Revogação das disposições do Código do Trabalho e da sua regulamentação respeitantes à hierarquia das fontes de direito e à negociação colectiva, reposição no direito do trabalho do princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador, garantia do direito à negociação colectiva e impedimento à caducidade dos instrumentos de regulamentação colectiva do trabalho
Intervenção de Odete Santos
7 de Dezembro de 2005

 

 

 

 

 

Sr. Presidente,
Sr. Ministro do Trabalho e da Solidariedade Social,
Sr. Secretário de Estado,
Srs. Deputados:

A «operação Código do Trabalho» foi antecedida, recorde-se, de pronunciamentos do grande patronato, nomeadamente estrangeiro, que ameaçava retirar os investimentos

do País se as leis laborais acusadas de rígidas não fossem flexibilizadas. Só assim, diziam, podia aumentar- se a competitividade e a produtividade; só assim, diziam, seria possível garantir os postos de trabalho.

Num recente debate sobre a negociação colectiva, alguém da bancada da direita interpelou um Deputado do meu grupo parlamentar da seguinte forma: «como é que o senhor sabe se um trabalhador não estará disposto a rever e a renegociar um instrumento de contratação colectiva, desde que isso permita salvaguardar o seu posto de trabalho?»

Numa frase de improviso acabaria por ficar claro que, afinal, não há igualdade das partes na relação laboral.

Nesta «operação Código» ficou claro que a flexibilização, a desregulamentação da legislação laboral, não garantiam o emprego nem aos mais velhos nem aos mais novos, também invocados aqui no anterior debate.

As empresas continuaram a encerrar, a deslocalizar-se, e o desemprego continuou a aumentar. No primeiro trimestre deste ano, depois de introduzidos os índices de correcção à taxa indicada pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), o desemprego atingiu, em percentagem, os dois dígitos (10%); no terceiro trimestre deste ano, segundo o INE, o desemprego aumentou de novo.

E as empresas — de que, aliás, é caso exemplar uma empresa já hoje aqui falada, a Autoeuropa — continuaram a fazer chantagem sobre os trabalhadores, ameaçando-os com o encerramento se houvesse reivindicações salariais.

Se tudo isto se traz à colação é porque estes factos não são despiciendos para se entender que com o Código do Trabalho, e agora com esta proposta de lei, diminuiu-se, e diminui-se, a autonomia olectiva, reduziu-se a liberdade contratual, limitou-se a liberdade sindical.

De que liberdade goza um trabalhador que se vê acossado pelo desemprego, pela ameaça de encerramento da empresa?

O direito à liberdade de contratação colectiva, o direito à liberdade sindical são postos em causa logo pelo actual artigo 4.º do Código do Trabalho. Os autores deste artigo bem poderiam ser condenados pela publicidade enganosa da sua epígrafe: Princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador.

Porém, o que esse artigo permite é que as convenções colectivas de trabalho possam conter disposições menos favoráveis do que as da lei geral, do que as do Código do Trabalho; o que este artigo permite é que, sempre que a lei o estabelecer, os contratos individuais de trabalho possam conter disposições menos favoráveis. E encontramos lá algumas, nas mobilidades.

Contudo, este artigo, que é o artigo base, fundamental, estruturante de um direito de trabalho moderno — e modernidade é alcançar a igualdade e não o triunfo das desigualdades — , não é alterado pelo Governo.

Ora, a sua revogação e substituição por outro era absolutamente urgente, e isso não pode ser desligado da restituição às associações sindicais da liberdade de negociação, da restituição aos trabalhadores do direito à liberdade sindical.

Com que liberdade negoceiam os trabalhadores uma convenção colectiva sabendo que os seus direitos podem ser reduzidos por via convencional? De que liberdade sindical gozam sabendo que as suas associações representativas são alvo de erosão por parte, e por causa, das leis feitas pelo Governo, neste caso governos?

Este Governo não toca no artigo 4.º, e este é um dos factores que retira aos trabalhadores liberdades individuais e colectivas.

De que liberdade negocial gozam os trabalhadores sabendo que há prazos curtos — e nesta proposta de lei ainda são mais curtos do que no Código do Trabalho —, findos os quais a Convenção caduca e nada mais lhes restará senão o núcleo reduzido de direitos que o Governo aceita manter-lhes, aliás, contra o que resulta do acórdão do Tribunal Constitucional que apreciou a constitucionalidade do regime da sobrevigência?

Um núcleo tão restrito que nem acompanha as garantias do trabalhador previstas no artigo 122.º do Código. Se queria alguma disposição negativa, podemos começar pela omissão da alteração do artigo 4.º, podemos continuar aqui e temos mais.

Que liberdade negocial é esta que se vê confrontada com um vácuo legislativo e fica à mercê de um poder discricionário do Ministro do Trabalho e da Solidariedade Social na arbitragem obrigatória? Será isto positivo para os trabalhadores?

Que autonomia colectiva é esta em que os mais jovens deixam de beneficiar da convenção caducada e nem sequer têm direito ao tal núcleo reduzido com que, esmolermente, são contemplados os mais antigos na empresa?

Que autonomia contratual é esta em que uma decisão arbitral pode fixar direitos inferiores aos estabelecidos na anterior convenção colectiva?

Como podem falar em autonomia colectiva quando foi imposta a renegociação forçada de convenções que estavam em vigor, através do artigo 13.º do diploma preambular do Código do Trabalho? Ou quando vêm agora, no artigo 4.º da proposta de lei, restaurar esse defunto e embalsamado artigo 13.º, que há muito deixou de estar em vigor, contemplando, dessa forma, as entidades patronais com uma prenda de Natal que não é, seguramente, do Menino Jesus mas, sim, do lobo mascarado de capuchinho vermelho? Aliás, este artigo 4.º, que restaura o artigo 13.º, é inconstitucional.

O Comité de Peritos da Organização Internacional do Trabalho (OIT) tem inúmeros pareceres, em diversos casos, nos quais se conclui, como já se concluía com o código, que os regimes de caducidade e de arbitragem obrigatória, tal como surgem na proposta de lei, violam não só as Convenções n. os 87 e 98 da OIT como também a Constituição da República Portuguesa, nomeadamente porque violam o direito à negociação colectiva e à liberdade sindical.

Albert Einstein escreveu um dia no jornal New York Times: «O desempregado não sofre somente por estar privado de bens de primeira necessidade. Ele sente-se ainda excluído da comunidade humana. Ele vê recusada a possibilidade de colaborar no bem-estar geral».

Ora, é este, o desemprego, o fantasma que assola o modelo social europeu, que é cada vez menos europeu, menos social e cada vez mais neoliberal.

É esta a antevisão do que poderá ser o Admirável Mundo Novo. Onde ficaram as pomposas declarações do Partido Socialista quanto ao Código do Trabalho? Ou será que estamos perante um novo culto a Jano, a divindade romana de duas caras?