Contra a lei da selva
trabalho com direitos

Extractos da intervenção de Carlos Carvalhas

3 de Outubro de 1998



«(...) Há uma grande diferença entre o discurso governamental e a prática política.

Quantas vezes não ouvimos o secretário-geral do PS dizer que o avanço da nossa economia não podia assentar nos baixos salários? No entanto, quando se trata do concreto, o que temos é a pressão para a baixa dos salários reais sob o eufemismo da moderação salarial.
Quantas vezes não ouvimos os membros do Governo falar em justiça social e em solidariedade? No entanto, quando olhamos para a distribuição do Rendimento Nacional, o que vemos é a penalização dos salários ano após ano. O crescimento acelerado das grandes fortunas e acentuação das desigualdades são infelizmente uma realidade, 10% da população portuguesa concentra cerca de metade da riqueza nacional.
Quantas vezes não ouvimos também falar em justiça fiscal? No entanto, em todos os orçamentos deste Governo continuaram a aumentar os benefícios fiscais, no essencial dirigidos às actividades financeiras e especulativas e os assalariados continuaram a pagar o grosso dos impostos. Depois, como se sabe, a reforma fiscal é mais uma promessa que ficará dentro da gaveta...
Nos últimos tempos até temos visto o primeiro-ministro criticar, para estrangeiro ver, a globalização e o liberalismo... É caso para perguntar: mas então o PS não esteve de acordo com a Organização Mundial do Comércio, ou com a total liberdade da circulação de capitais, ou com o Pacto de Estabilidade?

O virtual e o real

Poderíamos multiplicar os exemplos. Há de facto uma grande diferença entre a retórica, entre o marketing político e as medidas concretas que pesam na vida das famílias e dos cidadãos.
Se a Expo ’98 ainda não tivesse encerrado, diríamos que entre a política virtual e os conteúdos reais não só não há qualquer coincidência, como o fosso tem vindo a aumentar. Como estamos em época de vindimas - e más -, creio que a imagem que mais se ajusta à política do Governo é a de muita parra e muito pouca uva...
O Governo esteve de acordo e até louvou o «Pacto de Estabilidade», nunca o contestou, nunca juntou a sua voz à de outros governos quando estes defenderam pelo menos a sua flexibilização.
Agora invoca os compromissos com a União Europeia e os critérios de Maastricht, para justificar uma política neoliberal que se tem traduzido no aumento do trabalho precário e clandestino e na insegurança dos vínculos laborais.
Estamos perante um quadro em que é a própria dignidade dos trabalhadores que está posta em causa. O que se pretende no fundo é liquidar, o mais possível, direitos duramente conquistados para que a exploração e a acumulação se realize sem constrangimentos. É a aplicação do chamado «modelo americano» isto é, a lei da selva.
Vejamos o que aconteceu nos Estados Unidos com a aplicação da famosa lei sobre o trabalho parcial que o Governo PS quer agora introduzir em Portugal.
Só entre 1969 e 1994, o número de trabalhadores a tempo parcial passou nos EUA de 6% para 12,9% da população activa. Este crescimento, que se tem mantido, criou neste país uma nova categoria de pobres, que eles designaram por «pobres que trabalham».
Calcula-se que um terço da população activa dos EUA vive numa situação de pobreza.
É isto que se quer para o nosso país?
Quer juntar-se aos milhares de reformados que vivem com reformas de miséria e aos trabalhadores que foram obrigados a reformarem-se antecipadamente, uma nova camada de trabalhadores, uma «geração 2000» sem direitos, sem segurança e ganhando apenas para a sua sobrevivência?
(...)

A crise

Seria bom que o Governo e os socialistas reflectissem nas consequências das políticas neoliberais e na actual crise.
A teologia da soberania do mercado, do mercado global como o decisor a quem se devem submeter os povos, a absolutização da inflação e das medidas monetaristas, bem como as «tretas» de menos Estado, geraram diversas linhas de fundo que têm caracterizado a evolução da economia mundial:

a) a explosão do capital especulativo (80% das transações financeiras não estão ligadas a transações comerciais nem a investimentos);
b) a multiplicação do emprego precário e o desemprego como um fenómeno estrutural e massivo;
c) a aceleração da concentração e centralização de capitais, com as privatizações, fusões e absorções, substituindo empregos relativamente bem pagos por empregos instáveis e mal remunerados;
d) e, como trinco destas linhas de fundo, a acentuação das desigualdades e a concentração da riqueza em níveis sem precedentes.
O absurdo e a irracionalidade da especulação vai ao ponto de, por mais de uma vez, o anúncio da diminuição do desemprego nos EUA se ter traduzido em significativas quedas bolsistas!
Há muito que a ligação entre a especulação bolsista e a diminuição do número de empregos se tem verificado. Quando por exemplo, o Chemical Bank e o Chase Manhattan Bank anunciaram a sua fusão em 1995, lançando no desemprego 16% dos seus empregados, o valor bolsista destas duas sociedades cresceu 11%!
Em Janeiro de 1996, o anúncio de 40 mil despedimentos feitos pela AT&T provocou um aumento em flecha do valor das acções do gigante americano das telecomunicações, mostrando claramente o divórcio entre a economia financeira e o progresso social.
Mas esta economia de casino, contra os trabalhadores e os povos, e as contradições inerentes ao capitalismo acabam por desembocar em crises, como a que estamos a assistir com graves consequências no domínio da actividade económica geral e com sofrimentos sem conta.
Estamos perante uma crise mundial, que assenta no tipo de crescimento que se tem verificado, com a dominação dos mercados financeiros e da especulação fazendo cada vez mais pressão sobre os direitos e os salários dos trabalhadores.
Calcula-se que a actual crise já provocou 10 milhões de desempregados ou seja, um número correspondente à população de Portugal!
E não é com discursos apaziguadores do(s) Ministro(s) das Finanças, nem com o passe de mágica da descida das taxas de juro que a situação se inverte.
A diminuição das taxas de juro sem o aumento do poder de compra das massas populares, sem a taxação (taxa Tobin) dos capitais especulativos e sem a valorização e dignificação de quem trabalha não passará de um paliativo para que o capital financeiro tome mais um pouco de oxigénio para continuar com a sua acção predadora, comprando a pataco empresas rentáveis nos países financeiramente estrangulados. É aliás significativo que o governo japonês queira agora nacionalizar bancos em dificuldades.
É por isso que consideramos que é cada vez mais necessário um novo rumo para a «construção europeia», privilegiando a convergência das economias reais, o princípio da coesão económica e social dando primazia ao combate ao desemprego e ao nivelamento por cima das conquistas sociais e à redução do horário de trabalho sem perda de salários e de direitos. Pensamos que face a esta crise se está em boa altura para se exigir e mostrar como é necessário renegociar o «Pacto de Estabilidade» e dar uma outra orientação ao Banco Central Europeu.
E defendemos também que no nosso país é necessário e urgente equilibrar a distribuição do rendimento nacional, alargar o mercado interno e defender e valorizar o aparelho produtivo nacional e a produção portuguesa.
E por isso temos exigido e continuaremos a lutar pelo aumento das reformas e das pensões, pelo aumento dos vencimentos dos trabalhadores da Administração Pública, pela diminuição das tarifas da electricidade, pela criação de medidas que venham, já no próximo ano, a atenuar a factura escolar.

(...)

Foi um governo socialista que deixou como triste marca os famigerados contratos a prazo. Agora este governo quer aumentar de três para quatro anos a vigência destes contratos. É uma vergonha!
Nós perguntamos aos socialistas: é com medidas como estas que se ajuda a perspectivar o futuro da juventude? Nós pensamos que não.
Na floresta dos cerca de trinta diplomas, alguns dos quais com medidas que estamos de acordo, escondem-se seis peças essenciais que procuram minar pilares fundamentais do direito ao trabalho. E a primeira, a do trabalho parcial, já está na Assembleia da República para ser submetida à discussão pública.
Com tal medida, o Governo vai pela primeira vez subsidiar o trabalho precário e faculta às empresas, simultaneamente, o acesso a subsídios estatais e a diminuição dos descontos para a Segurança Social.
Permite colocar nalgumas empresas todos os trabalhadores a tempo parcial, com redução do salário, a supressão do subsídio de alimentação e a redução dos subsídios de férias e de Natal! É um mimo, como são um mimo a proposta de alteração à lei das férias submetendo este direito à assiduidade; ou a proposta que altera o conceito de retribuição em que o salário seria desvalorizado; ou as propostas relativas ao regime de trabalho por turnos e ao lay-off.
Até se procura condicionar o direito às férias com a assiduidade, em que conta negativamente as ausências por doença prolongada, por falecimento de um irmão, ou por necessidade de cumprimento de obrigações legais...
São propostas, todas elas, que concedem chorudos benefícios e vantagens para o grande capital, menos receitas para a Segurança Social e maior fragilização e insegurança para os trabalhadores, nomeadamente para os jovens trabalhadores e trabalhadoras.
E tudo isto vindo de um Governo socialista.

A modernidade do PS

Por isso, quando o primeiro-ministro, em discurso solene no dia do encerramento da Expo ’98, lançou um desafio aos portugueses para que o nosso país venha a ser um país tão moderno como os mais modernos, é caso para lhe perguntar qual é a modernidade de entrarmos no próximo século com as mesmas chagas sociais com que os nossos antepassados entraram no século actual.
Qual é a modernidade de oferecer à juventude um futuro de incertezas, de empregos precários e mal pagos, ou a perspectiva do desemprego e da emigração?
Qual é a modernidade de termos de novo meia dúzia de famílias com o seu banco e a sua companhia de seguros, o seu hipermercado e o seu grande meio de comunicação social, lado a lado com milhares e milhares de famílias excluídas de um nível de vida digno e sujeitas a uma vida cada vez mais dura.
Qual é a modernidade de se criar uma nova geração sem direitos e de fragilizar e discriminar ainda mais as mulheres no trabalho, ou qual é a modernidade de termos o poder político cada vez mais submetido, dependente e dominado pelo poder económico?
Qual é a modernidade de termos cada vez mais cidadãos divorciados do país oficial, da intervenção cívica, da participação política, por verem que as suas questões não são debatidas nem resolvidas, por verem que as promessas não são cumpridas?
Não há, de facto, nenhuma modernidade quando vemos que, dos cerca de 1 500 milhares de milhões de dólares que representam no Planeta as transações financeiras, apenas 1% não é de natureza especulativa e é consagrado à criação de novas riquezas.
Não há nenhuma modernidade quando se vê a explosão das riquezas especulativas lado a lado com a espiral das desigualdades, da pobreza e do desemprego; quando a competição é encarada como uma lógica de guerra; quando os Estados se desresponsabilizam das suas funções sociais; quando os custos da solidariedade são considerados pelos grandes senhores da finança insuportáveis e se procura minar e liquidar os principais esquemas de protecção social...
Não há de facto qualquer modernidade quando se vê no «Relatório de Desenvolvimento Humano» de 1998, encomendado pelas Nações Unidas, que na totalidade - e passo a citar - «as nações mais ricas do mundo albergam mais de 100 milhões de pessoas com rendimentos abaixo do nível de pobreza, que mais de 37 milhões estão desempregados, que 100 milhões não têm abrigo e que 200 milhões têm uma expectativa de vida inferior a 60 anos».
Não há demagogia nem retórica social que esconda ou disfarce esta realidade, que tem responsáveis muito concretos e que é a consequência da lei da selva do capitalismo e da sua expressão neoliberal.
Pela nossa parte, tudo faremos para combater no concreto os dogmas do neoliberalismo, as políticas de direita, as políticas de concentração da riqueza.
Ficaram tristemente célebres os pacotes laborais da AD e dos governos do PSD.
Os pacotes laborais do PSD foram derrotados. O deste Governo virá a conta-gotas, para ver se passa e para testar a capacidade de protesto e a extensão da indignação.
O PCP e, estamos certos, o movimento sindical e os trabalhadores em geral não deixarão de dar uma resposta firme, clara e determinada a esta ofensiva. Há condições para derrotar o pacote laboral do PS.
E reafirmo que os portugueses e as portuguesas não estão condenados a terem que estar sujeitos ou a terem apenas de optar entre a política de direita conduzida pela direita ou a política de direita concretizada pelo Governo do PS.
Nós continuamos a intervir e a empenhar os nossos esforços para o desenvolvimento de uma sociedade mais solidária, mais justa, mais humana e uma sociedade sem exploradores e explorados.
(...)»