Intervenção de Paula Santos na Assembleia de República

Sobre os projectos de Procriação Medicamente Assistida

Sr. Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:

A aprovação da lei, em 2006, que regula a utilização das técnicas de procriação medicamente assistida constituiu um enorme avanço para o qual o PCP contribuiu decisivamente. Foi um avanço civilizacional no plano dos direitos sexuais e reprodutivos e da medicina e abriu novas perspectivas na vertente técnica e científica, com novas possibilidades no campo da investigação e da inovação. Do ponto de vista do progresso, abriu-se uma nova oportunidade para melhorar a saúde e o bem-estar das pessoas.

Fazemos um balanço muito positivo da aplicação da lei, não obstante a necessidade de aperfeiçoamentos, e podemos inclusivamente afirmar que a aprovação desta lei trouxe uma enorme evolução no plano social, cultural e do conhecimento, que muito valorizamos.

Sr. Presidente,
Srs. Deputados,

Apesar do enorme avanço que a lei permitiu, constatamos que, passada praticamente uma década, ela ainda não foi totalmente cumprida. Continuam a existir famílias que, cumprindo os requisitos exigidos, não têm acesso às técnicas de procriação medicamente assistida.

Nos últimos anos, acentuou-se a opção de desinvestimento nas funções sociais do Estado, em particular no Serviço Nacional de Saúde, prosseguidas pelo Governo PSD/CDS, o que se materializou nos cortes orçamentais e na desvalorização profissional e social dos profissionais de saúde, levando à saída antecipada de muitos.

Sentem-se muitas dificuldades no acesso às técnicas de procriação medicamente assistida no nosso País, pela reduzida capacidade de resposta dos centros públicos de procriação medicamente assistida, agravada pelo aumento da procura do serviço público devido à degradação das condições económicas.

As crescentes dificuldades económicas das famílias estão também a impedir que estas prossigam o tratamento, abandonando-o devido aos elevados encargos que terão de assumir, como, por exemplo, com o custo dos medicamentos.

A distribuição dos centros públicos de procriação medicamente assistida é assimétrica no País. Por exemplo, a Região Autónoma dos Açores e as regiões do Alentejo e do Algarve não têm um único centro público. Para além de limitar a acessibilidade às técnicas de procriação medicamente assistida em função das condições económicas das famílias, verifica-se uma maior afluência aos centros públicos da Região de Lisboa e Vale do Tejo.
Apesar de ser na Região de Lisboa e Vale do Tejo que as listas de espera para o acesso à procriação medicamente assistida têm maior expressão, há listas de espera também noutros centros.

Dados apurados no início deste ano civil deram-nos nota de que as listas de espera eram de seis, sete meses no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho, de 18 meses no Centro Hospitalar Lisboa Norte, de 10 meses no Centro Hospitalar de Lisboa Central e de 12 meses no Hospital Garcia de Orta.

Todos sabemos que, à medida que o tempo vai passando e a idade aumenta, a probabilidade de sucesso das técnicas diminui. Não poderíamos ignorar tal realidade neste debate, nem deixar de referir que foi aprovada uma resolução da Assembleia da República, resultante da iniciativa do PCP, que recomenda o reforço da capacidade dos centros públicos de procriação medicamente assistida com cobertura pelo território nacional e a alocação dos meios humanos e técnicos que permitam dar a resposta adequada face às necessidades.

Sr. Presidente, Srs. Deputados, as iniciativas legislativas que visam a alteração à lei da procriação medicamente assistida que hoje discutimos vão, no essencial, no mesmo sentido: alargar as técnicas de procriação medicamente assistida a todas as mulheres independentemente da sua orientação sexual e do estado civil. O Bloco de Esquerda propõe, ainda, a regulação da gestação de substituição no caso de impedimento de uma gravidez por ausência de útero, por lesão ou por doença deste órgão.

Para que fique claro neste debate, já afirmámos e reiterámos que recusamos a discussão desta matéria em função do que é natural;

A nossa apreciação em relação às propostas em debate está totalmente dissociada de qualquer consideração sobre a concepção e o modelo de família. Tanto assim é que, há muito, apresentámos a proposta de as mulheres que estão sozinhas e têm um diagnóstico de infertilidade poderem aceder às técnicas de procriação medicamente assistida. E tanto assim é que, ainda na semana passada, acompanhámos as iniciativas que possibilitam a adopção por casais do mesmo sexo;

Não temos uma posição absoluta e fechada sobre matérias que estão em constante evolução e relacionadas com a dinâmica da própria sociedade.
Porém, as alterações propostas pressupõem uma mudança de entendimento sobre a natureza e a finalidade das técnicas de procriação medicamente assistida, deixando de ser um método subsidiário de reprodução e passando a tornar-se um método alternativo e/ou complementar de reprodução. Para nós, esta é a questão de fundo e é a questão que nos suscita dúvidas.

As técnicas de procriação medicamente assistida desenvolveram-se ao longo de décadas para responder a problemas de infertilidade. E é verdade que a lei actual permite uma excepção que se prende com a possibilidade de se recorrer a estas técnicas para evitar a transmissão de doenças graves para os descendentes. Ou seja, é utilizada para resolver problemas de saúde.

Aquando da elaboração da lei, fundamentava-se a subsidiariedade da utilização das técnicas de procriação medicamente assistida no princípio da não instrumentalização do ser humano e dos seus órgãos reprodutivos, e esse é o critério que se tem mantido.

Quanto à gestação de substituição, apesar de reconhecermos o esforço e o avanço em alguns aspectos concretos no âmbito do grupo de trabalho criado para o efeito na anterior Legislatura, persistem também algumas dúvidas, em particular com as especificidades desta técnica.

A gestão de substituição tem implicações que não podem ser ignoradas e que exigem uma reflexão acrescida. É que nesta técnica há a intervenção de uma terceira pessoa, ou seja, há uma outra mulher que intervém profundamente no processo de gravidez, o que introduz um conjunto de potenciais conflitos e questões éticas que têm de ser consideradas.

A iniciativa do Bloco de Esquerda apresenta ainda um conjunto de propostas de aperfeiçoamento do actual quadro legal que decorrem de constrangimentos constatados com a própria lei no terreno, em particular a questão da eliminação dos embriões excedentários ao fim de um determinado prazo, o que não nos suscita nenhuma objecção.

Sr. Presidente, Srs. Deputados, reconhecemos que há múltiplas questões que continuam a colocar-se, às quais nós não somos indiferentes e que, face às dúvidas levantadas, não é possível afirmar uma posição definitiva, sendo necessário o aprofundamento da discussão.

Afirmamos, por isso, a nossa inteira disponibilidade para aprofundar este debate, para aprofundar a nossa reflexão colectiva e para aprofundar também a reflexão com as associações, com as entidades e com o meio académico e científico. Entendemos que, em sede de especialidade, haverá certamente a oportunidade para concretizar este trabalho, o qual terá o nosso empenho.

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