«O Militante» Nº 227 de Março/Abril de 1997 - As origens da canção urbana
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A música popular, enquanto criação típica da gente das
cidades destinada a transformar-se no século XX em produto
cultural de massa, após quase quinhentos anos de evolução do
estilo de canto solista acompanhado, representado pela canção,
surgiu na passagem dos séculos XV para o XVI como mais um
resultado do processo de urbanização anunciador do fim do longo
ciclo de economia rural da Idade Média.
De facto, até ao século XV as cidades ainda constituíam apenas centros de população ligados ao campo. É que a economia citadina, mesmo nas áreas onde começava a desenvolver-se o trabalho de manufactura, envolvia uma identidade necessária de interesses entre a produção urbana e a rural, pois os mercadores-empresários, que passavam a controlar as corporações através de encomendas, eram os mesmos que investiam no campo para obter a matéria-prima e os produtos destinados à sua indústria e comércio.
As primeiras manufacturas da era dos mercadores financeiros só serviam, pois, nesse primeiro momento, para incrementar a produção de modo feudal, uma vez que, ao produzirem com base no trabalho ainda protegido por privilégios, para o fornecimento a um mercado sem competidores, não incluíam os elementos necessários à configuração da economia capitalista geradora de centros urbanos modernos: o trabalho livre e a propriedade privada da terra e dos meios de produção. E, finalmente, - e em consequência - não conduziam ao que se tornava indispensável para o advento da vida urbana: a ampliação vertical do mercado pela transformação, em compradores, dos integrantes das novas camadas surgidas com a diversificação do trabalho originada, exactamente, pelo novo sistema de produção.
É a partir do século XV, com a abertura do comércio internacional pelo Atlântico, graças às grandes navegações de Portugal e Espanha, que os mercadores burgueses financiadores das manufacturas podem, afinal, iniciar o processo de acumulação capitalista capaz de levar ao rompimento final dos entraves impostos à expansão das suas actividades pelo sistema feudal. E isso iam consegui-lo graças à entrada de lucros do exterior (onde usam trabalho escravo), ao aumento da base monetária e da expansão interna do trabalho livre, tanto no campo (onde se afrouxam os laços de servidão) quanto nas próprias cidades (onde decai o controlo das corporações sobre a formação e a prestação de serviço de trabalhadores e artesãos).
Esse poder derivado da concentração dos ganhos da indústria manufactureira e do alto comércio em mãos dos mercadores-empresários e ricos-homens - como se chamavam em Portugal os grandes detentores de rendas e capital - após gerar os primeiros conflitos sociais nos centros industriais mais desenvolvidos da Europa, como Flandres e Itália, acaba garantindo à burguesia urbana em geral posição privilegiada em face da nobreza e do próprio poder real (aos quais, aliás, se associava pelos financiamentos). E é isso que vai permitir, finalmente, transformar as cidades em grandes mercados dos bens produzidos ou comercializados por essa nova classe de homens de negócios.
A partir desse momento da evolução do sistema de exploração económica no sentido do moderno capitalismo - que alcançaria seu auge duzentos anos mais tarde, com a revolução industrial do século XVIII - os grandes centros de burguesia manufactureira e comercial se transformariam em cidades no sentido verdadeiramente moderno, com o trabalho livre permitindo sua acelerada divisão em numerosas novas especializações, e o consequente aparecimento de um mercado interno para consumo de sua própria produção.
Um dos países da Europa que primeiro atingiu esse estágio de evolução que obrigava à criação de centros de decisão administrativo-financeiros em áreas urbanas de estrutura económico-social já bastante diversificada - graças à variedade do comércio e à multiplicação dos serviços - seria pelo correr do século XV, a oeste da Península Ibérica, o pequeno Portugal.
Na verdade, apesar de em seu retrato de Lisboa do século XVI o historiador Vitorino Magalhães Godinho ressalvar que a capital, de mais de 100 mil habitantes, «não é grande cidade industrial», o quadro que dela traça em seu livro Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa não deixa dúvida quanto à sua modernidade e importância, em comparação com os demais grandes centros da Europa de então:
«Mas Lisboa é a cabeça de um império e de uma economia mundial: ouro da Guiné e Minas, açúcar da Madeira, São Tomé, depois, Brasil, pastel açoriano, especiarias e drogas do oriente, prata da Europa Central e, posteriormente, do México e Peru, pau-brasil, escravos negros, que vão formar a mão-de-obra de engenhos e fazendas nos arquipélagos de Além-Atlântico, porcelanas e sedas da China, obras de cobre da Alemanha, tecidos italianos, flamengos, ingleses, que sei eu mais? Aqui está instalada a alta administração do Reino e Ultramar, e as rodas supremas dessa engrenagem económico-administrativa que lida com feitorias e colónias é que compreende a Casa da Guiné e Mina, a Casa da Índia, as Vedorias da Fazenda - engrenagem articulada ao grande capitalismo cosmopolita».
Assim, não seria de estranhar que, menos de um século depois do humanista alemão Jeronimo Münzer ter resumido em 1494 sua impressão da visita às Casas de Fundição de Artilharia da Ribeira com a frase - «Em comparação disto nada é o material de Nuremberga» - tenha o francês André Thevet comentado em 1575, ante a visão do cais da mesma Ribeira: «É um prazer ver o grande número de navios que aqui abordam, e a diversidade de nacionalidades, e o trato mercantil que aqui se faz: de tal modo que direi com justiça que é das mais comerciais de todas as Espanhas».
Ora, se é verdade que a novos conteúdos correspondem formas novas, não há dúvida de que, às mudanças de carácter social ocorridas em face dessa ampliação das actividades económicas em grandes centros como Lisboa haveriam de corresponder novas necessidades, inclusive de carácter cultural. E o exame da realidade do quotidiano português a partir do século XV, principalmente na sua capital - agora metrópole de um império ultramarino e entreposto obrigatório do comércio internacional - não deixaria de fornecer as mais claras evidências dessa verdade.
* Do livro As Origens da Canção Urbana, José Ramos
Tinhorão, Editorial Caminho, Lisboa, 1997.