Intervenção de António Filipe na Assembleia de República

Sobre a provocação da morte antecipada – «eutanásia» e «suicídio assistido»

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Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

A oposição do PCP em relação às iniciativas que estão hoje em debate é bem conhecida. Não é uma oposição tomada de ânimo leve, motivada por maniqueísmos ou baseada em ideias feitas. É uma opção que resulta de uma reflexão intensa sobre um tema que, pela sua complexidade, pelas inquietações que suscita e pela transcendente importância dos valores que estão em causa, dispensa qualquer atitude de arrogância intelectual ou qualquer invocação de superioridade moral.

O PCP sempre se recusou a encarar o debate sobre a eutanásia como uma guerra de trincheiras de religiões contra ateísmos, de pessoas de esquerda contra pessoas de direita, de iluminados contra obscurantistas. O PCP é um Partido laico e de esquerda (não creio que haja dúvidas sobre isso) e baseia as suas posições numa reflexão onde não cabem dogmas nem ideias pré-concebidas.

O julgamento que hoje nos é pedido enquanto legisladores não incide sobre consciências individuais. Trata-se de decidir sobre uma opção legislativa. Uma opção do Estado, não dos indivíduos.

Não fazemos nenhum processo de intenções negativas das iniciativas legislativas, dos seus autores ou de quem concorda com as opções que delas constam. Admitimos, sem qualquer reserva mental, que a intenção dos proponentes seja poupar o sofrimento humano e respeitar a opção individual de acabar com o sofrimento pedindo apoio para pôr termo à vida.

Todavia, o que estamos a discutir, e aquilo sobre que teremos de decidir, não é sobre a opção individual de cada um sobre o fim da sua vida, mas sobre a atitude a tomar pelo Estado relativamente à fase terminal da vida dos seus cidadãos. A autonomia individual é algo que deve ser respeitado, mas uma sociedade organizada não é uma mera soma de autonomias individuais. Não pode o legislador assumir uma opção legislativa sobre a vida e a morte das pessoas sem ter em conta as circunstâncias e as consequências sociais dessa opção.

Este não é um debate entre quem preza a dignidade da vida humana e quem a desvaloriza. A dignidade de cada ser humano perante as circunstâncias da sua própria morte é algo que ninguém está em condições de julgar.

Não se discute aqui a dignidade individual seja de quem for. O que se discute é a questão de saber se um Estado que nega a muitos cidadãos os meios para viver dignamente lhes ofereça os meios legais para antecipar a morte pretensamente com dignidade.

Todas as iniciativas legislativas assentam numa ideia de respeito pela autonomia e pela liberdade individual de pessoas em sofrimento extremo. Mas num país em que os cuidados paliativos só são acessíveis a 25% da população, e certamente que entre esses 25% não estarão os cidadãos menos favorecidos, qual é a liberdade que se oferece aos outros 75%?

O Estado Português não pode continuar a negar à maioria dos seus cidadãos os cuidados de saúde de que necessitam, particularmente nos momentos de maior sofrimento. A criação de uma rede de cuidados paliativos com carácter universal tem de ser uma prioridade absoluta. Certamente que todos concordaremos com isso, independentemente do destino final das iniciativas em discussão. Ninguém aqui entende a eutanásia como um sucedâneo dos cuidados paliativos.

Mas para o PCP há uma questão que é incontornável. Um país não pode criar instrumentos legais para ajudar a morrer quando não garante condições materiais para ajudar a viver. Um país que se quer decente não pode condenar cidadãos a ter de optar entre o sofrimento ou a morte.

Responder-me-ão, senhores Deputados, que a situação actual, ao não permitir antecipar a morte, condena ao sofrimento. Tomemos então medidas, senhores Deputados, para que todas as pessoas tenham a assistência a que têm direito, recorrendo a todos os meios que a ciência e a técnica já permitem mobilizar, mas comecemos pela vida, não comecemos pela antecipação da morte.

A evolução da ciência e da técnica tem permitido avanços da medicina que eram impensáveis ainda há poucos anos. Essa evolução é inexorável e é cada vez mais rápida. A questão é que os recursos disponíveis sejam postos ao serviço de toda a comunidade. Tem de ser esse o caminho.

A obrigação do Estado deve ser a de mobilizar todos os esforços e todos os meios técnicos e científicos disponíveis para evitar o sofrimento humano em todas as circunstâncias, respeitando a vontade do paciente.

Através de boas práticas médicas, que rejeitem o recurso à obstinação terapêutica e que respeitem a autonomia da vontade individual expressa através das manifestações antecipadas de vontade que a lei já permite, o dever do Estado é garantir que a morte seja sempre assistida, mas não que seja antecipada.

Invocam os proponentes a autonomia da vontade individual, o direito de cada um a dispor da sua vida. Mas entendamo-nos: o direito à vida é um direito fundamental, inviolável e irrenunciável. A morte é uma inevitabilidade. Não é um direito. Porque se a morte fosse um direito, não seria lícito fazer depender a antecipação da morte da decisão de terceiros, como sucede em todas as iniciativas em debate. E essa é uma contradição a que nenhuma das iniciativas propostas pode fugir. O processo de antecipação da morte é desencadeado pelo próprio em circunstâncias minuciosamente descritas, como se compreende. Mas a decisão final de antecipar a morte depende do parecer favorável de diversas entidades e é tomada, afinal, por uma entidade administrativa. Onde fica a autonomia da vontade e qual a relevância do sofrimento insuportável invocado pelo próprio se a comissão decidir que não se verificam todos os pressupostos legais para a antecipação da morte?

Está-se assim perante uma contradição insanável. O regime proposto não poderia prescindir de cautelas extremas, mas tais cautelas relegam para um plano secundário, quando não condenam à irrelevância, o sofrimento extremo em que o pedido se baseou. E este problema, uma vez criado, não tem solução.

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

A eutanásia é uma questão que divide muito profundamente a sociedade portuguesa. Provavelmente, a maioria dos portugueses tem dificuldade em formular um juízo definitivo ou peremptório sobre a legalização da eutanásia, tendo em consideração a complexidade da questão e as profundas interrogações que suscita.

Os países que a legalizaram são uma ínfima minoria. A questão da legalização da eutanásia é discutida em todo o mundo, mas não é por acaso que a esmagadora maioria dos países a tem rejeitado. É que a realidade dos poucos países que praticam a eutanásia suscita preocupações que não podem, responsavelmente, ser ignoradas.

Dizem os proponentes das iniciativas que em Portugal tal não aconteceria se estas iniciativas fossem aprovadas, dado o seu carácter extremamente restritivo. Mas é indesmentível que o que se passa em países como a Holanda ou a Suiça, em que se assiste a uma banalização crescente dessa prática (no primeiro caso) ou a uma verdadeira indústria da eutanásia (no segundo caso), vai muito para além do que as respectivas legislações permitiriam supor. Isto não é um processo de intenções. É a mera observação de realidades que não queremos para o nosso país.

Num quadro em que, com frequência, o valor da vida humana surge relativizado em função de critérios de utilidade social, de interesses económicos, de responsabilidades e encargos familiares ou de gastos públicos, a legalização da eutanásia acrescentaria novos riscos que, numa sociedade determinada pelo capitalismo, não podemos iludir.

Ainda estamos a tempo de evitar decisões cujas consequências sociais e humanas tenhamos de lamentar no futuro.

Disse.

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