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"Voltar ao Gil"
António Abreu na "Capital"
Segunda, 12 Maio 2003

Ontem lá estivemos, como todos os anos, ao segundo domingo do mês de Maio, no “liceu” que foi de todos nós e que hoje é a Escola Secundária de Gil Vicente, ali na Rua da Verónica, à Graça. Alguns praticaram desporto pela manhã, depois almoçaram centenas um churrasco servido pela empresa de um vicentino.

As centenas são de várias gerações. E ainda há dias, em sessão pública da Câmara, no período da intervenção do público, um munícipe septuagenário terminou a exposição de um seu problema, apontando para mim, dizendo “e você não se esqueça de no dia11 ir ao nosso almoço vicentino”... Até já o fizemos à chuva, palco das nossas brincadeiras, onde festejámos a primeira vitória do Benfica no Europeu de Futebol, enquanto engolíamos as bolas de Berlim que se serviam na cantina (petisco que continua sempre presente nestes almoços).

Nestes convívios revisitamos o passado, com saudade mas sem saudosismo, reencontrando amigos e conhecidos e todos os anos encontrando mais um que apareceu pela primeira vez. E pômo-nos a pensar (é bem verdade!) que uma parte do que hoje somos foi ali construído, que cada patamar do passado é insubstituível no que somos hoje, que cada contacto renovado e experiência de vida partilhada nos dá uma idéia mais precisa do que é a condição humana do viver.

Quando o liceu foi criado em 1914 no Convento de S. Vicente, foi o primeiro da República e era misto. Depois, em 1926, talvez por obra e graça do Estado que passou a «Novo», ficou só masculino e assim continuou a ser quando transitou para as novas e actuais instalações em 1949. Quando por lá andei, convívio com raparigas só no Rainha D. Leonor, a umas boas centenas de metros...Com a benção do Padre Alcobia, nosso professor de Religião e Moral e hoje pároco de S. Agostinho e S. Felix de Marvila.

Foi um tempo de crescimento e descoberta da vida política, sem ser pela via familiar. Que por essa já a conhecia, das seis prisões pela PIDE do meu pai, do ouvir baixinho as Rádios Portugal Livre, Voz da Liberdade e a Rádio Moscovo, do queimar de papéis, das visitas às cadeias de Caxias e do Aljube, com a PIDE a interromper a visita quando o meu pai mostrou os pés ensanguentados pela tortura de sono, da firmeza da minha mãe a enfrentar os pides quando nos entravam em casa, para o levarem mais uma vez, de ir buscar apoio financeiro à casa de um padre que morreu pobre, com 86 anos, César Teixeira da Fonte, que morava ali em S. Sebastião, e que mais tarde soube que também tinha sido preso na Madeira, em 1936, quando se pôs à frente de uma manifestação de camponeses, para os conter e acabou por ser preso como agitador e passar por muito sofrimento, ou quando tive uma crise de maoismo e o meu pai se chateou comigo.

Pois foi no Gil Vicente que tivemos grandes professores, bizarros por vezes, alguns inflexíveis, mas com quem aprendemos muito. Alguns ajudaram-nos a organizar jogos florais, alternativos às iniciativas da então já decrépita Mocidade Portuguesa. Um chegou a ser preso e vim a encontrá-lo funcionário do Partido na sede da António Serpa. A outro encontrei-o no Partido, anos mais tarde, depois do 25 de Abril. Era um professor que sem parar de escrever no quadro e, mesmo de costas, dizia a meia voz, com frequência, “Abreu, para a rua!”. Era um tempo em que a irreverência e a descoberta do novo se manifestava desta forma, mas também nas deslocações para fora do nosso grupo coral com o Professor Ascenso de Siqueira (“Oh, mia patria, si bela e perduta, oh, membranza si cara e fatal”...), nas récitas como o “Alfa Romeo e Lambretta”, “Cleópatra” e “Minha fera lady”, que saíam do talento do Prof. Raimundo Serrão, ou nas diatribes no laboratório de Física, com o nosso querido amigo Sr. Pinto que, apesar de reformado, continua a aparecer, como acontece com o Sr. Vicente, então chefe dos contínuos.

Em 1962, faltei a uma aula para distribuir em vários cantos propaganda do 1º de Maio. O Reitor apanhou-me numa casa de banho, deitou-me um olhar de censura, depois olhou para o lado e saiu. Já me tinha convidado para entrar para a Mocidade Portuguesa e eu recusara. Um ano mais tarde a PIDE quis prender um colega dentro do liceu. O Reitor não lhes permitiu a entrada na escola e o Vital foi preso na rua, com os estudantes concentrados no átrio da entrada. Abriu, mais tarde, em Paris, a livraria “La différence”. No movimento pró-associativo, por pouco não dei em jornalista. Estavam lá o Cáceres Monteiro, o Oscar Mascarenhas, o Almeida Martins, o Fernando Valdez... Fiz o gosto ao dedo durante uns anos no Técnico com o “binómio”.

E quantos destas centenas, que ali se reencontraram no domingo, têm destas e doutras estórias para contar! Outros, como o Luis Pessoa, que reencontrei no Técnico, tiveram papel destacado na intervenção da madrugada do 25 de Abril de 74. O Luis, comandando um batalhão vindo de Santa Margarida. O Fabião, que todos conhecemos, e tantos outros que lá continuam a aparecer.

Entretanto, a vida continua, o trabalho e a luta também.

E nestes encontros deparamos sempre com novas surpresas.

A escola, que continua com um conselho directivo dinâmico, presidido pela Eugénia Varela Gomes, mantém uma dinâmica cultural importante. Há dias estiveram lá durante umas horas, juntos, à conversa o Mia Couto e o Malangatana. Para o próximo dia 6 de Junho, convidaram os antigos alunos a partilharem, nas salas, as aulas dos dias de hoje, com os actuais alunos, e depois falar com eles sobre as experiências deles e as nossas.

Ora bem, até para o ano! E venha mais uma bola de Berlim... Gil Vicente, como o 25 de Abril, sempre!

 

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