Acompanhamento e apreciação pela Assembleia da República da participação de Portugal no processo de construção da União Europeia
Intervenção do Deputado Honório Novo
22 de Junho de 2001

 

Sr. Presidente,
Sr.as e Srs. Deputado,
Sr. Ministro,

Volta e meia muitos daqueles que pertencem às chamadas «elites europeias» insistem na tónica de aumentar a participação na discussão sobre o projecto futuro da União Europeia. E este «volta e meia», não por acaso, coincide com alguns marcos relevantes dessa evolução. Foi assim na Dinamarca, em 1992, quando o povo dinamarquês disse «não» ao Tratado de Maastricht e foi assim agora, novamente, quando o povo irlandês disse «não» ao Tratado de Nice.

Quer num caso quer no outro, houve a multiplicação de um tipo de discurso idêntico: é necessário voltar a discutir, aumentar, alargar e aprofundar a discussão, etc. Isto é, assiste-se a uma repetição do mesmo discurso, esquecendo que durante estes quase nove anos pouco ou nada foi feito no sentido de concretizar essas perspectivas de trabalho.

Com vista a uma eventual nova CIG em 2004, há mesmo quem diga - e o Sr. Ministro disse-o - que a forma de aumentar essa participação seria através da criação das chamadas «convenções europeias». Face à experiência que existe relativamente à elaboração da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, gostava de lhe colocar duas questões: acha que essa é, de facto, a forma de aumentar, diversificar e alargar a participação ou, pelo contrário, este modelo de convenção não será antes a forma de pré-condicionar, de ultrapassar as competências de facto dos governos e dos parlamentos? Não pensa que a convenção não é uma forma de reduzir ou de eliminar de facto a participação pluralista neste debate?

Recorde-se o que aconteceu com quatro dos seis partidos que estão representados neste hemiciclo, os quais não tiveram a oportunidade de participar activamente nesta convenção. E, tal como não tiveram estes partidos, não tiveram todas as vozes que discordam do chamado «pensamento único europeu».

Eu gostava de ouvir a opinião do Governo sobre isto.

(...)

Senhor Presidente
Senhores Membros do Governo
Senhoras e Senhores Deputados

Quando nada o fazia prever, eis que a vontade de um povo lançou uma pedrada no charco do pensamento único do actual processo de integração europeia.

Tal como ocorrera na Dinamarca em 92, as elites partidárias do "bloco central europeu" viram a sua paz podre federalista perturbada, agora pelo NÃO irlandês ao Tratado de Nice.

Empenhados já em cozinhar nova alteração ao Tratado, sem sequer terem tido o cuidado de esperar pela ratificação da versão que tinham aprovado em NICE, os fundamentalistas do federalismo tiveram que "guardar na gaveta" as suas mais ousadas propostas para o reforço das orientações federais e prestar um pouco de atenção aos resultados do referendo irlandês.

Tal como ocorrera na altura do referendo na Dinamarca as elites do pensamento único voltaram de novo, como Pilatos, a defender que o processo de integração europeia tinha que ter maior participação, tinha que ser mais discutido pelos povos dos diferentes Estados-membros.

Aqueles mesmos que, com o não dinamarquês, tinham prometido (mas se tinham esquecido de) aprofundar e largar o debate europeu, se tinham comprometido (mas se tinham esquecido) de aproximar os europeus das decisões comunitárias, esses mesmos, repetem de novo o discurso, voltam a jurar compromissos para fazer funcionar a democracia na União Europeia. Até inventam e dão apoio a novas fórmulas para (supostamente) aumentar os níveis de participação popular, quais sejam as da organização de convenções apara a revisão dos Tratados, omitindo que estes foruns visam apenas tentar ultrapassar e condicionar as competências inalienáveis dos governos e dos parlamentos nacionais e ultrapassar e condicionar a ainda natureza de base intergovernamental do actual processo de integração europeia. Convenções que, para além disso, podem transformar-se em verdadeiras fraudes e atentados à democracia - como aliás, em parte, se verificou com a Convenção para a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, onde foi reduzida, quando não eliminada, a participação dos partidos e das vozes com opiniões diversas das do pensamento único europeu.

Senhor Presidente
Senhores Membros do Governo
Senhoras e Senhores Deputados

Os níveis de abstenção no referendo irlandês confirmam de forma evidente quão longe dos interesses das populações está a União Europeia e as políticas que concretiza.

Os resultados deste referendo são de uma importância política cristalina, sendo profundamente ilegítimas todas as tentativas em curso para os questionar de forma directa ou indirecta. Ninguém põe em causa os resultados de outros referendos semelhantes, nem mesmo os resultados de eleições onda a abstenção foi anormalmente elevada (e a propósito recordaríamos, para não ir mais longe, os resultados das recentes eleições em Inglaterra).

Na Irlanda, porém, como a decisão dos eleitores não foi desta vez conforme os interesses dominantes, o caminho que alguns parecem apontar passa pela realização de uma ou de novas consultas populares. Isto é, fazer votações e voltar a fazer sempre mais votações até ajustar a vontade dos eleitores aos desejos das forças políticas e económicas que dominam o actual processo de integração europeia.

Não são apenas dois pesos e duas medidas, é também a manipulação mais descarada, a chantagem mais evidente sobre as opções de um povo, é fundamentalmente a expressão bem viva do pouco respeito pela democracia e pela vontade dos cidadãos expressa em votos!

Senhores Membros do Governo
Senhoras e Senhores Deputados

O Tratado de Nice não serve a Portugal como não serve aos povos dos diferentes Estados membros.

O Tratado de Nice estende e quase generaliza as votações por maioria qualificada, quase que elimina o direito de veto mesmo perante questões fundamentais de soberania ou interesses de âmbito nacional, reforça o poder de decisão e de controlo dos países mais fortes e populosos conferindo-lhes mais votos e maior capacidade para bloquear decisões do Conselho, aprofunda a militarização e a subserviência perante estratégias expansionistas e de dominação, o Tratado de Nice constitui, enfim, mais uma etapa firme num processo de integração europeia norteado por orientações federais, iniciado em Maastricht e continuado em Amsterdão.

Para o PCP a soberania é inegociável, é condição de salvaguarda de independência e de preservação de uma democracia pluralista e participativa, é essencial para a manutenção dos centros fundamentais de decisão no interior do país.

Para o PCP é essencial valorizar o papel dos parlamentares nacionais, criando condições reais, técnicas e humanas, para permitir não apenas um mero acompanhamento mas também um efectivo controle e intervenção nos processos de integração comunitária.

Para o PCP a manutenção do direito de veto em questões fundamentais é essencial para defender os interesses que em cada momento se considerem centrais do ponto de vista do interesse nacional.

Para o PCP é essencial modificar as políticas neoliberais de desregulamentação das empresas e dos mercados, travar os processos que neste campo se iniciaram na Cimeira de Lisboa e se consolidaram em Estocolmo, particularmente nos transportes, nos serviços postais, na produção e distribuição de energia, nas telecomunicações, é fundamental contrariar as pressões crescentes para introduzir e aprofundar conceitos de flexibilidade no mercado de trabalho; pelo contrário, para o PCP torna-se essencial defender a estabilidade laboral e o acréscimo de salários, de direitos e da dignidade de quem trabalha, torna-se inadiável defender de forma consequente a capacidade de produzir e níveis de rendimento dignos para os agricultores e pescadores portugueses.

Para o PCP é inadmissível que no Conselho de Gotemburgo, os Governos - e em particular o português - em vez de se perderem em maquinações referendárias conspirando para tentar adulterar e menorizar o resultado do referendo irlandês, tivessem tido maior empenho e maior capacidade de decisão em matéria de defesa e de preservação ambiental bem como de controle do efeito de estufa.

Para o PCP é igualmente inaceitável que o Governo português, num momento em que são evidentes sinais de diminuição do crescimento económico, com particular incidência e consequências no nosso país, não tenha imposto na discussão em Gotemburgo a imperiosa necessidade de alterar e flexibilizar o espartilho do Pacto de Estabilidade dos constrangimentos orçamentais que determina.

Para o PCP constitui uma exigência nacional que o Governo defenda a alteração e a flexibilização do Pacto de Estabilidade, permitindo assim manter níveis de investimento público que nos impeçam de divergir da média de desenvolvimento comunitário e que, pelo contrário, garantam a Portugal a possibilidade de manter objectivos de convergência real com a União Europeia.

Senhor Presidente
Senhores membros do Governo
Senhoras e Senhores Deputados

Não é verdade que o alargamento da União Europeia não possa ser efectuado sem que seja ratificado o Tratado de NICE.

A verdade é que, tendo em conta a natureza das candidaturas aos próximos alargamentos, e perante a óbvia certeza da consequente modificação do centro de gravidade dos interesses na União Europeia, o núcleo de países e de interesses económicos e políticos que tem dominado e controlado o processo decisório quer assegura a manutenção do poder.

No passado, a maioria dos processos de alargamento introduziu na União Europeia uma maioria de países com interesses económicos e sociais próximos e semelhantes aos da estrutura nuclear que domina a União Europeia desde a sua génese. No passado não tinha havido, assim, necessidade imperiosa de alterar os mecanismos institucionais ligados ao processo decisório já que ele continuava controlado.

É a natureza dos alargamentos que se perfilam que leva agora o núcleo de países dominador a exigir fórmulas que lhes permitam manter o controle do leme das decisões numa União cujos interesses podem vir a ser bem diferentes dos actuais numa maioria bem significativa de estados-membros.

Não é assim o NÃO Irlandês ao Tratado de NICE que impede o alargamento.

Pelo contrário: é apenas a imperiosa necessidade e a egoísta obsessão de alguns poucos países, mais fortes e populosos em continuarem a garantir o domínio absoluto sobre uma União Europeia a 25 ou 27 países, quem pode impedir o alargamento. O tratado de NICE só existe para lhes garantir e assegurar esse domínio.

Não foi a Irlanda, nem foi a seu povo que se mostraram pouco solidários com os países candidatos, tal como tentam defender os arautos do pensamento único europeu.

Pelo contrário: é este pensamento único que exige NICE para garantir que o alargamento se faça sem beliscar os seus interesses e a sua capacidade de controlo; é este pensamento único quem exige que o alargamento se faça à custa dos princípios fundacionais da coesão económica e social, impondo aos menos desenvolvidos da actual União a parte de leão dos custos do alargamento e reservando para si (e para os seus interesses políticos e económicos) a parte de leão das vantagens decorrentes do alargamento de mercados.

Senhor Presidente,
Senhores Membros do Governo,
Senhoras e Senhores Deputados:

Na Irlanda discutiu-se o Tratado de Nice e o seu povo votou NÃO!

Nos restantes países são as mesmas élites partidárias do bloco central - que em Portugal começam no PS mas que nunca se sabe bem onde acabam - que cozinharam e aprovaram os termos do Tratado em Nice, quem se prepara também para os ratificar.

E prepara-se para ratificar Nice sem qualquer discussão alargada, sem que os Portugueses conheçam minimamente o conteúdo das alterações e as respectivas consequências para Portugal.

Tal como o PCP afirmou na altura, a última revisão constitucional como que blindou a Constituição da República, impedindo a realização de referendos sobre Tratados e permitindo apenas as consultas populares sobre questões parcelares, pouco claras e normalmente de difícil e complexo questionamento, como aliás bem se verificou com a hipótese de "pergunta" aprovada para a eventualidade de realização de um suposto referendo sobre a "moeda única".

O PCP continua a considerar e a insistir na necessidade de se organizar um debate nacional sério, simplificado e profundamente alargado sobre a evolução do actual processo de integração europeia e particularmente sobre o Tratado de Nice.

O PCP continua assim a considerar imperioso que o Povo Português seja chamado a discutir e pronunciar-se sobre o seu destino colectivo.

Disse.

(...)

Sr. Presidente, Srs. Membros do Governo, Sr.as e Srs. Deputados: Quatro notas finais sobre este debate.

Primeira nota: o que aqui foi dito sobre a forma e a metodologia que se pretende levar a cabo para concluir o processo de ratificação do Tratado de Nice, em Portugal, não augura nada de bom, não vai, certamente, alterar os níveis de participação na discussão, não vai, seguramente, mudar os níveis de conhecimento sobre as alterações que o Tratado introduz e sobre as suas consequências.

O debate que se parece querer conduzir, um pouco burocraticamente - refira-se! -, a julgar pelo que já foi dito e pelo que já foi feito, não vai ser alargado, vai ser efectuado em circuito fechado, vai continuar a manter no alheamento a maioria dos portugueses. As elites vão querer continuar a falar sozinhas e a manter o povo português arredado do processo de ratificação.

Para isso, para esse pseudodebate, não contem nem com a participação, nem com a cobertura, nem com a colaboração do PCP.

Segunda nota: lamentavelmente, parece tornar-se cada vez mais evidente que o Governo abandonou de vez a possibilidade de introduzir na agenda política a necessidade de alterar ou, no mínimo, de flexibilizar o Pacto de Estabilidade. Que a diminuição dos constrangimentos orçamentais que o Pacto de Estabilidade impõe a Portugal pudesse ser discutida - sequer discutida no plano europeu -, que, com isso, se garantissem, eventualmente, possibilidades de aumentar os recursos nacionais no investimento produtivo, para, assim, aumentar a convergência e garantir níveis de coesão económica e social mais adequados, são coisas a que o Governo não prestou e, pelos vistos, não vai prestar, nem tem intenções de prestar a mínima atenção.

Terceira nota: confirma-se, mais uma vez, que o Governo português - quanto ao PS, não sabemos!… - defende o modelo federal para o futuro da integração europeia, desde que se garanta que alguém compra, com um orçamento federal, a nossa soberania. Parece que, para o Governo, federalismo sim, mas desde que haja dinheiro.

Para o PCP, volto a repetir, a soberania não é negociável, nem que ela se possa perder aos bocados - um pouco em Maastricht, um pouco mais em Amsterdão, ainda mais em Nice. Para nós, a soberania é um todo, por mais evoluções que sucedam e que se verifiquem. Espanta que todos ou alguém, nesta Casa, abra a possibilidade de ratificar a perda de soberania aos bocados, em episódios, como se a soberania fosse uma espécie de telenovela, sujeita aos humores e às conjunturas dos dirigentes partidários.

Quarta e última nota: o PCP sempre defendeu o alargamento, continua e continuará a defendê-lo. O PS ou, pelo menos, o Sr. Deputado Manuel dos Santos, pelos vistos, também defende, tal como o PCP, que o alargamento se pode fazer sem o Tratado de Nice. Importaria saber se o Governo também suporta ou não esta posição e se, em conformidade, vai deixar de colaborar na inqualificável pressão sobre a Irlanda e o seu povo. Isto não ficou claro durante o debate, mas, já agora, no encerramento, esperamos que fique claro. Como também não ficaram bem clarificadas as condições colocadas por Portugal, do ponto de vista dos meios financeiros estruturais, para garantir a coesão da futura União alargada e as respectivas consequências negativas para uns e para outros.

Podem contar com o PCP para continuar a defender o alargamento numa União que queremos de cooperação e de base intergovernamental e com meios para garantir a convergência real e a coesão económica e social. É esta a integração que o PCP defende, aquela que pode também reflectir os interesses dos povos e que não se limita a ser o reflexo dos interesses das elites económicas e políticas, mentoras da liberalização e da dominação globalizadora.