«O Militante» Nº 227 de Março/Abril de 1997 - A segurança e a sociedade

A segurança e a sociedade

Por José Neto
Membro do Comité Central




Os problemas e os casos de insegurança e de violência na nossa sociedade, pela frequência e pelo grau com que ocorrem e invadem o dia a dia da vida dos cidadãos, estão a provar cada vez mais claramente que, longe de estarem resolvidos, vieram para ficar.

E ao falar de violência e insegurança não queremos agora tratar da violência nas relações sociais, da violência do desemprego ou do trabalho infantil, da insegurança no emprego, ou dos jovens quanto às saídas profissionais e da insegurança de todos quanto ao futuro.

Queremos tratar da violência nas ruas e nas escolas, da pequena criminalidade que apoquenta as famílias e os cidadãos das nossas cidades e vilas, da justiça pelas próprias mãos, da repressão e violência policial, da desconfiança e separação entre as populações e os serviços e forças de segurança.

Em qualquer caso é preciso tomar consciência de que, citando o poema de Brecht, “do rio que tudo arrasta se diz que é violento, mas ninguém diz violentas as margens que o oprimem”.

Na verdade, a criminalidade e a violência são uma consequência inevitável da crise económica e social em que vivemos. E, mais do que isso, elas são, nos dias de hoje, um aspecto específico, inerente à própria crise, profunda e global - económica, política, social, cultural e de valores - em que o capitalismo e as políticas criminosas, neoliberais, mergulham as nossas sociedades.

Só tomando verdadeiramente consciência das causas conseguiremos ver a floresta para além da árvore e teremos condições de agir, transformando a situação.

Lições dos acontecimentos de Évora

Os lamentáveis acontecimentos do, ainda fresco, “caso de Évora”, em que foi morto um jovem assaltante, toxicodependente, tiveram o condão de, nos seus desenvolvimentos contraditórios, nos darem um quadro impressivo, em tons fortes, da complexa realidade com que se tece a nossa segurança.

Ressaltam desse quadro, em primeiro lugar, o problema da droga que alastra como mancha incontrolada, arrastando jovens (cada vez mais jovens) de todas as camadas, para comportamentos anti-sociais, a demonstrar como estão fundas as raízes do mal, como é imperativo agir ao nível das causas e investir em mais prevenção, e como são ilusórias, sem sentido e geradoras de mais violência, soluções que se resumam às medidas de simples encarceramento ou que, no limite absurdo, resultem na eliminação física dos delinquentes ligados à droga.

A este propósito, a sanha persecutória contra toxicodependentes levada a cabo por milícias populares é um sintoma das graves doenças sociais que alastram perigosamente na sociedade e que é urgente atalhar.

Em segundo lugar, deve ter ficado agora mais claro que se, por um lado, não devem as decisões dos Tribunais estar acima de toda a crítica ou discordância, legítimas, a passagem dessa fronteira através de formas de pressão ou ostensiva desconfiança nas decisões judiciais leva directamente a água ao moínho da direita e dos partidos da direita, ciosos de minar e pôr em causa uma das expressões mais avançadas e democráticas da estrutura do Estado de direito que a Constituição da República consagra e que é imperioso preservar - a independência do poder judicial e dos Tribunais como órgãos de soberania.

Em terceiro lugar, a ocorrência de mais uma morte inútil a lamentar, em circunstâncias e com contornos pouco claros (até quando?) mas em que avultam, mais uma vez, a utilização não adequada ou indevida de armas de fogo, a opacidade de procedimentos no interior das instalações policiais, as justificações precipitadas e contraditórias ou os encobrimentos. Estes factos devem levar à exigência de que, de uma vez por todas, seja não apenas estabelecido um código de conduta policial com regras mais claras e precisas, mas sobretudo melhor e mais permanente formação teórica e prática, adequada às funções cívicas dos agentes policiais, por forma a coadunar a necessária eficácia na repressão do crime com a estrita salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

Em quarto lugar, nos momentos de crise e turbulência que se viveram no interior e em torno da instituição policial, a atitude do comando e hierarquia e, simultaneamente, dos profissionais de polícia enquadrados pela sua associação representativa, mostram bem que o actual modelo policial está (há muito) completamente esgotado, vive num perigoso impasse com disfunções no seu interior e no seu relacionamento com a sociedade. O impasse a que se chegou tem causas e responsáveis. São o resultado da política de direita dos Governos desde 1976, dos dez anos de autoritarismo do PSD, que o PCP sempre denunciou, e da falta de vontade política e medidas adequadas que se impunham por parte do actual MAI Alberto Costa e do Governo PS, para a necessária mudança.

O Governo do PS é responsável

Efectivamente, a política do actual Governo para as forças de segurança tem-se caracterizado pela falta de clareza de objectivos e pela continuidade, nas questões fundamentais, da política de segurança interna dos Governos PSD e tem sido marcada pela indecisão e lentidão nas reformas.

A falta de clareza é patente na ainda indefinida estruturação da PSP - enquanto se continua a apostar na concentração de grandes efectivos nas super esquadras de Lisboa ou Porto, tarda a reabertura ou a abertura de novas esquadras que a população reclama e o PS dizia defender. É grave que não se conheça qualquer projecto claro a este respeito.

Mais grave ainda é a falta de decisão do Governo, que leva a que se mantenha inalterado um modelo de segurança com forte pendor militarizado e em que avulta um excessivo número de corpos especiais - quer na PSP quer na GNR - quase exclusivamente destinados a acções repressivas sobre os cidadãos, com prejuízo das missões de natureza preventiva, designadamente o patrulhamento dos centros urbanos.

A ausência de medidas de racionalização dos efectivos policiais leva a que se continuem a manter ocupados em diligências judiciais centenas de profissionais das forças de segurança, afastando-os assim do cumprimento da sua missão normal.

Relativamente ao sindicalismo policial é notória a falta de vontade política do Governo, que tarda em assumir claramente a única opção que verdadeiramente virá a conferir aos profssionais os seus legítimos direitos de cidadania.

O atraso das medidas de instalação da Inspecção Geral da Administração Interna (IGAI), de que se queixa o seu próprio titular, continua a impedir o normal desenvolvimento das importantes funções de inspecção que aquele órgão poderia desempenhar.

No que respeita à GNR, o Governo do PS parece continuar apostado na manutenção de um obsoleto e desadequado enquadramento militar como forma de impedir direitos tão elementares como o horário de trabalho e condições de vida dignas.

O Governo do Partido Socialista é ainda responsável pela grave situação que se regista em toda a área dos Serviços de Informação da República e que desenvolvimentos recentes, a propósito da Autoridade Nacional de Segurança ou dos acordos anunciados entre o PS e o PSD para a fiscalização do SIS, tornam ainda mais preocupante, pela ausência total de transparência, fiscalização e controlo democrático e plural.

O PCP aponta soluções

De há muito o PCP se preocupa com os problemas relacionados com o combate ao crime e com a segurança e tranquilidade das populações. O nosso pensamento e as nossas propostas são claras a este respeito.

Desde logo sobreleva a ideia de que o êxito na luta contra a criminalidade passa pelo combate às suas causas. E estas radicam seguramente nos problemas económicos e sociais mais gritantes da sociedade portuguesa, como uma muito intensa exploração, as desigualdades e a exclusão social, o alastrar da toxicodependência e da xenofobia, o desemprego e a falta de futuro da juventude.

Daí defendermos que a solução não está na exigência de mais polícia, ou de mais tribunais e penas mais duras, ou de mais prisões.

Estes sistemas - policial, judicial e prisional, cuja necessidade obviamente não está em causa - tornam-se hoje em dia crescentemente ineficazes e inoperantes, bloqueados e mesmo desvirtuados pelo peso esmagador da conflitualidade social a que são chamados a responder e que não foi resolvida a montante.

Aquilo que o poder político não se mostra interessado ou é incapaz de resolver por via de políticas democráticas, económicas, sociais e culturais, resulta na perversão e no desvirtuamento dos outros sistemas - as polícias que reprimem, mais do que previnem, a justiça que sendo lenta se nega a si própria, as prisões como expiação e escola de crime e muito pouco de ressocialização.

A consideração destes aspectos, fundamentais, não deve fazer esquecer, nem torna irrelevantes, as medidas políticas relacionadas com a segurança e tranquilidade das populações e também as relativas à natureza e papel das forças de segurança.

Concretamente em relação às forças de segurança o PCP defende três direcções fundamentais:

- a primeira, visando o aprofundamento da vertente civilista das forças policiais, a desmilitarização das suas estruturas, a sua modernização em conformidade com as características de um verdadeiro serviço público com as funções, constitucionalmente consagradas, de “... defender a legalidade democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos”.

- a segunda, visando uma maior proximidade entre a polícia e os cidadãos e uma maior participação e envolvimento das comunidades locais - designadamente através da aprovação da lei dos Conselhos Municipais de Segurança - com vista ao aumento da confiança das populações e a uma maior eficácia na prevenção da criminalidade.

- a terceira, visando os aspectos da formação dos agentes das forças de segurança, a melhoria das suas condições de vida e de trabalho e o respeito pelos seus direitos de cidadania, designadamente o reconhecimento do sindicalismo policial, à semelhança do que acontece com a generalidade das organizações policiais da União Europeia.

Relativamente a todas estas matérias o PCP apresentou na Assembleia da República, já na actual sessão legislativa, todo um vasto conjunto de iniciativas. Destas salienta-se pela sua importância, o Projecto-Lei relativo às Grandes Opções em matéria de Segurança Interna, como um contributo para a definição de orientações e medidas que há muito se mostram necessárias à segurança das populações e que o Governo do PS tarda em adoptar com prejuízo da estabilidade das forças policiais, da confiança dos cidadãos e da segurança e tranquilidade públicas.

Da Resolução Política do XV Congresso do PCP

Em matéria de segurança e tranquilidade pública, o PCP propõe: o combate ao crime, sobretudo o combate às suas causas, às desigualdades e injustiças, o que passa pelo êxito na luta por nova política de desenvolvimento económico, social e cultural harmonioso e integrado; uma política de segurança que garanta e defenda a legalidade democrática e os direitos dos cidadãos, prevenindo e reprimindo o crime, proibindo actuações ilegais e antidemocráticas dos Serviços de Informação, garantindo a fiscalização efectiva e democrática da sua actividade e pondo termo às acções repressivas sobre os legítimos protestos populares; uma política de segurança com uma forte componente preventiva, que aproxime a polícia dos cidadãos e renove a confiança das populações nas forças de segurança; alterar radicalmente o caminho seguido na reestruturação das forças de segurança, designadamente abrindo novas esquadras e reabrindo as velhas esquadras e postos onde necessário e melhorar o policiamento preventivo, restringir ao mínimo os efectivos dos corpos especiais de reserva, em benefício do patrulhamento urbano, reorganizar o optimizar as capacidades de resposta das forças de segurança, com base na definição do seu carácter civilista e judicializado; uma política de segurança que dinamize a intervenção das populações, das comunidades e das autarquias na discussão dos problemas de segurança e viabilize a sua participação através dos Conselhos Municipais de Segurança dos Cidadãos em todos os municípios do país, que dote as forças policiais com meios humanos e materiais suficientes e com formação técnico-profissional adequada e humanizada e que promova a melhoria das condições de vida e de trabalho dos profissionais das forças de segurança e respeite os seus direitos de cidadania, designadamente o reconhecimento do direito de associação sócio-profissional para a GNR e de associação sindical para a PSP.


«O Militante» Nº 227 de Março/Abril de 1997