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Voltando à vaca fria - Artigo de Vitor Dias no «Semanário» |
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Sexta, 12 Junho 1998 |
A avaliar por um dos seus cartazes, a "Plataforma Solidariedade
e Vida", que integra as principais figuras do PSD e do CDS-PP, parece
ter escolhido como arma essencial da sua campanha pelo não a informação
de que já está despenalizado o aborto em caso de violação, de mal
formação do feto ou perigo de vida para a mulher.
Mas, informação por informação, e porque a memória é curta, talvez
convenha lembrar que este argumento (que aliás passa ao lado da
principal questão a que urge responder) repousa num facto legal que não
deve nada aos que hoje o usam com tanta descontracção e tão assinalável
empenho.
É que tais excepções à punibilidade do aborto foram consagradas, não
pela chamada lei Strecht Monteiro de 1997, mas pela lei 6/84 que, como
está escrito na página 3292 do nº 109 do "Diário da A.R." de 15.5.84,
contou com o voto contra do PSD e do CDS.
Assim tendo sido, os que gostosamente se atolaram em atrasos de 14 anos
ainda deviam era agradecer aos votos do PS e do PCP em 1984 o fraco
argumento que estão usando agora em 1998.
Esta referência abrange por exemplo António Pinto Leite que, na última
"revista" do "Expresso", ocupando-se a dar forma literária e com
celofane espiritual aos folhetos ilustrados que por aí circulam, também
veio manifestar o seu acordo com "a lei que existe, com os seus casos
excepcionais". Assim desrespeitando as posições da Igreja Católica,
como também acontece com os defensores do não que agora são todos muito
pelos métodos contraceptivos.
Ora, como disse Nuno Rogeiro, os defensores do não, ao aceitarem a
actual lei com as suas excepções, abriram "uma brecha fundamental na
sua argumentação", porque passaram a dar testemunho que "o direito à
vida do feto não é supremo". O que, acrescentamos nós, descredibiliza
boa parte das duras e pungentes caracterizações que vão fazendo do
aborto.
Mas, para além disto, perdoe-se que voltemos à vaca fria da maior
mistificação que o campo do não continuamente veicula.
Entendamo-nos : nós, em principio, não duvidamos da sinceridade de
pessoas como António Pinto Leite e podemos até imaginar quantos
aborrecimentos já não terão tido por causa do apostolado quotidiano e
persistente que certamente desenvolverão na esfera das suas relações
pessoais para desencorajar idas a clínicas em Londres ou em Espanha.
Mas lendo o que escreveu no passado sábado no "Expresso" e vendo-o
propor que a televisão do Estado passe "o filme que existe sobre um
aborto em concreto", há uma pergunta que se impõe: porque é que não
escreveu este artigo e fez esta proposta em 1985, em 1988, em 1991, em
1994, tudo anos - ao todo 12 - em que não se discutiu nenhuma lei de
despenalização mas não faltaram entretanto milhares de abortos
clandestinos que, na sua concepção de que discordamos, só podem ter
representado milhares de actos para "eliminar um ser humano, o bebé" ?.
Talvez porque, bem vistas as coisas, esta "guerra" não seja afinal nem
pela vida nem contra o aborto, mas apenas contra a despenalização.
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