Intervenção de Jerónimo de Sousa, Candidato à Presidência da República
Sobre questões da Saúde na escola de Enfermagem Calouste Gulbenkian, no Hospital de Santa Maria
21 de Dezembro de 2005

 


Amigos e Camaradas:

O descontentamento acumulado na sociedade em relação à prestação de cuidados de saúde que são prestados, o estado de desmoralização que caracteriza a atitude de muitos profissionais face às crescentes dificuldades que encontram no exercício da sua actividade e o enorme volume de verbas que movimenta colocam as questões da Saúde na primeira linha de atenção do País e do debate político.

No centro deste debate, estão as políticas de direita e o Serviço Nacional de Saúde.

Os portugueses estão hoje confrontados com uma ofensiva de grande envergadura contra o SNS, com a privatização de importantes sectores da saúde.

Ao longo dos anos, sucessivos governos contribuíram para a degradação do Serviço Nacional de Saúde não correspondesse às necessidades das populações.

Medidas básicas foram sendo adiadas, mantendo os Centros de Saúde com má imagem, ao mesmo tempo que nos Hospitais a desumanização das urgências e as listas de espera constituem a sua “imagem de marca”.

Permitiu-se que se alargasse o pântano onde a confusão entre o público, o privado e o convencionado se desenvolveu afirmando a ideia da Saúde como um negócio.

As consequências estão bem patentes nas dificuldades no acesso aos cuidados de saúde por parte dos portugueses e nos orçamentos das famílias.

Mais de 1 milhão de portugueses não têm médico de família, mais de 234 mil esperam por uma cirurgia e os custos para as famílias com as despesas globais de saúde eram já em 2003, 30,3% quando a média europeia se cifrava em cerca de 24% da despesa total em saúde.

O projecto de Decreto de Lei do governo PS que define o quadro jurídico da passagem dos Hospitais SA a EPEs e as medidas propostas pelo grupo de trabalho para a Reforma dos Cuidados Primários de Saúde, as medidas que têm sido tomadas relativamente aos medicamentos, nomeadamente o fim da majoração nos genéricos e a descomparticipação do Estado nos casos de doentes crónicos, as medidas anunciadas de concentração dos serviços de urgência, bem como as decisões já tomadas no âmbito das Parcerias Público Privadas, na linha do que já vinha acontecendo com os governos PSD/CDS-PP e ao contrário do que é afirmado pelo Ministro Correia de Campos, não resolverão nenhum dos grandes problemas que se colocam ao sector.

Tal como temos afirmado, apenas confirmam a linha privatizadora deste Governo dirigida aos hospitais e centros de saúde e outros serviços públicos, ou a entrega da sua gestão a entidades privadas, decorrentes da filosofia do primado das actividades privadas.

Medidas que de acordo com outras experiências já o demonstraram, levarão ao crescimento em flecha e descontrolado das despesas com a saúde, quer para os cidadãos quer para o Estado.

Mas também à desigualdade no acesso daqueles aos cuidados de saúde, já que ficam dependentes da sua capacidade económica e estatuto social.

Não venha o Ministro Correia de Campos dizer que estamos a ver “fantasmas”, porque a vida tem confirmado que mais tarde ou mais cedo os verdadeiros objectivos deste governo de privatização da saúde não coincidem com a retórica dos seus ministros, como é bem visível, por exemplo, nas declarações que ainda ontem o Ministro Mariano Gago produziu sobre a possibilidade de escolas privadas virem a formar novos médicos em Portugal.

Mas não será legítima a afirmação de que este Governo, com a passagem dos Hospitais S.A a EPEs, mais não pretende do que a privatização destes no todo ou em parte?

Na propaganda do Governo a passagem dos 31 Hospitais S.A a EPE resultará numa maior flexibilidade na gestão e numa maior eficiência.

Mas qual a verdade?

No nosso serviço nacional de Saúde existem dois grandes níveis de problemas.

Em primeiro lugar a ausência de articulação entre cuidados primários e cuidados hospitalares e a insuficiência de recursos naqueles, para além de criar sérios problemas de acessibilidade dos cidadãos aos cuidados de saúde é gerador de enormes ineficiências que globalmente sobrecarregam o orçamento do SNS.

Em segundo lugar existem na rede hospitalar problemas estruturais ao nível regional e ao nível dos próprios hospitais.

Hoje já é possível concluir a falência do modelo, de Hospitais S.A.

Não existe qualquer melhoria na assistência prestada, antes pelo contrário são conhecidos os resultados das políticas economicistas, nomeadamente a rejeição de doentes e patologias com tratamentos de maior custo.

Apesar disso encontram-se hoje endividados, com o capital social gasto em despesas correntes e pior equipados porque o desinvestimento foi total.

É neste quadro que agora se decidiu a nova mudança de S.A para EPE, que em nossa opinião apenas vai agravar a situação e adiar soluções que tardam num contexto de grandes insuficiências no acesso aos cuidados de saúde, na prevenção e no tratamento.

A desarticulação entre os dois níveis de cuidados de saúde acentuar-se-á com a crescente desintegração da gestão entre eles.

Os hospitais agora objecto de mudança de estatuto jurídico não têm projectos de reestruturação pelo que as ineficiências manter-se-ão e, como é óbvio, esta medida que aposta na privatização a retalho, vai introduzir um novo factor de custo na prestação de cuidados de saúde que é o lucro.

E mais uma vez a qualidade, a segurança e a acessibilidade serão postas em causa.

Em resumo, as S.A e as EPE são uma fraude e a sua criação apenas serve, no imediato ou a médio prazo, o objectivo político do grande capital efectuar negócios na área da saúde.

Para isso é necessário destruir os alicerces do SNS que tem sido o regime público de trabalho dos trabalhadores da saúde.

A destruição do vínculo público e a contratação individual significa a destruição das carreiras dos profissionais de saúde, a destruição da sua autonomia técnico-científica e a subordinação da actividade clínica a regras economicistas.

É este o futuro que espera os dois grandes hospitais, Santa Maria e S. João.

Ao primeiro foi atribuído o capital social de 133 milhões de euros e ao segundo de 122 milhões.

Para o Hospital de S. João não se conhecem projectos de reestruturação pelo que, tudo indica que em curto prazo encontrar-se-á falido.

O Hospital de Santa Maria tem um projecto de reestruturação da prestação de cuidados cuja execução se deseja que seja levada a cabo fora das negociatas que o Ministério designa por parceria público-privadas.

Mas não se compreende que a sua concretização se faça apenas com a sua transformação em EPE.

Pergunto eu, porque é que a disponibilidade financeira para a reestruturação só aparece com o capital social da EPE e não com o hospital em regime público?

Camaradas e amigos:

O artigo 64º da Constituição da República Portuguesa consagra o direito de todos à protecção da saúde e o dever de a defender e promover, bem como a afirmação de que «o direito à protecção da saúde é realizado:
a)Através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito».

De salientar que o período de maiores ganhos em saúde e de maior eficiência, de acordo com dados da OCDE e do PNUD, verificou-se entre 1975 e 1980 o que corresponde aos anos de maior impulso da revolução democrática e da criação do Serviço Nacional de Saúde como serviço público.

Também é elucidativo das consequências nefastas das políticas de direita na saúde, o facto do período de menores ganhos em saúde e de pior eficiência (menos ganhos com maior investimento) ter sido o de 1990 a 1995, período que corresponde aos anos da primeira grande ofensiva privatizadora com o governo Cavaco Silva, apoiada na Lei de Bases da Saúde aprovada em 1990.

Exprimindo os interesses de classe dos que vêm na doença uma fonte de lucro e acumulação da riqueza, a direita defendeu o alargamento das “convenções” do Estado com prestadores privados, bloqueou a elaboração de legislação que instituísse o Serviço Nacional de Saúde e, depois desta finalmente aprovada em 15 de Setembro de 1979, o governo PSD/CDS que se lhe seguiu, após dois meses, recusou aplicá-la.

Sempre com a direita no poder a promiscuidade entre o público e o privado ganhou novas asas e estendeu-se a todo o sistema.

A concessão a privados de serviços de manutenção e suporte, a legalização da prática clínica privada nos serviços públicos, a entrega às Farmácias e à Industria Farmacêutica de posições chave no sistema da saúde, aguçaram o interesse pelo negócio da saúde de potenciais prestadores privados.

O contrato feito pelo Grupo Mello para a gestão do Hospital Amadora/Sintra a meados de dos anos 90, representa um momento chave na demonstração da força que os grandes grupos financeiros privados vinham adquirindo.

De acordo com os dados do Observatório Europeu de Sistemas de Saúde, em 1995/1996, o sector privado realizava 59,5% das consultas da especialidade e 19,5% das consultas de clínica geral e dominava as áreas dos exames complementares de diagnóstico, da fisioterapia e dos cuidados dentários.

A actual vaga privatizadora forma-se e começa a crescer dentro do PS e ganhou novo impulso no 2º Governo PS de António Guterres.

As afirmações do secretário de Estado da Saúde desse governo, no VIII Congresso Nacional da Medicina, enunciando como « Princípios Gerais da Reforma do SNS, a implementação de novos modelos de gestão e administração de modo a que o Estado passe a ser mais fiscalizador e regulador e menos empresário», são bem elucidativas de uma visão estratégica para o sector da saúde e confirmam a leitura que hoje fazemos das medidas que o Ministério tem vindo a tomar, nomeadamente a decisão de encerrar alguns hospitais do centro Hospitalar de Lisboa.

Medida que nega o próprio Plano Director Regional de Saúde mandado elaborar pela equipa que hoje está no Ministério da Saúde.

Este Plano que prevê a transferência de serviços de velhos hospitais para novos hospitais convenientemente localizados tem de ser encarado na sua globalidade.

Qualquer iniciativa de encerramento de hospitais sem a criação de alternativas acentuará ainda mais os actuais problemas da rede hospitalar.

Só razões economicistas, enquadradas numa estratégia privatizadora de serviços prestados nos Hospitais do SNS, como aqueles que hoje são prestados no Hospital do Desterro, podem ter levado o Governo a tomar a medida de encerrar este Hospital já a partir de Fevereiro, transferindo para S. José e Capuchos a sua actividade, hospitais que já hoje têm, por razões que estão identificadas há muito, dificuldades em responder ás suas responsabilidades.

Estamos a falar na transferência de mais de 50.000 consultas só de Dermatologia e de Urologia e mais de 2.000 intervenções cirúrgicas ano.

Mais uma vez são outros interesses, que não a satisfação das necessidades dos utentes, que determinam as políticas de saúde deste Governo.

Nem mesmo a obsessão pelo défice que tomou conta deste Governo, é suficiente para explicar estas opções.

São por isso legítimas as dúvidas sobre o verdadeiro papel dos grandes grupos financeiros na definição das políticas de saúde, área em que cada vez mais estão a apostar, como área de negócio.

Por mais que se esforcem a sublinhar as diferenças, tentando subtilmente dar a entender que só a “entrega a privados”, ou seja a entrega ou venda da totalidade dos serviços e da propriedade a privados, significaria privatização, não conseguem esconder que as diferenças entre gestão privada e entrega a privados, resulta exactamente numa privatização e que aquilo que move o interesse privado é o lucro e não os interesses dos utentes.

A deterioração dos serviços de saúde e a ofensiva contra os direitos dos profissionais deste sector, são as consequências mais visíveis desta ofensiva e por isso têm constituído motivo de activa denúncia por parte destes, de um Governo que procura justificar as medidas que tem tomado, com a falta de eficácia dos serviços de saúde, escondendo da opinião pública as verdadeiras razões que já há muito estão identificadas e que passam pelo subfinanciamento crónico do SNS, pela falta de planeamento do sistema, pela escassez de recursos humanos e materiais e pela falta de condições de trabalho.

Aos profissionais de saúde devem ser asseguradas as condições de trabalho, de formação, de vínculo contratual, de carreira e remuneração, que assegurem a sua máxima disponibilidade e qualificação e a estabilidade do serviço de saúde onde se encontram, no quadro do respeito pelas normas deontológicas que presidem à sua intervenção.

Para a melhoria da qualidade dos serviços prestados no SNS, é decisiva a estabilidade de emprego e a dignificação das carreiras, só possível com o regime público de carreira e a obrigatoriedade de formação.

Ao Presidente da República cabe a responsabilidade de cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa, pelo que não deixarei de intervir, de acordo com os poderes constitucionais, para que o Estado português garanta a todos os portugueses o direito à saúde, através de um Serviço Nacional de Saúde universal e geral e que esse direito não seja determinado pelas condições económicas de cada um.

Um SNS com a completa separação entre o sector público e privado com a imediata reintegração dos Hospitais S.A e EPEs. no Sector Público Administrativo.

Um SNS no qual seja garantida a estabilidade do emprego e das carreiras nos Serviços de Saúde, essenciais à qualidade dos serviços prestados e consequente fim dos contratos a termo certo e a abolição da legislação para contratação individual;

O compromisso que assumo é a expressão de um grande projecto nacional e patriótico.

Um projecto respeitador de Abril e dos seus valores de democracia, liberdade, desenvolvimento, justiça social e independência nacional.

Uma candidatura que se apresenta aos portugueses assumindo a imperiosa necessidade de uma ruptura democrática e de esquerda com as políticas que a direita e o PS vêm concretizando em sucessivos governos.

É minha firme convicção que outro Portugal é possível e que está nas nossas mãos alcançá-lo.

Somos uma candidatura que não desiste de Portugal e que com toda a determinação e confiança se apresenta empenhada na construção de um Portugal mais solidário, mais justo e mais fraterno.

Queremos e lutamos por um Portugal com futuro!
Conto muito convosco para ir em frente na concretização deste grande objectivo!