Intervenção de Manuel Augusto Araújo, Sessão pública Direitos, desenvolvimento e soberania – a alternativa à política de direita

Sobre a Cultura

Nos nossos dias, a desregulação económica neo-liberal constrange a produção estética a integrar-se na produção geral dos bens de consumo, com a frenética urgência da fabricação de aparentes novidades. Essas exigências económicas têm reconhecimento institucional de todo o género. Tudo é permitido porque tudo é cinicamente aceite por uma burguesia entediada pelo seu próprio tédio. Essa cultura global tem o seu principal centro difusor nos Estados Unidos, é aceite e seguida pela União Europeia, corresponde a uma dominação económica e militar sobre uma sociedade em que os ricos são cada vez menos e estão cada vez mais ricos, que é imposta com tudo o que deveria ser contrário à cultura, guerra, medo, sangue, tortura, mentira, que se plasma nos produtos culturais e é difundida pelos meios de comunicação social em todo o mundo, para se tornar banal.

Supremacia, política, económica, cultural sustentada por um cosmopolitismo que celebra uma prosperidade de alguns resultantes de formas de governação e concorrência impostas pelos seus principais braços armados económico-financeiros: FMI, Banco Mundial, BCE, OMC ao serviço dos megapolos financeiros, eufemisticamente denominados “mercados”. Na cultura, nas artes a ideia central é ocupar o conceito de arte e cultura pelo seu valor material. É o triunfo do mercador de Brecht “ não sei o que é o arroz, nunca vi o arroz, do arroz só conheço o preço”.

Em Portugal tudo se agrava porque se cumprem os ditames dessa cartilha com incompetência, ignorância, estupidez. Exemplo próximo é o episódio das obras de Miró, em que à demagogia do PSD-CDS se contrapõe a demagogia do PS. Em que o primeiro ministro, com o pelouro da cultura, mete os pés pelas mãos ao dizer que o Estado teria que comprar obras que pertencem ao Estado e o secretário de estado da cultura lavra um despacho em que autoriza a exportação das obras quando elas já estavam em Londres. Gente sem escrúpulos, com a ganância do lucro que olha para tudo como se fossem empresas. Em o que o interessa é o valor material das coisas. Para quem a ilegalidade é irrelevante. Governo de gente digna de Al Capone que, oito dias antes de ser preso, afirmava numa entrevista: ”Hoje, as pessoas já não respeitam nada. Dantes punham-se num pedestal a virtude, a honra, a verdade e a lei. A corrupção campeia nos nossos dias. Onde não se obedece a outra lei, a corrupção é a única lei. A corrupção está a minar o país. A virtude, a honra e a lei esfumaram-se das nossa vidas”.(1)

Gente doblez que reduziu em mais de 75% o orçamento da cultura desde o pirotécnico ministro Carrilho, até aos irrelevantes 0,1% o OE atuais. Rumo que vinha de longe e se agravou desmedidamente com o governo PSD-CDS. Destroem-se os alicerces da cultura, desmantelando as suas já frágeis estruturas, retirando-lhes meios humanos, materiais e técnicos, pervertendo os fundamentos de um serviço público. O princípio é que a empresa privada é sempre melhor que uma empresa pública. Nessa óptica o sistema público da cultura, arte, museus, monumentos, será melhor administrado se o for por empresários conhecedores do valor de mercado da actividade e dos objectos culturais.

Por cá já temos um empresário de eventos musicais a fazer parcerias com Institutos públicos. A privatização dos palácios de Queluz e Sintra para a Parques Sintra-Monte da Lua, SA é um modelo que está em marcha para ser aplicado em Belém quando o novo Museu dos Coches entrar em funcionamento. Com esses golpes o Estado prescinde de receitas para as drenar para os privados. No caso do Monte da Lua quase dois milhões de euros/ano. Nos museus o referido empresário dita os preços de bilheteira a um Estado que, à pala da austeridade, acaba com as entradas gratuitas nos museus mas mantém-os em Serralves, uma Fundação público-privada onde um visitante custa aos contribuintes quase mais quatro vezes que um visitante do Museu de Arte Antiga, ou que autoriza que as entradas sejam sempre gratuitas para ver a colecção Berardo, que não paga nada para estar instalada no CCB. Estado que usa as privatizações para favorecer a apropriação privada dos bens públicos, em linha com a feroz ideologia dos mercados. Agora esses decisores proclamam que “se deve privatizar edíficios, terrenos, monumentos, recursos naturais que são um enorme valor à espera de ser desbloqueado”. O que resta da cultura e das artes será triturado nessa engrenagem.

A defesa da cultura é uma luta política e patriótica. Uma luta por uma cultura que preserva e aprofunda a identidade nacional, que defende o que existe e o que fica impedido de existir com as políticas de austeridade. Que defende os criadores culturais e artísticos e a fruição cultural regular com a consequência óbvia de ampliar públicos, originar uma maior capacidade crítica, tanto quantitativa como qualitativa, aumentar os padrões de exigência - tanto de produtores como de consumidores. De contrariar os efeitos nefastos da generalizada oferta de entretenimento que não exige reflexão, nem sintoniza sentimentos, que se afunda num degradado gosto homogeneizado e acéfalo que atira para a fornalha da iliteracia global um número crescente de pessoas que, por via da exclusão cultural, ficam cada vez mais incapacitadas e afastadas da possibilidade de possuírem ferramentas para exercerem os seus direitos de cidadania.

É urgente, tanto em Portugal como na União Europeia, por fim a essa política de desastre. É urgente lutar por uma política cultural para transformar a vida, apoiada num verdadeiro serviço público, da política cultural à comunicação social, inscrita na luta pela emancipação do homem e do trabalho.

(1) Entrevista a Al capone feita pelo jornalista Cornelius Vanderbilt Junior, publicada na revista Liberty, 17 Outubro de 1931
(2) Editorial do Economist, com o título “The $9 Trilion Sale”, 17 de Janeiro 2014

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