«O Militante» Nº 227 de Março/Abril de 1997 - Talibans, Afeganistão

Ásia Central no alvo do imperialismo

Talibans, Afeganistão

Por Eduardo Costa
Professor do Ensino Secundário




Entre 1978 e 1988, os orgãos da comunicação social mundiais ocuparam-se diariamente do Afeganistão. Quebrando uma história de centenas de anos, em que tinha sido governado por grupos feudais, aristocráticos, atrasados, com base na propriedade das terras, no comércio, na tradição religiosa, o país era, então, governado por um governo progressista que intentava modernizar a economia, elevar o ensino e a saúde, democratizar as relações sociais, libertar a mulher.

Não era a primeira tentativa de modernização do Afeganistão, outras já tinham sido ensaiadas no pós-guerra mundial, conduzidas pela própria monarquia. A diferença consistia agora em que se lhe acrescentavam preocupações, um programa, medidas e um viver democráticos, havia participação comunista no governo revolucionário, tinha a solidariedade activa da União Soviética.

Operações cínicas

A guerra civil que se seguiu, na qual as forças soviéticas se comprometeram, tornou-se presença quotidiana, obrigatória, nos noticiários internacionais, filtrada pelos interesses e a visão “ocidentais”. A imprensa “livre ocidental” garantiu que os guerrilheiros “mojahedin”, treinados, armados, apoiados pelo Paquistão e os EUA não eram grupos de salteadores sem princípios, com projectos pessoais de poder, que se sustentavam do tráfico da droga, mas verdadeiros “combatentes da liberdade”. Foi assim que o presidente dos EUA, Ronald Reagan, os definiu e empenhou a palavra por eles.

Palavras e posição que se tornaram incómodas quando se tornou óbvio que os “mojahedin”, vencedores e pró-americanos, matavam, estripavam, violavam civis, mulheres, velhos, crianças, faziam descer a lei do terror sobre a população e não se entendiam entre si, como se tornou patente na tomada de Cabul, em que as diversas facções de “libertadores” se bombardearam umas às outras, depois da saída do último soldado soviético, ... durante três anos.

Posição tanto mais incómoda quanto, no dizer do jornalista do The Guardian, Jonathan Steele, “a maior operação secreta da história da CIA foi totalmente cínica: combater até ao último afegão para deixar exangue a União Soviética”. Colocados perante a situação embaraçosa, os media do “mundo livre” perderam a curiosidade pelo Afeganistão e pela sua sorte tão subitamente como a tinham ganho. A liberdade e a democracia afegã desapareceram no buraco negro da memória da “comunicação livre”...

Uns anos depois, o Afeganistão voltou de novo a aparecer nos noticiários ligado ao nome dos “taliban”. O jovem movimento foi apresentado envolto numa aura romântica e misteriosa, assoprado por um vento fácil de vitórias, ascendente. Eram jovens, eram estudantes de teologia e pareciam brotar do nada.

O grande público mirava perplexo as notícias sobre o Afeganistão. Tudo o que percebia era que as agências noticiosas do “mundo livre” se descartavam subtilmente dos “combatentes da liberdade”, vencedores da véspera, e já tinham novos heróis. Mas, se os “taliban” não surjiam do nevoeiro, provinham na maioria de escolas religiosas (madrassas) paquistanesas, eram, sobretudo, uma aposta dos dirigentes paquistaneses, nomeadamente do Partido Popular Paquistanês, de Benazir Bhutto, e dos poderosos serviços secretos do Paquistão (ISI), que dedicam duzentos dos seus agentes à ingerência nos assuntos internos afegãos (1), porque vinham eles substituir os “mojahedin”, igualmente uma aposta dos mesmos serviços secretos e dos meios políticos vizinhos? Que interesses se jogam no Afeganistão que justificam tão empenhada “atenção”?

O Afeganistão é um assunto tradicional da política paquistanesa. Ao ajudar a instalar em Cabul um governo da sua confiança e em dívida para consigo, os meios dirigentes paquistaneses prevêem vir a alcançar vários tipos de vantagens: abrir um corredor para a Ásia Central; tornar-se no mercado natural das antigas repúblicas soviéticas (Turquemenistão, Uzbequistão, Tadjiquistão); lucrar com a passagem do gasoduto (projecto americano-saudita, que ligará o Turquemenistão ao porto paquistanês de Gwadar, no mar de Omã, atravessando território afegã) e do oleoduto (igualmente projectado) pelo seu território; garantir o abastecimento de energia, da qual são cronicamente carentes; valorizar o seu papel estratégico junto dos EUA; obter profundidade estratégica em relação ao vizinho e inimigo Estado da Índia, com o qual já travaram três guerras, que perderam todas (1948, 65, 71), e com o qual mantêm pendente um grosso litígio em torno da rica região de Cachemira.

Às razões de Islamabad somam-se as de Washington. Vimos que durante dez anos, a contra-revolução afegã foi alimentada e acarinhada pela superpotência norte-americana com o intuito, conseguido, de sangrar a União Soviética. Hoje, o apadrinhamento dos planos paquistaneses por Washington tem outro nome, obedece a uma lógica derivada da anterior. Chama-se Unocal, a companhia petrolífera americana que projecta, conjuntamente com a companhia saudita Delta Oil, o gasoduto através do oeste do Afeganistão.

É um projecto no qual os americanos investem, à partida, dois mil milhões de dólares, porque o gasoduto, que será acompanhado de um oleoduto, lhes permitirá evacuar o petróleo da Ásia Central e do Cáspio e lhes facilitará isolar o Irão, candidato natural ao gasoduto pela sua situação geográfica privilegiada e pelas infra-estruturas que já possui no terreno.

As companhias petrolíferas americanas, entre elas a gigantesca Chevron, investem massivamente no projecto. A Unocal apoia abertamente os “taliban”, sustenta “lobbies” de pressão na região, no Paquistão e em Washington (2). A Unocal e os EUA retomam no Afeganistão dos anos 90 a receita da Aramco na Arábia Saudita dos anos 30: fundamentalismo islâmico, tribalismo e petróleo.

Como se compreende, a Arábia Saudita joga do lado dos EUA e do Paquistão. Os interesses económicos interligam-se com motivações políticas e religiosas. Vêem com bons olhos os “taliban”, pois estes estão próximos da sua concepção religiosa tradicional e são pró-ocidentais; ao contribuirem para impedir o Irão de ocupar o campo da legitimidade religiosa e para o afastar da exploração do petróleo da Ásia Central, diminuem o papel estratégico, porventura, do mais directo concorrente da Arábia Saudita no Médio Oriente.

Se tivermos presente que a um eventual ganho do eixo “taliban”-Paquistão-EUA-Arábia Saudita corresponde uma perda da Rússia, do Irão e da Índia, começamos a entrever o complexo xadrês que se trava na zona. A Rússia perde, porque um avanço dos EUA na Ásia Central se faz à custa de um recuo da influência russa, e perde, porque uma vitória “taliban” significa, muito provavelmente, uma tensão acrescida na fronteira do Tadjiquistão.

Amizades inconfessáveis

Após um breve período de esperança, o Afeganistão vive há anos em perda e o recuo social e económico será certamente mais acentuado sob o domínio “taliban”.

A comunicação enfeudada à batuta norte-americana tem praticado operações de plástica verbal subtis para representar os “taliban” sob uma luz favorável. Associa-os sempre à juventude, ao estudo e ao estudo de matérias teológicas, a um idealismo religioso e a um certo rigorismo moral.

É, no entanto, difícil casar esta “pose” monástica com a realidade observada por J. Steele: “Onde quer que entrem, os “taliban” impõem uma versão do Islão que não tem paralelo no mundo. Pessoas têm sido forçadas pelas armas a frequentar mesquitas. As mulheres são proíbidas de trabalhar e os homens obrigados a deixar crescer a barba. As televisões são ilegais e as antenas parabólicas destruídas a tiro. As cassetes de música são arrancadas dos automóveis e esmagadas com pedras à beira da estrada”. (3)

Ou relacionar os comportamentos concretos descritos por El País com os “taliban” da legenda idealizada: uma dúzia de jogadores foram presos e desfilaram pelas principais avenidas de Cabul com as caras pintadas, enquanto guardas “taliban” lhes batiam com bastões para que cantassem de cabeça erguida, “todos os que jogam a dinheiro terão a cara pintada como nós”; na semana anterior talhantes e padeiros que praticavam preços especulativos tinham sofrido tratamento idêntico. (4)

Os testemunhos de matanças, atrocidades, destruições, obscurantismo são inúmeros e das fontes mais diversificadas. Desde a confissão orgulhosa do “mullah” (autoridade religiosa) “taliban” que proíbe a filha de cinco anos de frequentar a escola até ao espancamento de mulheres, executado por combatentes “taliban”, na via pública, a pretexto de elas não usarem correctamente o véu tradicional, há para todos os horrores. O fanatismo e a crueldade “taliban” têm levado a um esquecimento rápido a violência dos “mojahedin”, o que explica que após a tomada de Cabul pelos “estudantes de teologia”, a 26/9/96, em pouco mais de dois dias, a cidade tenha perdido duzentos e cinquenta mil habitantes e os que ficaram ou não puderam fugir cantem: “Cabul, minha bem-amada Eles deixaram-te irreconhecível!/Ah!Que tirania!Que crueldade!”.

Nos dias que correm já não espanta que os EUA, pretensos campiões dos direitos humanos, não levantem a voz para assinalar nada disto. Bem antes pelo contrário, comprometidos até ao tutano na ascenção dos “taliban”, como já antes haviam estado na contra-guerrilha dos “mojahedin”, a quem enviaram mísseis e milhares de toneladas de outras armas (aviões, blindados, telecomunicações modernas) (2) através do Paquistão, a preocupação actual das chefias norte-americanas é distanciarem-se, nas imagens da comunicação, dos seus aliados “taliban”, e disfarçarem o indisfarçável regosijo com que assistem a cada um dos seus triunfos.

A questão que naturalmente se coloca é porquê esta preferência recente pelos “taliban” e não pelos “mujahedin”, que tão bem serviram a estratégia imperialista?

A resposta a isto encontra-se no facto de Washington, Riad e Islamabad terem percebido, sobretudo a partir de 1993, que os seus aliados da véspera eram menos dóceis do que o pretendido, e que o movimento islâmico sunita liderado pelo “mujahedin” Hekmatyar, até aí fortemente alimentado pelo Paquistão, apoiava Saddam Hussein, apoiava redes anti-americanas e não seria completamente estranho a atentados contra pessoas e valores norte-americanos, nomeadamente o famoso atentado contra o World Trade Center, em Nova Yorque, em 1993. Ou que o ex-presidente Rabbani e seu general de confiança Ahmed Shah Massoud eram hostis ao governo de Islamabad e mantinham laços privilegiados com a Índia.

A erosão política interna dos movimentos “mujahedin” facilitou a escolha dos “taliban”. São de etnia pachtune, maioritária no sul do Afeganistão; têm afinidades étnicas com os oficiais paquistaneses que os treinam e aconselham, muitos deles pachtunes também; provêm das zonas rurais (os afegãos tocados pela Revolução concentravam-se principalmente nas cidades); e, sobretudo, não possuem passado digno de registo no Afeganistão, visto que os seus “mollah” não saem das antigas famílias aristocráticas. Isto é, devem o que são aos “amigos” americanos e paquistaneses.

Os EUA, através do Afeganistão, têm desenvolvido uma grande operação de penetração na Ásia Central e nas suas riquezas, cercando e isolando a Rússia e o Irão, pressionando a Índia. É uma operação aventureira, de resultado incerto, que revela a falta de princípios do capitalismo e da qual a imagem moral dos EUA sai corroída pelo recurso às forças mais retrógradas e sanguinárias.

(1) Le Monde Diplomatique, Janeiro/97, pg. 5
(2) Idem, Novembro/96, pg. 6 e7.
(3) Público, 13/10/96, pg.10.
(4) El País, 1/12/96, pg. 7.


«O Militante» Nº 227 de Março/Abril de 1997