. A movimentação na cidade em torno deste problema foi uma coisa espantosa, e Braga não é pequena, é uma cidade com grande dimensão. A luta levou a que várias entidades se pronunciassem, a uma intervenção do Governador Civil bastante coerente com a função que desempenha. Mas tem havido outras lutas, como a da Somincor, a luta dos trabalhadores do Casino Estoril, do Hotel Estoril-Sol e tantas outras.

Há sinais novos neste processo?

As lutas, nos últimos tempos, trazem muita coisa de novo. A comunicação social não dá a imagem do país real. É pressionada pelo capital e pelo Governo. As empresas ameaçam cortar a publicidade, os anúncios em rádios e jornais locais. Por outro lado, o Governo, via ministério do Emprego, coloca todas as semanas anúncios nas televisões, jornais e rádios que custam dezenas e dezenas de milhares de contos. Geram-se assim limitações objectivas. Apesar disso, a dinâmica é muito forte e é a demonstração de que a luta dos trabalhadores produz resultados. O comportamento dos trabalhadores mostrou que, desde que a razão esteja interiorizada, eles vencem todos os obstáculos. Em empresas onde não se faziam plenários há 10 ou 15 anos, encontraram-se formas de os fazer. Novas formas de protestos, de sensibilizar as populações e o poder local, de proporcionar participação entusiasmada de jovens, etc.. Surgiram expressões bonitas de solidariedade. As trabalhadoras e os jovens que andam massacrados pelas pressões e repressão dos patrões dizem: para descomprimirmos há que encontrar formas de luta que transfiram o mal-estar para os patrões e nos façam sorrir pelo menos por algum tempo.

A luta parece dar resultados...

Vejam-se os casos já referidos e também o do sector naval: o objectivo do Mello era encerrar a Lisnave em Março de 1993, mas já estamos em Abril de 97... As soluções não virão na dimensão que se pretende, mas há qualquer coisa significativa que se vai ganhando. Hoje, a perspectiva de futuro dos trabalhadores da Torralta só tem uma razão: foi a resistência deles que evitou a delapidação total e o desaparecimento da empresa. Este caso da Torralta é a demonstração da importância da luta dos trabalhadores na defesa dos interesses nacionais. Não sabemos ainda os termos do negócio que está a ser feito com o Grupo Sonae, mas sabemos uma coisa: é que se os trabalhadores não tivessem lutado, aquele importante património teria sido entregue ou vendido ao desbarato. O próprio Estado recebe dividendos disto. Aí está um dos exemplos espantosos da luta dos trabalhadores. Que tem sido extraordinária, com dinâmicas muito influentes na evolução dos comportamentos das pessoas, das populações.

E na própria CGTP-IN? Fala-nos um pouco sobre o processo de rejuvenescimento e reforço da Central.

Saliento dois planos. É evidente o reforço dos sindicatos. As últimas lutas credibilizam os sindicatos. Há milhares de trabalhadores que não se aproximavam do seu sindicato há anos e que agora se estão a aproximar. Verificaram que o sindicato é um instrumento colectivo com grande interesse e é em torno dele que continuam a movimentar-se. Isso reforçou de forma inequívoca o sindicalismo corporizado na CGTP, pois é ela que está no terreno.

Isso já se traduz em dados concretos?

A transposição para o plano orgânico está a ter algumas concretizações, embora pontuais. Isto não é automático. É preciso um trabalho no terreno para que desta movimentação resulte um aumento do sindicalismo e um reforço da organização e da Central. O segundo plano é a constatação de que o sindicalismo se dinamizou a partir das realidades vividas pelos trabalhadores em colectivo. O aumento da sindicalização, o aumento da organização e um outro aspecto muito importante, que é o rejuvenescimento do movimento sindical, são possíveis e existem indicadores nesse sentido. Há empresas onde a maioria dos trabalhadores em luta são jovens.

Ainda outra questão: a predisposição muito forte dos dirigentes sindicais. Há empresas onde não se realizavam plenários, havia a ideia espalhada de que não era possível vencer a repressão patronal para fazer reuniões com os trabalhadores. Mas hoje verifica-se que isso é possível, desde que se trate de questões profundamente sentidas pelos trabalhadores. Por exemplo, na Têxtil Manuel Gonçalves, onde não era possível reunir desde finais dos anos 70. Agora fazem-se reuniões com muitas centenas de trabalhadores.

E quanto ao trabalho com os jovens trabalhadores?

O rejuvenescimento exige disponibilidade e espaços que ajudem à entrada dos jovens. A responsabilidade de concretizar o rejuvenescimento e consolidar o reforço da nossa organização é uma ideia em evidência, palpável e que obriga os dirigentes sindicais a meditarem sobre isso e a actuarem em conformidade.

Está muito na moda falar de globalização. Qual é o ponto de vista sindical sobre este conceito?

Das diversas componentes da chamada globalização há duas componentes: a globalização dos movimentos financeiros, que leva à concentração sem qualquer controlo, e a globalização da miséria. Hoje não há países imunes a esta dinâmica, de criação de miséria e exclusão social. Mesmo os países mais ricos.

Sobre a deslocalização das empresas e outros aspectos há que reflectir. Durante muito tempo falou-se da deslocalização de empresas para a Coreia do Sul. Mas a proletarização aí levada a cabo, que implicou uma maior consciencialização dos trabalhadores, modificou a situação. Já não se fala da Coreia do Sul, fala-se de outros países, onde acabará por se verificar o mesmo fenómeno. O capital não admite limites para a exploração, os trabalhadores acabam sempre por reagir, seja onde for. A globalização da economia, tal como a apregoam, tem também estas componentes referidas e os processos sociais correspondentes.

Ou seja: continua a ser muito importante remar contra a maré...

Quem está contra o modelo único e os supremos interesses do capital não é “moderno”, é marginalizado. Mas é interessante ser-se desviante e um bom contributo para a sociedade assumirmo-nos como marginalizados neste sentido. A actual ofensiva do capital é organizada numa política feita à medida dos grandes senhores que em Portugal e nos outros países europeus favorece a especulação, concentra mais o capital e, por isso, cria graves riscos à democracia plena. A linha de marginalização passa por aqui: e é claro que estamos do lado da democracia plena.


«O Militante» Nº 228 de Maio/Junho de 1997