Reprivatização indirecta do capital social da Sociedade Transportes Aéreos Portugueses (TAP)
Intervenção do Deputado Bruno Dias na Assembleia da República
6 de Junho de 2003

 

Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Deputados,
Senhores Membros do Governo,

Com a aprovação do Decreto-Lei n.º 57/2003, de 28 de Março, o Governo quis levar ainda mais longe as intenções, já antigas e mal disfarçadas, de segmentação, desmembramento e privatização da Transportadora Aérea Nacional.

Estamos perante, nada mais, nada menos, que o diploma legal que consubstancia o alfa e o ómega de toda a estratégia do Governo e da maioria para o transporte aéreo em Portugal.

Para além da venda a retalho da companhia aérea de bandeira, o que aparece são as consensuais e costumeiras declarações de louvor à TAP, aos seus trabalhadores, à sua importância enquanto empresa de bandeira, enquanto elo de ligação com as comunidades portuguesas, enquanto valor de modernidade, enquanto factor de promoção da imagem de Portugal.

Todas estas afirmações são verdadeiras. E podem ser levadas ainda mais longe: podem ir ao ponto de se afirmar que a TAP é ela própria um valor estratégico para a soberania nacional. Mas depois de tudo isto, há que ser consequente e reconhecer essa verdade indesmentível (dolorosa para alguns, é certo, mas indesmentível) de que a TAP Air Portugal é tudo isto… enquanto empresa de capitais exclusivamente públicos!

E é em grande medida graças a essa condição de empresa de capitais públicos que a TAP hoje avança no sentido da recuperação. Enfrentando uma conjuntura internacional particularmente difícil, destacando-se pela positiva num contexto desfavorável, quando são várias as companhias aéreas privadas que fecham as suas portas, a Transportadora Aérea Nacional demonstra com a sua experiência concreta que a viabilidade e a consolidação económica não se alcançam com privatizações – antes pelo contrário.

Aliás, é essencial retirar as devidas conclusões e ensinamentos da experiência vivida a este respeito no passado recente da companhia – e não é isso o que o Governo está a fazer. Senão, veja-se: a anterior tentativa de privatização da TAP, levada a cabo pelo Governo PS, quase conduziu ao desaparecimento da empresa. Agora, passado o testemunho ao PSD e ao CDS-PP, este Governo recupera os mesmos objectivos, a mesma receita e o mesmo discurso, apenas com uma diferença: agrava-se ainda mais a ofensiva na segmentação e alienação de sectores estratégicos.

É essa a essência do Decreto-Lei que estamos a apreciar. Retoma-se o diploma de má memória que desencadeou o processo Swissair. Reafirma-se o seu propósito. E leva-se ainda mais longe o que de mau já se consagrava. Desta feita, assume-se o corte definitivo e irreversível de toda a actividade da assistência em escala.

A TAP enquanto empresa prestadora de serviços de handling pura e simplesmente desaparece! De tanto que o Governo e a maioria falam de imagem de marca, nem a marca nem o nome ficam nessa nova empresa. Mais: a assistência aos voos da própria TAP, determinante para garantir a sua autonomia operacional, fica, também ela, no domínio da nova sociedade “Serviços Portugueses de Handling, S.A.” – que nos termos deste decreto-lei verá alienada a maioria do seu capital.

Ou seja, a TAP perde o negócio da assistência em escala a terceiros, que hoje apresenta equilíbrio financeiro e resultados positivos (citando o Eng. Cardoso e Cunha) e como se não fosse bastante, ainda é forçada por este Governo a renunciar às suas próprias estruturas de apoio, cuja utilização depois terá de pagar a terceiros!

É isto que se afirma textualmente no preâmbulo do decreto-lei. E é isto que se concretiza no seu articulado, designadamente no Artigo 19.º. Entretanto, o Governo continua sem demonstrar que a TAP não ficará a perder (e muito) com este negócio obviamente tão apetecível para os interesses privados. E não o demonstra porque não tem condições de o fazer!

Aliás, essa incapacidade de legitimar e sustentar estas medidas ficou bem à vista no debate de urgência em Plenário, sobre a situação da TAP, realizado no passado dia 30 de Abril por iniciativa do PCP.

O Governo e a maioria recorrem desde o início a dois argumentos:

O primeiro argumento é que Portugal está em transgressão face à Directiva Comunitária 96/67/CE; e que a única maneira de cumprir essa directiva é a alienação e a privatização do handling da TAP. E nós demonstramos que não é verdade.

Desde logo, porque a transposição dessa Directiva para o direito nacional consagrou um regime transitório que ainda se encontra em vigor – donde, não há transgressão nenhuma.

Depois, porque é possível cumprir a directiva em questão, sem sacrificar a TAP. Basta o Governo vender 11% do capital da Portway – que é o segundo operador já existente em Portugal, com 60% de capitais públicos. [Aliás, a este propósito, importa sublinhar que o Governo terá que assumir, mais cedo que tarde, a responsabilidade política pelo quadro de concorrência verdadeiramente fratricida que está a acontecer já hoje no handling, com a Portway a praticar uma política de preços, prejudicial não só para si própria, mas também para a TAP.]

Finalmente, porque não há directiva nenhuma no mundo que impeça qualquer companhia aérea de garantir a sua própria assistência em escala, sem que para isso tenha que depender de terceiros.

Quando confrontado com isto, o Governo muda de argumento, diz que afinal este não é o problema de fundo e que a razão principal para esta opção assumida é o buraco financeiro catastrófico da TAP. Vejamos então o quadro económico e financeiro, isto é, o segundo argumento do Governo e da maioria.

Diz o PSD que estas medidas, e passamos a citar, “se não forem tomadas, levarão ao fim desta companhia tal como hoje a conhecemos, senão mesmo à sua falência”. No fundo, é a repetição inalterada do discurso do então Senhor Ministro Jorge Coelho, que afirmava que a TAP fecharia as portas no mês seguinte se a privatização não avançasse. Foi o que se viu…

A diferença é que hoje a situação financeira da companhia é efectivamente menos grave do que era naquele momento. O que só vem tornar ainda menos credível a argumentação recauchutada do actual Governo nesta matéria.

Os números não são nossos – são do Eng. Cardoso e Cunha e do Eng. Fernando Pinto. Nos últimos dois anos, a TAP passou de um prejuízo de exploração de 122 milhões de euros para uma expectativa de resultados positivos de 12 milhões de euros no ano em curso. Os resultados operacionais têm sido positivos e com tendência para subir. Apesar do efeito do 11 de Setembro, o tráfego de transporte aéreo cresceu 5%. O mês de Abril já veio confirmar essa tendência.

E tudo isto se verifica quando já vão longe os famosos 180 milhões de contos da última injecção de capitais na TAP. Quando o Governo e a maioria invocam a proibição comunitária de ajudas estatais às companhias aéreas, importa aqui recordar que há quase uma década que o Estado Português não dá um centavo (ou um cêntimo) à empresa a título de injecções de capital.

O que os trabalhadores da TAP vêm exigindo há muito tempo para a empresa não são ajudas financeiras: é uma gestão competente e uma actuação política responsável. Aliás, o próprio Administrador Delegado da TAP avançou já esta semana com um exemplo claro dessa falta de responsabilidade do Governo.

Não há nenhuma regulamentação que impeça Portugal de apoiar a sua companhia aérea (à semelhança do que fazem outros estados), desde logo nos investimentos obrigatórios para o reforço da segurança. Neste último ano, a factura foi de 25 milhões de euros. Só neste capítulo, se Portugal seguisse o exemplo de outros países, a TAP pouparia o equivalente a 62,5% de todo o seu défice de tesouraria. É caso para perguntar: onde é que anda o Governo com a sua vontade de salvar a TAP?

Entretanto, o Senhor Ministro preferiu vir dizer publicamente que o caderno de encargos para a privatização da TAP é para aprovar antes do Verão. Quanto à prudência que o Governo apregoou para este processo, estamos conversados. Aqui no Plenário, o Senhor Ministro produziu a esclarecedora afirmação de que “a alienação da sociedade criada no âmbito da holding TAP, SGPS, não é feita à pressa, mas sim feita com carácter de urgência”. Quem tinha dúvidas ficou esclarecido.

Perante este quadro tendencial de recuperação financeira da TAP, fica a desconcertante imagem de um Governo que mais parece querer arrombar a porta antes que o fogo se apague! O mesmo é dizer: ultrapassado que está o argumento da Directiva Comunitária, o Governo e a maioria usam o pretexto do défice de tesouraria para segmentar e privatizar, rapidamente e em força, antes que chegue o equilíbrio financeiro e a falta de argumentos se torne demasiado confrangedora.

Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Deputados,

O Decreto-Lei n.º 57/2003 é ilegal e inconstitucional. As Organizações Representativas dos Trabalhadores da TAP que, nos termos dos Artigos 54.º e 56.º da Constituição da República, e do Artigo 18.º da Lei n.º 46/79, de 12 de Setembro, têm o inalienável direito de acompanhar e participar nos processos de reorganização das respectivas empresas, não foram tidas nem achadas em todo este processo.

O Governo ouviu a Comissão de Acompanhamento das Privatizações e deu-se por satisfeito. Decretou a segmentação da companhia, ao arrepio da Lei das Comissões de Trabalhadores e do próprio texto constitucional. Quer impor a toque de caixa um processo de alteração estrutural da empresa, sabendo como sabe que está a comprometer o seu futuro.

Se os diplomas anteriores já eram (e foram) merecedores de críticas profundas e da oposição do PCP, por concretizarem as opções por uma estratégia que já punha em causa o futuro da TAP enquanto companhia de bandeira, o presente Decreto-Lei vai mais longe nessa orientação, assumindo um carácter ainda mais gravoso e inaceitável.

O PCP, por não aceitar esta opção irresponsável do Governo, rejeita frontalmente este Decreto-Lei e as medidas por ele definidas. Nesse sentido, apresentámos na Mesa da Assembleia da República um Projecto de Resolução com vista à cessação de vigência daquele diploma. E continuaremos a combater com firmeza e determinação esta afronta à TAP, aos seus trabalhadores e ao interesse nacional.

Disse.