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Mistérios do Não - Artigo de Vitor Dias no «Semanário» |
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Sábado, 30 Maio 1998 |
A cada dia que passa, mais se adensam os intrigantes mistérios
suscitados por palavras ditas por personalidades que fazem campanha
pelo Não no referendo à despenalização do aborto.
Assim, começamos por reter as palavras do líder da JSD e de Durão
Barroso (no "Falatório" de quarta-feira passada) esgrimindo contra a
intervenção dos partidos neste referendo. É que delas nasce
inevitavelmente o indecifrável mistério resultante de certos partidos
poderem ter aprovado um Código Penal onde está a criminalização do
aborto, e poderem apresentar, e votar a favor ou contra, projectos para
a sua despenalização, mas já deviam calar-se e apagar-se precisamente
quando se decide pelo voto popular da vitória ou derrota do que
defenderam antes.
Mas pode acontecer que este mistério resulte apenas de estas brilhantes
cabecinhas (uma das quais dada às questões de Ciência Política) se
recusarem teimosamente a perceber que os partidos são precisamente
grupos de cidadãos estavelmente organizados, que nada justifica sejam
subalternizados em relação a outros grupos de cidadãos.
Um segundo mistério que podemos identificar é o que resulta de
declarações do célebre - íamos a escrever famigerado - cónego Melo
(«Público» de 27/5). Pretendendo demonstrar que a pergunta do referendo
" é tremendamente manhosa e que engana as pessoas", Eduardo Melo pôs-se
então a contar que "fizemos a experiência. Perguntámos, por voto
secreto, a 36 jovens se eram ou não a favor do aborto e 31 disseram que
não. Depois fizemos a pergunta do referendo e 31 jovens já votaram
favoravelmente.". E, ligeiro, logo o cónego Melo concluía que não podia
"haver melhor prova de que a pergunta não serve".
O mistério destas afirmações decorre de que qualquer pessoa de bom
senso só pode tirar a conclusão contrária, a saber,. que não pode haver
melhor prova de que a pergunta serve muito bem, precisamente porque o
referendo se destina não a extrair um juízo dos cidadãos sobre o aborto
em si mesmo mas sobre a sua despenalização e sobre a permissão legal da
sua realização, dentro de certos limites, em condições de assistência e
segurança médica.
È que, para discutir o aborto em si mesmo e para fustigar todos os
"holocaustos" e "matanças" que agora invocam, os cónegos Melos deste
país (sejam eles da instituição ou da sociedade civil) tiveram milhares
de ocasiões em décadas e décadas de dramática existência do aborto
clandestino e desperdiçaram-nas com o seu tranquilo sono em lençóis de
insensibilidade e hipocrisia.
E, finalmente, um terceiro mistério é a extraordinária inovação criada
pelos promotores da campanha do Não quando, não querendo pagar o preço
de hostilizar frontalmente as mulheres que já abortaram, inventam a
figura do "crime" sem "criminosas", embora não se dispensem de recorrer
a imagens que são uma inaudita violência e uma bárbara culpabilização
retroactiva de milhares de portuguesas.
Que, por elas, farão é muito bem em concluir que, se não há "criminosas", então o mais certo é não haver "crime".
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