Intervenção de Jerónimo de Sousa, Candidato à Presidência da República
Na iniciativa “20 anos depois da adesão à CEE”
Hotel Sofitel, Lisboa, 2 de Janeiro de 2006

 


Não é este certamente o momento, pelo contexto desta iniciativa, para fazer a análise do processo que conduziu Portugal à Adesão à então CEE e realizar um rigoroso balanço destes 20 anos de integração comunitária.

Não posso, contudo, deixar de começar por lembrar a substancial diferença de pontos de partida, na avaliação das condições e consequências da adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia e as posições e orientações distintas que em todo este processo foram assumidas pela força política de que emana a minha candidatura.

Património que consubstancia uma visão do processo de integração que inteiramente assumo.

È justo, por isso, evocar neste momento a seriedade de um Partido, o PCP, que a partir de um trabalho de estudo aprofundado e no diálogo com os Portugueses culminou numa Conferência Nacional que claramente identificou as graves consequências, económicas, sociais e políticas que adviriam da Adesão e que determinaram a sua posição negativa em relação ao mercado comum.

Posição que resultou não de uma qualquer tentativa de moldar a realidade a esquemas ou pontos de vista prefabricados, mas de uma consciente avaliação dos interesses do povo português, da Revolução de Abril e o futuro de Portugal como nação livre e independente.

Trabalho de investigação cujas conclusões indiciavam, no contexto da então situação internacional, da crise económica dos nove países que então constituíam a CEE e do nosso próprio nível de desenvolvimento, um impacto muito negativo nas estruturas económicas e institucionais do País.

Impacto que 20 anos de Adesão em grande parte confirmou, apesar de profundamente alterados os dados de partida e o quadro internacional em que se processou a integração.

Posição bem diferente das outras forças políticas, do PS e PSD ao CDS-PP, que sem qualquer avaliação séria e rigorosa, e apenas na base dos seus interesses políticos mais imediatos, das suas estritas opções de classe, do seu ódio vesgo a importantes conquistas sociais e económicas de Abril, embrulharam numa monstruosa campanha de propaganda o seu projecto de atrelar o País aos interesses das principais potências capitalistas da Europa.

Como aliás vieram posteriormente a confirmar com toda a desfaçatez.

Vale a pena também, neste momento, assinalar a continuidade e coerência do processo de integração através dos sucessivos saltos qualitativos que se foram verificando, com a manutenção da sua natureza profunda de integração capitalista, intervindo nas dimensões económica, política, institucional, jurídica e militar ao serviço dos grupos capitalistas transnacionais, em particular os de base europeia, e das grandes potências da Europa.

De facto há uma continuidade absoluta desde o Tratado de Roma (que fixava já o objectivo de generalizar a concorrência e o fim dos ditos monopólios públicos), passando pelo Acto Único (e as três liberdades fundamentais de circulação, de pessoas, mercadorias e capitais), até Maastricht e à Moeda Única (com a construção de um vasto mercado liberto de todos os constrangimentos, posto sob a dominação dos capitais financeiros).

Caminho que continuou e culminou em Nice e na elaboração de uma dita Constituição para a Europa, procurando assegurar no quadro do alargamento um mecanismo institucional (federal) que garanta o comando político das grandes potências e “constitucionalize” o neoliberalismo como modelo económico e a União Europeia como bloco político-militar.

Não sendo aqui e agora também o momento para desvendar a engenharia política e a manipulação propagandística que sempre cobriu o desenvolvimento da integração, com a multiplicação dos pequenos passos e a criação de factos consumados, devem destacar-se dois procedimentos sistemáticos:

- a marginalização da opinião e participação dos povos no processo de decisão, acabando sempre por os confrontar com factos consumados transformados em “desígnios nacionais”, isto é, fazendo da solução coincidente com os interesses do grande capital e das grandes potências, a única possível, inelutável e inevitável!

- a apresentação de cada nova etapa como a saída necessária e obrigatória para dificuldades da economia comunitária ou do processo de integração, nova etapa sempre anunciada como fase de futuros progressos sociais, e em particular de resposta aos problemas do desemprego!

Poderíamos no plano interno recordar as sucessivas miragens que as forças político-partidárias portuguesas condutoras do processo de integração foram atirando ao povo português nessas sucessivas etapas.

Etapas que delineavam um percurso na concretização do qual se iam resolvendo todos os nossos problemas de desemprego e baixos salários.

Onde seria ultrapassada a deficiente estrutura produtiva com uma especialização em produtos de baixo valor acrescentado e dependente. E, sobretudo as vantagens que passaríamos a ter com o alargamento dos mercados externos, com mais 300 milhões de consumidores à nossa espera. A miragem de uma imparável convergência de Portugal com a União Europeia!

A realidade hoje confronta o País e os portugueses com o esfumar dessas idílicas miragens e o fim do oásis que alguns tinham inventado para cobrir no plano interno a ofensiva neoliberal contra direitos e conquistas dos trabalhadores e do povo.

Portugal enfrenta uma perigosa conjuntura de recessão e estagnação económicas, com um nível brutal de desemprego – um dos maiores, senão o maior desde o 25 de Abril – um défice externo elevadíssimo, em que pesa fundamentalmente o défice da sua Balança Comercial – na relação com o PIB, o maior dos países da União Europeia a 15 – um insustentável endividamento das suas famílias e empresas.

O País viu agravarem-se o conjunto dos défices estruturais da qualificação da sua mão-de-obra, tecnológico, energético e da estrutura produtiva.

O PIB/cidadão português face à média comunitária, avaliada em paridade de poder de compra (UE a 15) está hoje ao nível de 1991, ou seja um recuo de 15 anos.

O que põe a nu a insustentabilidade da convergência que tantas vezes se anunciou estar em curso e que levanta pelo menos duas pertinentes questões:

- Vinte anos de fundos comunitários não chegaram para compensar os custos de 20 anos de integração até porque, muitos serviram fundamentalmente para destruir o tecido produtivo e favorecer a concentração capitalista.

- A incompatibilidade de muitas das políticas comunitárias com as necessidades de desenvolvimento harmonioso do País, de atenuação de desigualdades sociais e assimetrias regionais, mesmo se essa constatação não pode fazer esquecer a responsabilidade própria das políticas de direita daqueles governos.

Ao longo de 20 anos, PS, PSD e CDS-PP de facto, não só convergiram nas orientações, mesmo que com variantes de posições tácticas decorrentes de se ser governo ou oposição, como participaram activamente na definição das políticas da denominada “construção europeia”.

E alguns dos principais candidatos à Presidência da República que hoje questionam as consequências dessas orientações, lideraram e/ou foram apoiantes indefectíveis dessas políticas!

Uma convergência responsável, entre outros aspectos, pela alienação de componentes essenciais de soberania, pela falta de consulta do povo português sobre questões fundamentais, pela submissão perante as instituições da União Europeia e as grandes potências, pela aceitação de imposições e medidas negativas para o País, pela sistemática não utilização da margem de manobra de que apesar de tudo o País sempre dispôs.

No contexto das Eleições para a Presidência da República em que nos encontramos e dos 20 anos da Adesão de Portugal à CEE que esta iniciativa quis assinalar neste início de 2006, não será exercício despiciendo uma ainda que breve, anotação sobre como sucessivos Presidentes da República acompanharam o processo de integração comunitária e nomeadamente da sua conformidade com a Constituição da República, que o exercício de tal cargo determina velar.

E o mínimo que se pode dizer é que em geral erraram por uma ostensiva omissão relativamente a violações de iniciais e imperativos preceitos constitucionais, como os princípios que são fundacionais da Lei da República, a Soberania una e indivisível da República Portuguesa e a Independência Nacional.

Mas, mais geralmente foram mais longe por omissão e por acção.

Não impuseram como era sua obrigação e dever constitucional a consulta do povo português em momentos cruciais da participação do País na “construção europeia”, como no processo de Adesão, na ratificação de Maastricht ou na entrada em vigor da Moeda Única, à semelhança do que fizeram outros países.

Como sempre transformaram em “desígnio nacional” as soluções impostas por Bruxelas e perfilhadas pelo PS, PSD e CDS-PP para as diversas fases da integração comunitária como se não fossem opções político-partidárias de possíveis e diferentes alternativas.

Alguns foram mais longe como aconteceu e acontece relativamente à defesa da chamada Constituição Europeia pelo actual Presidente da República.

O processo desta “Constituição Europeia” é pelos objectivos que lhe foram atribuídos, pelo seu conteúdo, pela forma da sua elaboração, onde avulta a “transfiguração” por habilidades semânticas de um Tratado Internacional possível, em “Tratado Constitucional” e depois em “Constituição”, a imagem de marca de uma União Europeia “construída” não só à margem dos povos, mas contra eles, contra os seus fins insistentemente proclamados de coesão económica e social, de convergência no desenvolvimento, de promotora de paz na Europa e no Mundo!

Esta tentativa de impor a denominação Constituição, com tudo o que este termo transporta de conceptualmente inerente, no plano jurídico e político à organização de um Estado, está irrecusavelmente associada ao projecto de construção de um Estado supranacional.

O “super estado” União Europeia, cuja Constituição prevaleceria sobre as constituições dos Estado nacionais.

Ora com isto não pode um Presidente da República Portuguesa transigir, e eu não transigiria!

Este projecto de “constitucionalização” que representa o corolário lógico de uma evolução da integração comunitária assente em três eixos estruturantes e indissociáveis – o neoliberalismo, o federalismo e o militarismo – apresenta elevados riscos sociais e políticos para os trabalhadores e povos da Europa.

Riscos de perda de direitos sociais e civilizacionais, riscos de agudização e fracturas e desigualdades sociais, riscos de multiplicação de assimetrias entre países e regiões, de problemas ambientais.

Riscos, para países com a dimensão do nosso e problemas de desenvolvimento, de reforço das dependências e das perificidades, pondo em causa o nosso futuro colectivo.

Ora um Presidente da República Portuguesa deve acautelar tais riscos e perigos e agir com determinação em conformidade, e eu agiria para os evitar!

O ano de 2005 que acabamos de deixar fica inexoravelmente marcado no plano da União Europeia pela derrota da dita Constituição pelo NÃO dos povos francês e holandês em referendos. Estes povos num notável exercício de cidadania disseram NÃO àqueles riscos.

Disseram NÃO às políticas neoliberais, federalistas e militaristas que mergulharam a Europa na crise económica e no desemprego, agravando muitos dos problemas económicos, sociais, ambientais e culturais em muitos dos Estados membros, abrindo as portas a explosões racistas e xenófobas.

O NÃO francês e holandês foi também um aviso à impunidade dos que conduziram e pretendem continuar a conduzir o “projecto europeu” à margem da opinião e vontade democrática dos povos da Europa e também uma clara sinalização das possíveis saídas.

Os adeptos da “Constituição Europeia”, os que de boa fé estão preocupados pelos problemas que enfrentam os trabalhadores e povos da Europa, os que de boa fé pensam no possível papel da Europa no reequilíbrio das relações de força no plano mundial crescentemente sobre determinadas pelas políticas agressivas e imperialistas dos EUA, poderiam e deveriam interrogar-se sobre as razões pelas quais não assume a UE algumas decisões e medidas, inteiramente ao seu alcance e sem necessidade de uma qualquer alteração dos Tratados hoje em vigor.

Como deveriam interrogar-se se este projecto é a resposta adequada e bastante para a realização de uma ordem internacional mais justa.

E poderíamos aqui enunciar um conjunto significativo de propostas e projectos nesse sentido, muitos dos quais fomos avançando no PE e noutras instâncias e fora internacionais, em convergência com outras forças de esquerda e progressistas da Europa.

Permitam-me que a título de exemplo refira três situações concretas.

O fim dos offshores em que a União Europeia podia ter um papel pioneiro não só na sua eliminação no espaço comunitário como nas iniciativas adequadas nas organizações internacionais em que tem voz activa, pondo termo a um reconhecido cancro financeiro, buraco negro de actividades criminosas internacionais (lavagem de dinheiro, tráfico de droga, e couto de actividades terroristas), e eliminando uma inaceitável concorrência fiscal que custa milhões e milhões de euros em fugas e fraudes fiscais, e também de lícito planeamento fiscal, atingindo particularmente os países economicamente mais frágeis como Portugal.

A tomada de medidas que pusessem fim ao escândalo das deslocalizações, em que o capital transnacional se especializou, transformadas numa arma de chantagem sobre os trabalhadores e os Estados, pelo leilão dos direitos e estatutos laborais e ajudas públicas, através da competição entre as condições oferecidas por países com níveis de desenvolvimento diferente.

O recente exemplo da Autoeuropa está aí para o atestar.

O estabelecimento de um orçamento comunitário que tivesse em conta os objectivos inscritos nos Tratados constitutivos da União Europeia de coesão económica e social.

Perspectivas que atendessem ao alargamento concretizado a 10 novos países, tivessem em conta os diferenciais de desenvolvimento dos países ditos da Coesão como Portugal e que se encontra sujeito ao espartilho do Pacto de Estabilidade, e ainda das responsabilidades e proclamados deveres da UE de ajuda internacional aos países pobres do mundo!

Ora basta ver as decisões da recente cimeira europeia sob a Presidência Britânica, como aqui abundantemente se referiu, para confirmar tudo isto.

Só esta Cimeira deveria bastar para esclarecer a boa fé dos que acreditam na bondade politica (e também económica e do papel internacional da UE) da dita Constituição Europeia e boas intenções dos seus promotores!!!

As saídas para a situação que foi criada pelo NÃO francês e holandês, não passam pelo prosseguimento do processo e pela reafirmação da natureza das suas políticas, como se a sua legitimidade não tivesse sido posta em causa, ou pela reconciliação, como pretendem outros, do Não e do Sim através da alteração do conteúdo da Constituição ou através de um outro processo constituinte.

A saída exige outros caminhos para a Europa, outro rumo para a União Europeia.

Exige a ruptura com qualquer processo constitucional, que tem intrinsecamente associado uma visão federalista da União Europeia, ao arrepio de uma união livre de Estados e povos soberanos e iguais em direitos que a presente realidade histórica exige como uma necessidade.

Visão federalista que no quadro assimétrico de estados desiguais em dimensão, desenvolvimento e poder, só poderia significar, e qualquer que fosse o modelo federal adoptado (com mais ou menos poder da Comissão, com mais ou menos câmaras parlamentares), o reforço e a institucionalização do domínio das grandes potências no comando da UE.

Exige a ruptura com o neoliberalismo e as suas receitas de liberalização e privatização, as suas teses do Estado mínimo e da máxima presença do capital financeiro, entregando a regulação e os mercados aos grandes grupos monopolistas do capital transnacional.

O neoliberalismo é incompatível com qualquer resposta social, e não seria a presença na dita Constituição da Carta Social Europeia, que a tornaria melhor.

Sabemos por sabedoria de experiência feita, que os melhores princípios e objectivos sociais inscritos em textos constitucionais são letra morta quando as normas que conformam a estrutura e as dinâmicas económicas fazem da força de trabalho simples factor de produção com estatuto idêntico ao capital.

Como não é possível estripar as receitas neoliberais e o militarismo da dita Constituição, deixando ficar o federalismo.

Esses três eixos vivem uma inseparável relação orgânica em que cada um se alimenta dos outros, numa dinâmica de reforço mútuo.

A saída exigirá o reforço e o aprofundamento das importantes mobilizações que se verificaram em diversos países da UE nos últimos anos em defesa das conquistas sociais dos trabalhadores e da paz, contra a ofensiva do grande capital e do imperialismo.

Como dissemos noutra ocasião “O caminho para uma outra Europa não residirá na decisão daqueles que desde sempre dirigem a integração neoliberal, federalista e militarista.

Outra Europa é possível pelas lutas dos trabalhadores e dos povos e pela convergência das forças do progresso e da paz”.

Pela nossa parte, a luta encetada há vinte anos por uma Europa livre união de Estados soberanos e iguais em direitos, empenhados na convergência económica e no progresso social, na promoção da paz e de uma cooperação exemplar com todos os povos do mundo, não terminou!