Entrevista

As eleições autárquicas exigem
o empanhamento de todos

Por Carlos Carvalhas
Secretário-Geral do Partido




Quatro meses depois da realização do XV Congresso, o Partido está envolvido numa intensa actividade, em que se salientam grandes lutas reivindicativas pela conquista do horário de trabalho das 40 horas e outros objectivos e a realização de importantes manifestações de diverso tipo, uma notável e muito variada acção institucional na Assembleia da República e em muitos executivos e assembleias do poder local, um trabalho diário e persistente de diálogo e esclarecimento nas empresas e outros locais de trabalho, nas organizações e movimentos de massas e junto das populações em geral, para além de milhares de reuniões internas e de centenas de iniciativas abertas com finalidades muito diversificadas.

As próximas eleições autárquicas tornaram-se já tema principal de muitas dessas reuniões e iniciativas.

Insere-se bem neste cenário a entrevista realizada por O Militante com o camarada Carlos Carvalhas, Secretário-Geral do Partido, que aborda relevantes questões da situação política actual e aspectos salientes da actividade partidária.

No XV Congresso foi afirmado que o fortalecimento do Partido é uma questão fundamental para criar as condições de uma alternativa à política de direita que, desde 1976, se impôs no nosso País. Os acontecimentos dos últimos meses não puseram ainda mais à vista o neoliberalismo que é defendido pelo actual Governo?

Os acontecimentos e as políticas do Governo, e não apenas nos últimos meses, comprovam que o PS prossegue no essencial as políticas de direita dos Governos de Cavaco Silva e que, mesmo na utilização do aparelho de Estado ao serviço do Partido, o PS não só imita o PSD como o pretende ultrapassar.

Aliás, ainda recentemente, o Secretário-Geral do PS em visita a Paris, fez perante os representantes do patronato francês uma tal defesa dos valores da economia de mercado e da moeda única, que mereceu dum matutino a seguinte referência: “afinal, interrogavam-se alguns empresários do país de Jacques Chirac, ele é mesmo líder de um partido socialista? E se, na realidade, ele é socialista, então que diferenças apresenta em relação a qualquer outro político do centro ou da direita democrática?”

Estão também na memória de todos declarações do Primeiro Ministro em que se afirmava “liberal em economia”.

Não se estranham por isso as políticas económicas e orçamentais do Governo de favorecimento à concentração de riqueza (190 milhões de contos de isenções fiscais ao grande capital e 60 milhões de indemnizações aos agrários só em 1997), de alienação a granel do sector público da economia, de estagnação de salários e pensões, de desregulamentação e precarização dos vínculos laborais e de progressiva desresponsabilização do Estado das suas obrigações sociais.

São, sem dúvida, políticas neoliberais que progressivamente vão confrontando muitos portugueses com o facto de terem sido enganados quando votaram no PS, porque votaram numa mudança efectiva de políticas e não na continuação das políticas do PSD. Cresce por isso o desencanto, a frustração, o desinteresse mas também o protesto, apesar da demagogia do Governo.

Para a construção de uma alternativa é fundamental que o PCP reforce a sua influência social, política e eleitoral. Há condições objectivas mais favoráveis a esse reforço. Mas há também dificuldades organizativas e outras que é preciso superar.

O PS, quando estava na oposição, defendia a diminuição do tempo de trabalho para as 40 horas. Agora, o Governo de Guterres está totalmente de acordo com as posições do grande capital que pretendem retirar do tempo de trabalho pausas e intervalos que há muito foram conquistados. Não é assim?

É de facto assim.

A posição do Governo é grave. Primeiro violou a sua promessa eleitoral das 40 horas ao aprovar uma lei que, simultaneamente, estabelece a polivalência de funções e a flexibilidade de horários, no que constitui a consagração de gravosos retrocessos dos direitos dos trabalhadores.

Depois, em confronto com a letra da lei e com a sua leitura pela comissão parlamentar de direitos, liberdades e garantias e pelo próprio Provedor de Justiça, o Governo e, particularmente, o Primeiro Ministro, vieram patrocinar a interpretação das Associações do grande patronato e da UGT, segundo a qual a redução para 40 horas seria a do chamado tempo de trabalho efectivo e não a do período normal de trabalho, isto é, excluir-se-iam da redução as pausas que anteriormente faziam parte do horário normal de trabalho de 44 horas.

Esta interpretação, que nunca esteve em discussão na Assembleia da República quando a lei foi elaborada, permitiria na prática horários de 42h30, ou seja, em certos casos viabilizaria o aumento do tempo de trabalho, o que é absurdo e inaceitável.

O PCP, apoiando totalmente a luta dos trabalhadores, recusa qualquer tentativa de interpretação da lei que conflitue com a redução do período normal de trabalho, recusa que sejam postos em causa o direito às pausas, intervalos e descanso de turno e à refeição e apresentou mesmo um projecto legislativo que visa clarificar os conceitos relativos à duração do trabalho. A sua aprovação, a verificar-se, evitará novas manipulações que atentem contra os direitos dos trabalhadores a este respeito.

A despenalização do aborto também foi aprovada há anos, pelo actual Primeiro Ministro. Não terá sido, agora, a sua posição negativa em relação a essa questão tão importante que levou ao chumbo das propostas do PCP e da JS?

É uma realidade que ficou a dever-se à vontade do Primeiro Ministro e Secretário-Geral do PS e de outros dirigentes do PS, a rejeição dos projectos do PCP e de 54 deputados do PS, que visavam alargar os fundamentos para a realização do aborto em condições de legalidade e segurança médica, combater o flagelo social do aborto clandestino, proteger a saúde das mulheres e favorecer uma maternidade consciente e responsável.

Essa rejeição, que é uma perda para as mulheres portuguesas, foi imposta pelos deputados do PSD e do PP e deixou a direcção do PS isolada face ao seu próprio grupo parlamentar e certamente face a larguíssimos sectores do seu eleitorado.

A situação actual continua a empurrar a mulher para o aborto clandestino.

Entretanto, os 99 votos obtidos pelo projecto-lei do PCP, a recusa do projecto dos deputados do PS por apenas um voto e a aprovação do projecto-lei de Strecht Monteiro (que é indissociável da iniciativa do PCP e contém aspectos positivos mas é muito insuficiente), revelaram o maior apoio parlamentar de sempre às propostas de legalização da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) até doze semanas, a pedido da mulher, com fundamento em razões sociais e económicas.

Estão assim reunidas boas condições para, oportunamente, confrontar de novo a Assembleia da República com soluções legislativas para o problema do aborto clandestino e que criem um quadro legal que permita a realização da IVG.

São muitas as críticas, vindas de meios diferentes, ao acordo PS/PSD para a revisão da Constituição. Que importa reter principalmente em relação ao processo que levou a tal acordo e aos seus objectivos?

Creio que se pode afirmar que este acordo é entendido pela generalidade da opinião pública como de facto o é, ou seja, um importante sucesso da direita, que foi impossível com o PSD no Governo e dispondo de maioria parlamentar.

O acordo confirma uma inaceitável convergência de posições entre as cúpulas do PS e do PSD, à margem do parlamento e de forma secretista, como o PSD sempre reclamou e que o PS repetidas vezes jurou publicamente não aceitar.

Do “acordo” pode dizer-se que atenta contra princípios básicos do regime constitucional e contra a democraticidade e pluralismo do sistema político e eleitoral.

Põe em causa a proporcionalidade e representatividade na Assembleia da República, visando, através de círculos uninominais e da possibilidade de redução do número de deputados, uma bipolarização administrativa em benefício do PS e do PSD.

Atenta contra a democraticidade de eleição do Presidente da República abrindo a porta ao voto indiscriminado dos emigrantes.

Procura subverter a representatividade e o pluralismo do poder autárquico tornando possíveis executivos monopartidários com cerca de 30% de votos.

Cria dificuldades à regionalização que fica nas mãos dos seus adversários, isto é, nas mãos da actual direcção do PSD.

Não permite o referendo sobre a moeda única ou a revisão do Tratado de União Europeia.

Estabelece um novo equilíbrio de poderes entre órgãos de soberania e regiões autónomas que, como tem sido dito, nos aproxima das características de um Estado federal.

E coloca questões essenciais do sistema político, como os mecanismos de apuramento eleitoral, na dependência conjuntural de leis ordinárias e da contingência de maiorias.

Mas vale a pena referir ainda outros aspectos graves deste vergonhoso acordo PS/PSD: o enfraquecimento de direitos e garantias dos trabalhadores e de direitos económicos e sociais que são hoje responsabilidade do Estado, a desconstitucionalização do sector público da economia, a subordinação das Forças Armadas a compromissos internacionais no âmbito da NATO e UEO e a permissão da extradição de portugueses.

Neste quadro, ninguém se surpreende com as dificuldades que o acordo está a trazer ao PS para gáudio do PSD.

E ninguém se surpreende por o acordo constituir motivo de profunda preocupação mesmo para muitos socialistas que se distanciam ou criticam os seus aspectos mais gravosos, particularmente as cláusulas secretas que se vão conhecendo.

Mas o processo de revisão da Constituição não está terminado.

Pela nossa parte dar-lhe-emos firme combate.

Interviremos com confiança e perseverança para que PS e PSD sejam confrontados e responsabilizados pelas suas posições e para que seja possível suster alguns dos aspectos mais negativos do celerado acordo de revisão constitucional do PS e PSD.

O PCP desenvolveu uma campanha de esclarecimento sobre a moeda única e também de assinaturas para um referendo a esse respeito. Quais foram até hoje os resultados obtidos e qual o caminho para continuar esse aspecto da nossa luta?

Nesta data não temos ainda dados centralizados das assinaturas de apoio a um referendo sobre a moeda única. Já estão recolhidos uns milhares, mas o quadro nacional da recolha torna o balanço difícil.

Em todo o caso temos dado passos significativos para alertar a sociedade para a justeza do referendo e feito a denúncia das forças políticas - PS e PSD - que optaram pela marcha forçada e silenciosa para a moeda única.

Nos próximos meses continuaremos a procurar informar e esclarecer os portugueses do que significa a consumação desta união económica e monetária.

Procuraremos tornar cada vez mais claro que, pelo caminho da moeda única, advêm consequências gravosas para o tecido produtivo nacional, para os salários e o emprego e para a soberania do País e, que, ao contrário do que afirma o Governo, em vez das acrescidas facilidades, teremos um período pós integração ainda mais difícil que o actual, quando já não houver privatizações para pagar os défices orçamentais, nem escudo para utilizar em defesa da produção nacional, quando o “pacto de estabilidade” nos obrigar a pagar multas elevadíssimas pelo não cumprimento dos critérios e quando o próprio estatuto de Portugal na cena internacional estiver profundamente alterado pela perda de soberania, numa União Europeia dirigida por um directório de grandes potências. Por isso, continuaremos a luta. Continuaremos a recolher assinaturas pelo referendo e realizaremos por todo o país sessões de esclarecimento e debates sobre este tema, promovendo a participação de outras sensibilidades e opiniões. Realizaremos um Seminário internacional sobre a moeda única em 19 de Abril e um grande Comício internacional “Pelo emprego com direitos, por uma Europa de progresso social, paz e cooperação” em 24 de Maio, no Campo Pequeno, em Lisboa.

Têm as acções de massas tido o vigor e a importância necessários para influenciar a actual situação política?

Creio que vai ficando claro para mais portugueses, que a luta de massas pode e deve ser um factor relevante e mesmo decisivo para impedir ou minimizar as consequências mais negativas das políticas prosseguidas pelo Governo PS; que pode e deve ser um factor de consciencialização social e política.

Poderíamos dar a este respeito exemplos recentes muito diversos, mas o mais evidente é a luta dos trabalhadores do têxtil, vestuário e calçado e da metalurgia pela semana das 40 horas, que, com grande coragem, em greves e manifestações, têm conseguido êxito em muitas empresas e obrigado o Governo a alguns recuos.

Estão a ser dados passos capazes de fortalecer o Partido de forma a repercutir nas próximas eleições autárquicas?

Estamos a procurar fazê-lo, no quadro das resoluções do Congresso e de acordo com as forças e as possibilidades reais de que dispomos.

A ligação aos trabalhadores e às populações, o recrutamento e o rejuvenescimento são direcções da máxima importância.

As próximas eleições autárquicas exigem o empenho e intervenção de todos, e se o reforço do Partido tem influências positivas nas eleições autárquicas, não é menos certo que a própria preparação das autárquicas, a constituição das listas, o contacto com milhares de cidadãos e a própria campanha são factores importantes para o nosso reforço.


«O Militante» Nº 228 de Maio/Junho de 1997