Passe Social Intermodal nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto
Intervenção do Deputado Bruno Dias
12 de Fevereiro de 2004

 

Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Deputados,

À medida que o tempo passa, de cada vez que se discute a política de transportes, e particularmente os sistemas de transportes colectivos, torna-se mais recorrente esse ritual de “profissões de fé” a que assistimos.

Ano após ano, debate após debate, repete-se o coro de preocupações quanto à supremacia do transporte individual face ao transporte público, quanto aos impactos ambientais e económicos que daí decorrem, quanto às suas perigosas implicações para o funcionamento quotidiano das áreas metropolitanas, quanto à invasão das cidades pelo automóvel.

Já sabemos que ascende a 62% a utilização do transporte individual nas deslocações pendulares; que mais de 35% das famílias não têm viatura própria, que é crescente o peso do sector dos transportes na emissão de gases com efeito de estufa.

Entretanto, é claro que todos concordam que os transportes públicos têm de funcionar e ser geridos numa lógica de rede, de forma articulada e integrada; que têm de ser mais atractivos e captar mais passageiros; que precisam de eficácia, de sustentabilidade, de segurança.

O problema, Senhores Deputados, não é este ritual de suposto consenso que tantas vezes se verifica: o problema é continuarmos à espera que se passe das palavras aos actos. Pior – designadamente no tocante à política tarifária, o que vamos observando é a desresponsabilização do Estado, o favorecimento dos interesses privados e a penalização cada vez maior dos utentes do transporte público.

Se há matéria decisiva numa estratégia para o sector dos transportes, ela é certamente a política tarifária. E este ano o que tivemos foi mais do mesmo, ou seja, aumentos de preços novamente acima da inflação, agravando ainda mais para as famílias portuguesas o peso das suas despesas com transportes.

Já se sabe que são os passageiros portugueses quem paga na Europa, directamente do seu bolso, a maior percentagem dos custos de transportes. Entretanto, o Governo tem a desfaçatez de assumir que ainda quer “aumentar a cobertura dos custos pelas receitas tarifárias”, isto é, carregar ainda mais na factura para os utentes.

É de resto elucidativa a evolução do preço do passe social L123 desde a sua criação até aos dias de hoje: em 1980 correspondia a 8,67% do salário mínimo nacional; actualmente, está em 11,61%, num aumento superior a um terço do seu peso relativo no poder de compra. E isto no terceiro ano consecutivo em que caíram os salários reais!

Com políticas destas, ficamos esclarecidos quanto às intenções do Governo em promover o transporte público…

Perante os sinais mais ou menos disfarçados que este Governo vai passando quanto à sua verdadeira estratégia em matéria tarifária, é preciso mais do que nunca reafirmar a importância do passe social intermodal como conquista social, económica, ambiental, fruto das transformações operadas com o Portugal de Abril.

O passe social não pode ser visto como um produto, integrado num negócio. Ele é, desde logo, um instrumento fundamental numa estratégia de desenvolvimento sustentável para o transporte colectivo. Mas é em si próprio a consagração do direito das populações à mobilidade – para o trabalho, para o estudo, para o tempo livre ou o lazer.
Por isso apresentamos estes Projectos de Lei: porque é preciso defender o passe social intermodal. Devolver-lhe eficácia, actualizar e adequar a sua capacidade de resposta, face às dinâmicas e alterações populacionais verificadas nas últimas décadas nas Áreas Metropolitanas. E por outro lado, aspecto não menos importante, reconhecer e conferir também à população da Área Metropolitana do Porto esse direito fundamental à mobilidade, de uma forma estruturante e integrada.

Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Deputados,

Para o PCP é cada vez mais uma evidência que, ao longo dos anos, a aberrante sujeição das políticas de habitação aos interesses do lucro privado foram ditando o afastamento crescente das populações para as periferias. E assim, só na AML, centenas e centenas de milhar de potenciais passageiros do transporte público ficaram excluídos do passe social – simplesmente porque vivem no exterior das suas coroas.

As áreas metropolitanas alteraram-se, e com elas os padrões de mobilidade – e a verdade é que o sistema tarifário do passe social não acompanhou nem respondeu a essas dinâmicas. Nem na Área Metropolitana de Lisboa, nem (evidentemente) na Área Metropolitana do Porto.

Daí que seja indispensável captar novos utilizadores para o sistema de transportes colectivos, com todos os ganhos sociais, ambientais, económicos e mesmo da própria geração de receitas para o sistema. E isso faz-se com o passe social, garantindo-se a tal articulação e a efectiva intermodalidade da rede.

Pois se em cada área metropolitana há centenas, sublinhe-se, centenas de títulos de transporte (só na AML foram contabilizados mais de 450), não é credível nem sustentável que não exista, nem em Lisboa nem no Porto, um único passe social que permita, sem discriminações, o acesso aos vários operadores e meios de transporte! É uma situação absurda que exige medidas concretas para a sua correcção.

Ao cabo de 27 anos, torna-se ainda maior a necessidade de defender e confirmar o passe social como título de transporte estruturante do sistema tarifário. Estabilizar a definição do seu enquadramento legal. E operar uma remodelação que venha adequar e actualizar uma resposta eficaz e integrada do sistema, na Área Metropolitana de Lisboa e na Área Metropolitana do Porto.

Com as medidas que propomos, o passe social passará a abranger, só na Área Metropolitana de Lisboa, um acréscimo de mais de 40% da população servida actualmente – e mais de 60% dos que actualmente têm acesso ao passe beneficiarão directamente da redução de custos, com o alargamento das coroas.

Se em Lisboa o nosso Projecto-Lei parte da análise do que foi a experiência das últimas décadas na evolução do próprio sistema do passe social, para avançar com propostas concretas e definidas para o alargamento das coroas territoriais a abranger; já relativamente ao Porto temos em conta que se trata de criar um sistema de passes onde ele de facto não existe – e por isso mesmo defendemos que se proceda aos necessários estudos e inquéritos com vista à definição da solução mais adequada à realidade daquela região.

Em ambos os casos, as Autoridades Metropolitanas de Transportes deverão desempenhar um papel importante neste processo, já que a elas cabe a implementação destes sistemas, actualizando de forma integrada os próprios sistemas de bilhética, e fundamentando-a na recolha e actualização regular da informação estatística indispensável para a ponderação da distribuição de receitas e para a fixação de indemnizações compensatórias.

E a esse propósito, cabe aqui sublinhar que o PCP não tem complexos nem preconceitos em defender a compensação pelo Estado a todos os operadores do serviço público de transporte colectivo, que têm a obrigação de prestar um serviço público de qualidade – e não apenas gerir um negócio supostamente rentável.

Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Deputados,

Para além de todas as razões de eficácia, de sustentabilidade, de justiça social, da defesa de direitos, de protecção do ambiente, temos mais uma razão para esperar deste debate a viabilização destes projectos de lei: é que, no passado, nesta mesma sala, o PCP apresentou propostas que no essencial já abriam caminho a estas soluções. E nessa ocasião, os partidos da actual maioria viabilizaram as nossas propostas – nem PSD nem CDS-PP votaram contra.

Com estes diplomas, trazemos agora a oportunidade e a iniciativa para que se tomem medidas concretas. Já vimos que, quanto ao diagnóstico, estamos todos de acordo. Passemos então à prática, porque este “pára-arranca” nas políticas de transportes não pode continuar.

Disse.