Sobre a Regulamentamentação do Código
do Trabalho
Intervenção de Jerónimo de Sousa
na Assembleia da República
4 de Março 2004
Senhor Presidente
Senhores Membros do Governo
Senhoras e Senhores Deputados
Primeiro tivemos o Código do Trabalho apresentado como documento da sistematização de todo o edifício jurídico-laboral. Agora somos confrontados com uma proposta de regulamentação com quase 500 artigos que não se limita a desenvolver princípios e normas já enunciadas no Código do Trabalho, mas antes, pela sua extensão e conteúdo, configura como que um segundo código. E ainda falta uma outra fase que trata, entre outras matérias, das incapacidades, acidentes de trabalho e doenças profissionais. Como um “mostrengo jurídico” três vezes há-de rondar a Assembleia da República sempre com o objectivo de desvirtuar e fragilizar o direito do trabalho enquanto direito de protecção dos trabalhadores.
Estamos perante um agendamento e um debate friamente pensado e executado, encostado e tapado pela grande questão da despenalização do aborto, aqui ontem relevantemente tratado na Assembleia da República e hoje, logicamente, ainda a concentrar a atenção da comunicação social. Percebe-se agora melhor a posição irredutível e a pressa do Governo em fixar para hoje na ordem do dia a proposta 109/IX.
Não pôde a Comissão de Trabalho e Assuntos Sociais sequer ouvir as organizações dos trabalhadores e associações patronais antes da votação na generalidade. Isto apesar de ali terem chegado quase 2.500 pareceres de diversas organizações sindicais, de comissões de trabalhadores e patronais, reduzindo assim a um mero formalismo um direito consagrado na Constituição da República; aliás entendida por este Governo como um obstáculo, enquanto a sede legislativa Assembleia da República corre o risco de se transformar numa caixa de ressonância da vontade e ditames da maioria PSD-CDS/PP.
Senhor Presidente
Senhores Deputados,
Nesta complexa e emaranhada proposta de 480 artigos onde naturalmente nem tudo é malfeitoria, importa descodificar e sublinhar, ainda que em discussão na generalidade, os aspectos essenciais que comportam os principais objectivos do Governo.
E o primeiro aspecto é o prosseguimento do ataque aos direitos colectivos dos trabalhadores designadamente o direito à acção sindical nas empresas e das comissões de trabalhadores, na linha do que já está expresso no Código de Trabalho em relação ao direito à contratação colectiva e à greve e das comissões de trabalhadores(no que se refere ao direito ao crédito de horas para o exercício das suas funções). O Governo propõe-se agora através do artigo 395º e 396º da proposta regulamentadora criar uma desigualdade entre dirigentes sindicais, ou seja; haveriam dirigentes sindicais de 1ª com crédito de horas atribuído e direito a faltas justificadamente e outros de 2ª sem créditos de horas e com faltas justificadas até ao limite de 30 por ano.
Tal proposta colide com o artigo 55º da Constituição e com a Convenção 87 da OIT sobre a Liberdade Sindical e Protecção do Direito Sindical já que para além da ingerência do Estado na organização das associações sindicais mutila o livre e legítimo exercício das funções dos dirigentes eleitos para as associações sindicais. Para um governo que enche a boca sobre a participação dos sindicatos e dos trabalhadores no desenvolvimento económico e social, fica clara a hipocrisia.
Na mesma linha vai o ataque aos direitos das Comissões de Trabalhadores. Primeiro no Código restringiu-se o crédito de horas, agora na proposta regulamentadora e apesar de tais direitos estarem inseridos no capítulo dos Direitos, Liberdades e Garantias da Constituição sofrem, por um lado, uma redução significativa e, por outro, tenta-se que tais comissões sejam mais de empresas e menos dos e para os trabalhadores, tentando transformar o direito ao controlo de gestão em mera co-responsabilização.
Por falar da Constituição o PCP chama a atenção desta Assembleia e dos restantes órgãos de soberania com poderes constitucionais para as normas inscritas nos artigos 290º a 293º tituladas de “redução de actividade e suspensão do contrato” que constitui matéria nova em relação ao Código do Trabalho. Fazendo um exercício de memória, o PSD-CDS/PP em sede de Comissão de Trabalho e Assuntos Sociais teve em cima da mesa esta proposta durante a discussão do Código. Alertada a maioria para o seu conteúdo inconstitucional, porque na prática queria legalizar uma inconstitucionalidade pondo fim à proibição do lock-out, acharam os deputados da maioria que seria avisado retirar tal proposta.
A não haver previsão dos motivos susceptíveis de fundamentar o encerramento temporário, a não se saber qual a duração deste encerramento temporário (porque se é temporário haveria de ter necessariamente que ter uma duração determinada) nem em que momento se converte em definitivo, porque não determina quais as consequências deste encerramento temporário para os trabalhadores nem que direitos lhes assistem para além do direito à retribuição, porque não determina as obrigações do empregador. O que está inscrito é que o empregador tem legitimidade para encerrar total ou parcialmente a empresa mediante uma comunicação aos trabalhadores, para fixar os motivos, a duração e as consequências do encerramento negando aos trabalhadores qualquer mecanismo de reacção e impedimento contra tal decisão.
Podem-lhe chamar redução de actividade, suspensão do contrato, podem, se quiser chamar-lhe um “pífaro” mas o que é proposto é o lock-out encapotado. Porque é de generalidades que estamos a tratar não desenvolvemos a crítica na especialidade sobre as normas restritivas, regulamentistas e de entrega do poder discricionário ao patronato em matéria de Segurança, Higiene e Saúde no Trabalho e a eleição sobre os representantes dos trabalhadores; sobre a fraude que constitui o agravamento da taxa social única para combater o uso e o abuso dos contratos a prazo, sobre a frustração de finalidade da norma do Código quanto à pluralidade de infracções e à sua aplicação considerando o número de trabalhadores afectados.
Mas com peso aparentemente menor refiram-se dois exemplos que são imagem de marca deste Governo:
Ao introduzir conceitos sobre o esforço físico e psíquico como factores de aferição para cometer e promover desigualdades entre o trabalho do homem e da mulher esta proposta quer fazer-nos recuar – por exemplo – à norma que vigorava nos contratos colectivos antes de Abril de 74 em que as mulheres ganhariam sempre menos 10% do que os homens porque tinham menos força física e porque eram mulheres!
A outra é sobre o estatuto do trabalhador estudante. Estes trabalhadores, estes jovens quantas vezes forçados ao abandono escolar para fazer face à vida, que procuram adquirir saberes para se valorizarem pessoal e profissionalmente são entendidos nesta proposta como um custo e não um investimento, quando se propõe a redução dos factos impeditivos, não imputáveis ao trabalhador, do aproveitamento escolar, a redução de garantia dos direitos e ou regalias por falta de realização de horas de avaliação, a restrição na marcação e gozo de férias por parte do trabalhador estudante.
Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Tem razão o Ministro Bagão Félix quando diz que a Constituição é um obstáculo, que não se pode atender a todas as reivindicações fundamentalistas dos sectores mais ultra-neoliberais na lapidação do edifício jurídico laboral que comporta o direito do trabalho. O Governo, (que já não sabe bem se é do PSD-CDS/PP se do CDS/PP – PSD), quer desmontar peça a peça o que a luta dos trabalhadores, Abril e a Constituição conquistaram e consagraram como componente indissociável do regime democrático, do progresso social e do desenvolvimento económico.
Já fez muito mal. Quer continuar a fazer mal. Até um dia, que não há-de estar muito longínquo! A luta de quem conquistou tais direitos e as forças democráticas que os reconheceram hão-de determinar o futuro!