1. Portugal confronta-se com
um Governo e uma maioria parlamentar que se afirma explicitamente como um travão
a qualquer avanço legislativo em matéria de despenalização
do aborto, ao mesmo tempo que aposta na tentativa de impôr, na esfera
do Estado, valores ideológicos e princípios de actuação
que contrariam direitos civilizacionais consagrados na Constituição
e nas leis em matéria de direitos sexuais e reprodutivos.
A acção política, ideológica e
psicológica do Governo e da sua maioria parlamentar aposta numa frontal
ruptura com o carácter democrático e progressista presente na
legislação portuguesa em matéria da maternidade-paternidade
– como um direito, uma escolha e uma função social do Estado
–, o papel da educação sexual em meio escolar, bem como
relativamente aos valores e princípios que devem nortear o conjunto dos
direitos sexuais e reprodutivos dos cidadãos, designadamente das mulheres.
2. São disso expressão
as diversas leis que têm vindo a ser aprovadas na área do trabalho,
da família e da segurança social . As opções presentes
nas Grandes Opções do Plano e do Orçamento de Estado para
2004, são claras quanto à aposta em manter linhas de acção
assentes na proibição do aborto seguro, nas restrições
ao planeamento familiar e à contracepção, a desvalorização
da educação sexual em meio escolar, a par da ausência das
medidas adequadas à prevenção de gravidezes precoces. Regista-se
a ausência de referência a programas ou projectos no âmbito
da saúde sexual e reprodutiva.
3. O PCP considera que, para
o êxito da luta pela despenalização do aborto, se impõe
um vigoroso combate às concepções e posições
da maioria PSD-CDS/PP que aposta na criminalização das mulheres,
na estigmatização das que têm de recorrer à interrupção
voluntária da gravidez e no escandaloso favorecimento, com meios e recursos
do Estado, de organizações criadas para mover combate à
despenalização do aborto e para manter uma tranquila convivência
com o dramático problema do aborto clandestino.
4. Apesar do enorme obstáculo
que representa a existência de uma maioria de direita na Assembleia da
República, o PCP continua a sustentar com firmeza a exigência de
se enfrentar, finalmente, com coragem o problema do aborto clandestino e de
terminar com uma criminalização que ofende os mais elementares
valores humanos e civilizacionais e representa uma intolerável agressão
e ameaça às mulheres portuguesas, como o julgamento da Maia e
outros casos com investigação em curso bem evidenciam.
Recorde-se a este propósito que, logo no início
da nova legislatura, cumprindo um relevante compromisso eleitoral, o PCP entregou
na Assembleia da República um projecto de lei de despenalização
do aborto (nºI/IX), no que foi seguido pela apresentação
pelo Bloco de Esquerda de um projecto de lei sobre a mesma matéria..
Isso significa claramente que o empenho do PCP é o de
que a AR debata e aprove uma lei nesse sentido, já que se desejasse um
outro referendo sobre o tema teria então antes apresentado um projecto
de resolução com vista à sua convocação.
Ao mesmo tempo, não se pode deixar de sublinhar que
as dificuldades resultantes da existência de uma maioria parlamentar do
PSD e do CDS-PP se projectam não apenas na aprovação de
uma lei de despenalização do aborto, mas também na aprovação
parlamentar de uma proposta de novo referendo sobre a matéria, uma vez
que o PSD e o CDS-PP até incluíram no seu acordo de coligação
um referência explícita de oposição à convocação
de um novo referendo.
5. O PCP respeita as opiniões
de diferentes de sectores e personalidades que, ao anunciarem o seu empenho
prioritário numa campanha a favor da convocação de um novo
referendo, parece terem aceite a tese do PS da indispensabilidade política
do recurso a um novo referendo ou então são guiadas pelo juízo
de que a maioria PSD/CDS-PP terá maiores dificuldades em se opor a um
referendo do que à aprovação de uma lei de despenalização.
Este juízo ignora ou minimiza porém o que o PSD/CDS-PP já
expressaram sobre esta matéria.
Não contestando a legitimidade do recurso a fórmulas
que abram um espaço para a participação dos(as) cidadãos(ãs)
e para a afirmação pública de uma corrente de opinião,
o PCP esclarece entretanto que, ao contrário do que muitas notícias
erróneas têm difundido e que o próprio texto da petição
em curso não esclarece, uma petição subscrita por
75 mil cidadãos não conduz por si só à convocação
de um novo referendo mas sim ao debate e votação de uma proposta
nesse sentido na Assembleia da República (e que, mesmo que aprovada,
carece sempre da posterior concordância do Presidente da República),
o que qualquer partido representado na Assembleia da República pode também
provocar em qualquer momento.
6. Como o provou no passado,
preferindo que o primeiro passo seja a tentativa de aprovação
na AR de uma lei de despenalização do aborto, o PCP não
exclui travar nenhuma outra batalha, mesmo que não corresponda às
suas opções e preferências.
Mas o PCP espera que outras forças e personalidades
compreendam que, por razões de coerência, o PCP não pode
passar a empunhar a bandeira do referendo sobre IVG que foi a do PSD e do PS
há cinco anos, e que o PCP e tantos outros sectores e personalidades
vivamente combateram. Não pode alinhar-se pela teoria absurda –
e sem nenhum fundamento constitucional – de que, uma vez feito um referendo
(que, naquele caso, nem sequer teve efeito vinculativo), só
por novo referendo se poder decidir sobre a matéria, nem contribuir para
a negação, explícita ou implícita, da inequívoca
legitimidade que a AR mantém para legislar sobre a interrupção
voluntária da gravidez.
Entretanto, o PCP chama ainda à atenção
que a colocação de um novo referendo como prioridade de acção
política e reivindicativa não deixará de ser usada para
reforçar as teses que negam à Assembleia da República a
capacidade, legitimidade e responsabilidade de poder vir a aprovar um projecto-lei
de despenalização do aborto.
7. Não havendo, de imediato,
nenhum caminho fácil à vista, o PCP considera que as propostas
e iniciativas para se colocar a prioridade na reclamação de um
novo referendo não farão o consenso entre todos os que apoiam
a causa da despenalização do aborto.
O PCP continua a ser activamente favorável a que, a
par de um urgente combate aos recuos em curso em matéria de educação
sexual, planeamento familiar e do conjunto dos direitos sexuais e reprodutivos,
a primeira prioridade no plano institucional nesta matéria continue a
ser a tentativa de aprovação pela AR de uma lei de despenalização
do aborto, sendo indispensável que se desenvolva um vasto movimento de
opinião que, entre outras finalidades, pressione a Assembleia da República
nesse sentido.
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