Referendo sobre a Constituição para a Europa
Intervenção de Bernardino Soares
18 de Novembro de 2004

 

 

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

É preciso dizer que a história da ratificação de tratados da União Europeia e das ameaças de referendo que tivemos nos últimos anos é uma história de profunda hipocrisia política.

Ela é-o assim, desde o início, quando PS e PSD inscreveram a limitação que ainda hoje existe na revisão constitucional de 1997. Ela foi uma hipocrisia política quando, em 1998, inventaram uma pergunta que, sabiam, não podia passar no Tribunal Constitucional e com esse processo «lavaram as mãos» da não existência de um referendo. Ela é uma história de hipocrisia política, quando os mesmos que hoje subscrevem aqui uma proposta de referendo chumbaram a proposta do PCP na recente revisão constitucional, proposta essa que resolvia o problema da limitação constitucional a referendar a vinculação do País a tratados da União Europeia.

Não queriam há seis meses! Não venham agora fazer-nos crer que querem agora!

A nossa posição sempre foi muito clara. Desde há muito tempo que dizemos que é indispensável, nos passos fundamentais do comprometimento do País com a União Europeia, ser consultado o povo português, e esta indispensabilidade reforça-se neste processo que pretende instituir um novo tratado com uma dita «constituição europeia».

Exigimos sempre um pronunciamento global sobre os textos do Tratado, que permitisse aos portugueses, a par de um debate franco, aberto e transparente, pronunciarem-se globalmente, e não sectorialmente, sobre o sentido que queriam para a vinculação do Estado português, ou não, a um tratado da União Europeia.

Defendemos sempre que este referendo só teria a plena garantia de se realizar nestas condições se a Constituição não tivesse a limitação que tem. E, por isso, defendemos que essa limitação fosse retirada.

Defendemos sempre — e este é um ponto essencial de qualquer referendo — uma clareza nos efeitos que saem desse referendo. É preciso serem perfeitamente claros e inequívocos os resultados possíveis do «sim» e do «não» de um referendo. O que é que resulta do «sim»? Se resulta do «sim» a vinculação do País ao Tratado, também tem de resultar do «não» a não vinculação do País ao Tratado.

E é esse o problema ao qual os senhores querem fugir.

A pergunta que o PS, o PSD e o CDS aqui apresentam corre, evidentemente, em primeiro lugar, o sério risco de ser chumbada pelo Tribunal Constitucional, porque nada tem em termos de objectividade, de clareza e de precisão. Desde logo, ela utiliza a técnica do «isco»: põe à cabeça a Carta dos Direitos Fundamentais para seduzir o eleitor a votar «sim» na pergunta e só depois refere as matérias negativas e mais graves.

Por outro lado, não se resolve o problema de como vota o cidadão. Se um cidadão estiver de acordo com a primeira pergunta e em desacordo com as outras duas, como é que vota? Vota pela maioria daquelas com que está em desacordo? Se estiver de acordo com as duas primeiras e em desacordo com a última?

E se for ao contrário? Se estiver de acordo com a primeira, em desacordo com a terceira e hesitante em relação à segunda? Como é que o cidadão vai votar esta pergunta que os senhores aqui propõem?

É uma autêntica trapalhada!

É uma trapalhada que não quer ouvir os cidadãos, quer, sim, legitimar um processo sem uma verdadeira consulta democrática aos portugueses.

Depois, se é difícil ao cidadão decidir como pode votar, mais difícil será entender qual é o efeito deste referendo. Se o resultado for «sim», será «sim» a quê? À primeira pergunta? À segunda?

À terceira? Às duas primeiras? A todas elas? Mas como é que se pode presumir isso? Como é que se pode presumir que um cidadão que votou «sim» só estava de acordo com uma delas e ligeiramente em desacordo com as outras, ou só estava em desacordo com duas? Qual é o efeito a retirar de uma resposta

«sim»? E, sobretudo, qual é o efeito a retirar de uma resposta «não»?

Se esta pergunta fosse aprovada, os senhores diriam certamente que não se sabia a que é que os cidadãos tinham respondido «não», portanto, ratificar-se-ia o Tratado, e assim avançaríamos.

Esta pergunta configura um referendo sem efeitos práticos, configura um processo em que os partido que a propõem querem «lavar as mãos», no futuro, da eventual não realização do referendo. E este é que é o problema que aqui está em discussão. Já decidiram ratificar o Tratado e querem enganar os portugueses com um referendo «faz-de-conta».

O que é essencial aqui (há pouco falava-se do essencial e do acessório) é saber o que é que os portugueses vão decidir e qual é o efeito da sua decisão, e esta pergunta não garante resposta clara a nenhuma dessas duas questões.

Aprovar esta proposta não o faremos, pois seria colaborar com uma verdadeira «trafulhice» política, que quer impor aos portugueses um resultado com uma pergunta capciosa, não objectiva e não clara.

(...)

 

 

Peço a palavra para interpelar a Mesa, Sr. Presidente.

(...)

Sr. Presidente, não há nenhuma inscrição dos partidos proponentes?

(...)

É estranho!

Nem do PS, nem do PSD, nem do CDS?!…

(...)

Sr. Presidente, Srs. Deputados: É muito significativa esta ausência de inscrições, pelo menos até agora. Esperemos que ainda haja!…

Isto porque, numa matéria com esta importância e que ainda por cima é tratada num processo especialíssimo, todos os projectos de resolução (os nossos também) deram entrada hoje à tarde na Mesa e estão aqui a ser debatidos, e os proponentes de um dos projectos de resolução mais não dizem do que disseram inicialmente, nem sequer em relação aos argumentos que aqui foram contrapostos.

Mas nós percebemos bem o que está aqui em causa e os interesses que aqui estão em causa!…

Sr. Presidente, talvez seja melhor esclarecer que há uma segunda volta com 2 minutos para cada um dos partidos, porque parece que há uma grande agitação na bancada do PSD.

O PSD quer evitar, a todo o custo, que este referendo se torne num referendo em que haja algum elemento de julgamento da política do Governo.

O PS quer afastar este referendo (acaso ele existisse) o mais possível das autárquicas, porque não quer que o Sr. Deputado José Sócrates apareça de braço dado com o Primeiro-Ministro, Santana Lopes, a defender o «sim» a esta pergunta que aqui fizeram.

E nós bem percebemos qual é a dificuldade de todos os Srs. Deputados do PS, do PSD e do CDS, nesta matéria. Sabemos também que foi o Partido Socialista que, votando contra a nossa proposta na revisão constitucional, não quer agora fazer a revisão circunstanciada e explícita apenas para aquele problema do impedimento de referendar.

É o Partido Socialista que não quer e, portanto, empenha o seu vigor nesta pergunta completamente inaceitável.

Sabemos também que o PS, o PSD e o CDS não querem ser julgados pela sua política europeia, não querem ser julgados pelos seus compromissos, não querem que se saiba bem o que significa este Tratado no avanço do militarismo na União Europeia, o que significa na consagração no texto do neoliberalismo nas políticas económicas e sociais, o que significa de perda de soberania para Portugal, o que significa de perda de poder de decisão para Portugal, o que é o mesmo que dizer de perda de poder para defender os nossos interesses não de uma forma egoísta mas de uma forma patriótica, o que não tem acontecido. E os senhores não querem assumir as vossas responsabilidades nesta matéria!

É por isso que, neste momento, quero deixar-vos um desafio: que suspendamos agora este processo, que ele espere mais duas semanas…

(...)

Deixo o desafio: suspendamos agora este processo para que possamos, durante duas semanas, encontrar m consenso para um referendo sério, para um referendo que tenha efeitos e em que os portugueses digam «sim» ou «não» e desse «sim» e desse «não» haja consequências para a vinculação do Estado português. Esta farsa é que não pode ir por diante sem denúncia!

 

 

 

 

 

O Sr. Bernardino Soares (PCP): — Sr. Presidente, Sr. Deputado António José Seguro, com todo o

respeito, ao ouvi-lo falar até parece que esta dita Constituição Europeia tem valores de esquerda! Até

parece! E, se o Sr. Deputado está preocupado com o facto de a esquerda não os acompanhar, devia era

preocupar-se pelo facto de a direita vos acompanhar.

Vozes do PCP : — Muito bem!

O Orador: — Esse é que é o problema deste debate!

Aplausos do PCP .

O Sr. Deputado diz que está de boa-fé na convicção da constitucionalidade. Claro que não duvido da

sua boa-fé, mas o Sr. Deputado é capaz de me explicar qual é o efeito de uma resposta «não» a esta pergunta?

É capaz de nos dizer o que é que acontece se os portugueses disserem «não»? E é capaz de me

explicar também por que é que o PS não quer alterar aquela norma da Constituição que impede a pergunta

global? Responda-nos, por favor.