Interpelação ao Governo centrada na qualidade
do emprego, designadamente no combate à precariedade, na defesa dos salários
e na efectivação dos direitos laborais
Intervenção do Deputado Lino de Carvalho
12 de Abril de 2000
Senhor Presidente,
Senhor Primeiro Ministro,
Senhor Ministro e restantes membros do Governo,
Senhores Deputados,
"Forneço pessoal a entregar em qualquer parte do País,
desde o Norte até ao Sul...A nossa empresa trabalha com pessoal de
nacionalidades Portuguesa, Guiné-Bissau,
Angola, Cabo Verde, Polónia, Bósnia, Ucrânia e Moldávia.
É de informar que o meu pessoal ... trabalha muitas horas, incluindo
sábados, domingos e feriados. Nas horas
extras, sábados, domingos e feriados o preço hora facturado
será sempre o mesmo. Fazemos entrega do pessoal com a máxima
rapidez, dependendo das quantidades
pedidas".
Não, senhor Primeiro-ministro. Não estamos a falar da promoção
de um qualquer produto. Estamos a falar de trabalhadores, de pessoas, que
o Engº Guterres, em tempos,
dizia que para si não eram números. Estamos a citar circulares
enviadas por empresas alugadoras de mão de obra, em Portugal, no ano
da graça de 2000.
Muitos outros exemplos sobre a situação do emprego em Portugal podem ser dados e vão ser dados ao longo desta interpelação.
Mas este exemplo, em si mesmo, ilustra a dimensão dos problemas que
esta interpelação quer suscitar: o emprego concreto que temos,
a qualidade do emprego em
Portugal tanto no que se refere à proliferação das relações
de trabalho baseadas em vinculos precários ou mesmo precarissimos ou
até no trabalho ilegal e clandestino,
como nos baixos níveis salariais como na gritante violação
dos direitos individuais e colectivos em muitas empresas e sectores de actividade.
Vejamos cada um destes grandes temas:
ALASTRAMENTO DA PRECARIEDADE
No nosso País tem-se agravado consideravelmente a precariedade no
emprego. Em 1995, 11% dos trabalhadores assalariados (cerca de 336 mil trabalhadores),
em
Portugal, tinham contratos não permanentes. Hoje essa percentagem está
na ordem dos 19% (mesmo considerando as alterações metodológicas
entretanto introduzidas
pelo INE), correspondente a mais de 650 mil trabalhadores. Um em cada cinco
trabalhadores não tem em Portugal um emprego estável. Os jovens
são as principais
vitimas desta situação. A percentagem de jovens com mais de
15 anos e menos de 25 anos a trabalhar em regime precário, com contratos
não permanentes, de acordo com
os dados oficiais, passou de 37% no final de 1998 para mais de 41% um ano
depois.
E quando o Governo tanto fala na "nova economia" baseada nas novas
tecnologias informáticas e nas telecomunicações é
preciso que se diga tal não é, infelizmente,
sinónimo nem de emprego de qualidade nem de emprego estável.
Basta dizer, por exemplo, que no conjunto das novas empresas que estão
no mercado das
telecomunicações a praticamente totalidade dos trabalhadores,
a maioria dos quais jovens, estão a prestar serviço em regime
de trabalho temporário.
Mas muitos outros exemplos poderiam ser dados, em quase todos os sectores
de actividade, em variadissimas empresas grande parte das quais grupos multinacionais
e
em grandes obras públicas. Aqui deixamos alguns.
Nas grandes superfícies comerciais, hipermercados, grandes supermercados
e sector da distribuição em geral, metade do emprego existente
é constituído por trabalho
precário, havendo empresas onde esse valor chega a mais de 60% e em
que mais de 1/3 é trabalho a tempo parcial.
Em Alqueva, os trabalhadores, que são pagos com base num salário/hora,
para a mesma função, recebem salários diversos consoante
o subempreiteiro para quem
trabalham e consoante a nacionalidade. Os donos da obra, EDIA e Governo, fingem
que não é nada com eles.
Nas grandes obras de construção civil no Distrito de Lisboa,
estima-se que cerca de 80% dos trabalhadores estejam em regime de trabalho
precário. E, em geral, é assim em
todo o sector da construção civil.
Na multinacional Grundig, em Braga, mais de 30% são trabalhadores
precários. Na nova fábrica da Siemens, em Évora, com
cerca de meio milhar de trabalhadores, 90%
estão contratados a prazo.
Entretanto, um outro fenómeno tem-se vindo a multiplicar nos últimos
anos no nosso País: a das empresas de trabalho temporário ou
de aluguer de mão de obra, onde
tudo parece ser permitido. Jovens e trabalhadores imigrantes, designadamente
provenientes dos PALOP's e, em particular no sector da construção
civil, são os mais
atingidos. Hoje já há contratos ao dia, renováveis diariamente;
é a proliferação dos recibos verdes e do falso trabalho
independente, é o trabalho à hora, à peça ou à
tarefa, é
a hiper-exploração.
Em muitos casos existe manifesta violação da legislação.
O que devia ser excepção passou a ser regra. Noutros, a proliferação
do trabalho faz-se à sombra do próprio
quadro legal. Trabalhadores com contratos a termo durante anos a fio satisfazendo
necessidades permanentes que deveriam ser preenchidas por contratos permanentes;
cessação dos contratos a termo na véspera da data limite
da sua vigência para depois serem contratados de novo, a prazo, para
a mesma função, com a mesma entidade
empregadora; trabalhadores efectivos despedidos ou pressionados e chantageados
psicologicamente para rescindirem os contratos reentram depois na mesma empresa
para a mesma função como trabalhadores contratados por empresas
de trabalho temporário, nalguns casos mais extremos, sem recibo de
vencimento nem descontos para
a Segurança Social. E que dizer da própria legislação
que prevê, como uma das razões que justificam legalmente a contratação
a termo certo seja, não a função que vai ser
exercida, mas a condição de jovem à procura de primeiro
emprego ou de desempregado de longa duração!?
Só que estes processos não se passam só no sector privado.
A Administração Pública, que devia dar o exemplo, usa
e abusa, da contratação a termo certo para satisfação
de
necessidades permanentes do Estado, da contratação a recibo
verde, da multiplicação dos contratos trimestrais. Ainda recentemente
o Governo, em vez de resolver esta
situação, como se comprometeu, de proceder ao descongelamento
de vagas, de celebrar os respectivos contratos de provimento, de, em suma
admitir no quadro de efectivos
da Administração Pública todos aqueles que estão
a satisfazer necessidades permanentes aprovou para o Serviço Nacional
de Saúde novas prorrogações de contratos de
trabalho a prazo.
Outro fenómeno é o da multiplicação de processos
de reestruturação empresarial, cisão de uma empresa ou
grupo económico em várias empresas, extinção de
certas
funções na empresa-mãe com transferência para novas
empresas que são criadas com cedência dos trabalhadores de empresa
e de local de trabalho, sem que, muitas
vezes, os seus direitos e garantias, designadamente em matéria de contratação
colectiva, estejam garantidos.
Foi para combater, no plano legislativo, a extrema precariedade e fragilização
dos laços laborais que hoje se vive que o PCP apresentou recentemente,
e no âmbito do
processo preparatório desta interpelação, dois importantes
projectos de lei, um que altera a legislação dos contratos de
trabalho a termo (que entraram no nosso
ordenamento jurídico também pela mão do PS, em 1976);
outro que reforça e garante os direitos dos trabalhadores em caso de
cedência ocasional e de transferência de
empresa.
Por isso, aqui fica o nosso primeiro desafio, Senhor Primeiro-ministro: que,
connosco, se empenhe o Governo no combate à precariedade e à
diminuição visível da
qualidade do emprego. Que, connosco, o PS aprove os projectos de lei que apresentámos.
EFECTIVAÇÃO DOS DIREITOS LABORAIS
Neste contexto, a violação dos direitos individuais e colectivos
dos trabalhadores constitui já hoje, particularmente em certos sectores
e zonas do País, um verdadeiro
escândalo a que urge pôr termo. A Inspecção Geral
do Trabalho tem dificuldades de actuação em tempo útil
não dispondo dos meios suficientes para uma intervenção
eficaz em defesa dos direitos dos trabalhadores. Da parte do Ministério
do Trabalho e do Governo no seu todo, parece haver manifesta falta de vontade
política para que a
IGT cumpra a função para que existe. Os exemplos chegam-nos
todos os dias. Direitos não respeitados, pressões psicológicas,
discriminação - quando não perseguição
com despedimento - de dirigentes sindicais, alta sinistralidade por falta
de condições de segurança o que coloca Portugal, onde
morre, em média, mais de um trabalhador
por dia em acidentes de trabalho na cabeça dos países com o
mais elevado índice nesta matéria; desrespeito pelas próprias
determinações da Inspecção, desconhecimento
por vezes por parte dos Agentes - e até de responsáveis da Inspecção
- da própria legislação que lhes permitiria actuar em
defesa da legalidade.
Num recente comunicado do Sindicato dos Trabalhadores da Construção
Civil e Madeiras do Distrito de Braga, pode ler-se que "95% dos pedidos
de intervenção da IGT
não têm resposta; 90% das respostas da Inspecção
demoram entre 8 meses a mais de um ano; 98% das intervenções
nada detectam porque os agentes nunca falam com os
trabalhadores, limitando-se a falar com o encarregado ou com o patrão;
quanto à mão de obra ilegal a IGT ou não vê ou
faz-se anunciar"
Outro exemplo: na conhecida empresa têxtil Manuel Gonçalves,
em Vila Nova de Famalicão, por exemplo, são exibidos no local
de trabalho filmes sobre o regime de
trabalho em países asiáticos acompanhados de textos e de vozes
onde se convidam os trabalhadores a reflectirem sobre as virtudes da flexibilidade
e da precariedade do
emprego sob pena do futuro da empresa estar ameaçado.
Há, aliás, hoje menos inspectores de trabalho do que havia no início .dos Governos PS.
Por isso, Senhor Ministro aqui fica o nosso segundo desafio: crie as condições,
no plano político, legislativo e de dotação de recursos
humanos e financeiros, para que a
Inspecção actue com eficácia no terreno, para que o que
são necessários agentes com formação e vontade
adequada, que sintam que têm o apoio da tutela.
A democracia, Senhor Primeiro-ministro, Senhor Ministro, não pode ficar à porta das empresas.
DEFESA DOS SALÁRIOS
Esta é uma matéria que volta a estar na ordem do dia.
Desde logo, porque a irresponsável decisão do Governo quanto
ao aumento dos combustíveis e suas consequências na inflação
não pode passar sem que,
simultaneamente, o Governo se disponha a rever os vencimentos dos trabalhadores
da Administração Pública e, por reflexo, de todos os
trabalhadores portugueses. É
inaceitável que o Governo se tivesse disposto a compensar as empresas
de transportes e outros sectores empresariais e, arrogantemente, se recuse,
a actualizar os
vencimentos dos trabalhadores. É bem a caracterização,
também aqui, de quem, para o Governo, tem de suportar a sua política
de aumento das receitas fiscais e
eleitoralista: sempre e sempre os trabalhadores.
Mas a questão é mais vasta. Baixos salários, agravamento
das desigualdades salariais, bloqueamento da contratação colectiva,
encerramento fraudulento de empresas com
milhares de trabalhadores a aguardarem anos pelo recebimento dos seus créditos
para, depois, a mesma empresa, com as mesmas máquinas mas com outro
nome reabrir
uns quilómetros mais à frente; salários em atraso são
uma realidade ou que se mantém ou que tem mostrado, nos últimos
anos tendência para se agravar.
A crescente precariedade das relações laborais só agrava
este panorama, sendo uma causa da pressão sobre os salários,
da saída precoce do mercado de trabalho, das
fortes discriminações salariais.
Aqui fica, pois, o terceiro desafio. Que o Governo assuma a defesa e o crescimento
dos salários e das pensões de reforma como um dos objectivos
prioritários da sua
política laboral e social. Que o Governo aceite aumentar desde já
os vencimentos dos trabalhadores da Administração Pública
como compensação pelo aumento geral
de preços resultante do aumento dos combustíveis.
Aliás, os baixos salários exercem pressão negativa sobre
a produtividade. Só melhores salários e o aumento do poder de
compra dos trabalhadores poderão impulsionar o
mercado interno e por esta via o próprio desenvolvimento da economia
e da qualificação e produtividade do trabalho.
Senhor Presidente,
Contra esta realidade, o Senhor Ministro virá aqui vangloriar-se de
uma diminuição estatística do desemprego. Não
nos furtamos, também a esse debate. O PCP não
partilha a tese do quanto pior melhor. Aumento do emprego e diminuição
do desemprego é, seguramente, uma das causas que são a razão
de ser do Partido Comunista
Português. Mas, sem negar a realidade estatística e sem querer
recordar o que o Engº Guterres afirmava sobre a distância que vai
dos números à realidade social, importa
sublinhar alguns aspectos dessa evolução estatística:
Primeiro, que a variação do emprego nos últimos anos
se tem devido mais à própria conjuntura económica do
que a medidas concretas de políticas orientadas nesse
sentido;
Segundo, que muito do que o Governo alega como sendo diminuição
de desemprego está mascarado atrás das dezenas de milhar - talvez
mais de 40.000 - de
trabalhadores que frequentam acções de formação
sobre acções de formação, POC's sobre POC's, durante
anos a fio.
Terceiro, o facto estranho do emprego crescer com mais intensidade, de acordo
com os dados estatísticos, no grupo etário dos 45 aos 54 anos
o que significa
estarmos perante fenómenos superficiais com base em "biscates"
e trabalho de muito baixa qualidade.
Quarto, o preocupante facto do desemprego entre os jovens licenciados ter
vindo a aumentar cada vez mais, representando hoje cerca de 10% dos desempregados.
Não é raro encontrarmos jovens licenciados a esconder as suas
habilitações para conseguirem um emprego, a terem de se sujeitar
a frequentar estágios não
remunerados, a exercerem actividades correspondentes a níveis de qualificação
muito mais baixos.
Tudo isto expressa a artificialidade de muitos dos números apresentados pelo Governo.
Senhor Presidente,
É toda esta realidade que esteve evidentemente afastada das preocupações
da Cimeira de Lisboa. O Primeiro-ministro quis fazer crer ao País que
por influência decisiva
das preocupações e propostas da Presidência portuguesa
a questão do Emprego seria o tema central desta Cimeira da União
Europeia. Mas o que tivemos foi uma reunião
deslumbrada com a chamada "sociedade da informação"
e com a "nova economia", com a receita milagrosa das novas tecnologias
e com as medidas de apoio à "integração
dos mercados financeiros". O que tivemos foram medidas para acelerar
o processo de liberalização das telecomunicações,
dos transportes e dos serviços financeiros e para
facilitar o domínio do mercado global pelos interesses económicos
transnacionais nele empenhados.
Quanto ao emprego, que era suposto ser o tema central da Cimeira, para além
de declarações de boas intenções, da renovação
de promessas mil vezes repetidas e nunca
cumpridas, de Cimeira para Cimeira, desde os 15 milhões de empregos
até ao ano 2000 no já remoto Livro Branco de Delors até
aos mais recentes Conselhos do
Luxemburgo e de Cardiff, o que fica de concreto é a insistência
na necessidade de flexibilizar ainda mais as relações de trabalho
e de aumentar a chamada "mobilidade do
mercado de trabalho". Agora, quando penetramos nas vestes da cuidadosa
e tecnocrática linguagem usada e ultrapassamos o benchmarking o que
encontramos, de facto,
são as afirmações do Ministro Ferro Rodrigues de que
"o modelo do futuro não é o do emprego para a vida inteira"
ou o dos gurus da nova economia que falam em
"empresas descartáveis por projecto" e em "leilão
de competências e de tempo de trabalho" como as grandes soluções
oferecidas aos trabalhadores. Claro que quando
descemos à economia real, ao local da produção dos bens
materiais, toda esta linguagem cerrada, codificada, para esconder o essencial,
é traduzida com mais brutalidade
por quem manda, de facto, na definição das políticas
sociais europeias. Como se afirmava num recente Congresso Mundial da Economia,
realizado na Alemanha, "neste
novo mundo os trabalhadores são relegados para segundo plano, pois
o capital transformou-se na matéria prima mais cobiçada".
Ou, como dizia, nesse mesmo Congresso,
o Presidente de uma multinacional, no futuro "só os grandes podem
sobreviver" pelo que "o elemento social fica para trás"
ou, como referia ainda mais explicitamente o
Presidente da Airbus "temos de nos despedir dos nossos escrúpulos
morais" ou, como sublinhava o Presidente da Bayer "a situação
melhoraria consideravelmente se os
que têm emprego renunciassem voluntariamente a uma parte das regalias
sociais".
Porque estas é que são as questões reais e os objectivos
concretos que se escondem por detrás dos textos e dos discursos bem
encenados das Cimeiras e dos Conselhos, das
Conferências de Imprensa e das entrevistas ministeriais.
Se dúvidas restassem, aí está a primeira concretização
da Cimeira: a proposta da Comissão Europeia no quadro das chamadas
Grandes Orientações de Política
Económica, para que em Portugal sejam facilitados os despedimentos
e flexibilizados ainda mais os horários de trabalho.
Neste modelo de economia que nos é oferecido uma variável é
sempre imutável: a da concentração e centralização
da riqueza e do capital, a da máxima taxa de lucro e de
exploração dos trabalhadores. A outra, a que varia, a que deve
pagar os custos da competitividade é sempre a do abaixamento do preço
da força de trabalho.
Para esconderem estes objectivos utilizam um vocabulário abundante,
manipulador, anestesiante onde, curiosamente, os que mais se esmeram são
antigos apóstolos do
anti-capitalismo: "adaptação", "empregabilidade",
"rotação de empregos", "mobilidade", são
alguns dos termos com que constantemente nos bombardeiam e se procura
esconder a realidade do desemprego, o inaceitável carácter precário
do emprego, os baixos níveis salariais.
O que está hoje em causa é a de um direito civilizacional conquistado
em duras lutas dos trabalhadores e dos sectores mais progressistas do pensamento
intelectual do
nosso século: a do direito ao emprego com Direitos, condição
de cidadania e dignificação da pessoa humana.
O que está hoje em causa é a do combate contra um modelo de
economia neo-liberal, mesmo que recoberto com muito discurso sobre o social,
em que se anuncia o "fim do
trabalho" para melhor se explorarem os trabalhadores, em que o trabalhador
é considerado uma peça descartável e em que a precarização
das relações laborais e a
segmentação dos processos produtivos e sociais procura fazer
diminuir a capacidade reivindicativa do mundo laboral, torná-la mais
frágil e dependente, diminuir a sua
intervenção nos movimentos sociais e nas suas estruturas de
classe.
Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Estas são as questões concretas, do mundo do trabalho, que
trazemos a debate nesta interpelação. Não bastam discursos
abstractos ou de reflexão académica sobre o
futuro. Não dizem nada conceitos aparentemente aliciantes como o do
"pleno emprego" se eles não servirem para mais do que esconder
a gritante diminuição da
qualidade do emprego e o visível subemprego.
O PCP defende mais emprego mas mais emprego com direitos. Um dos caminhos
é o do País prosseguir a via para a redução do
tempo de trabalho sem diminuição de
salários. Por isso, entregámos também um Projecto de
lei de redução progressiva, até 2003, do tempo de trabalho
para as 35 horas semanais.
O PCP está obviamente de acordo que é preciso melhorar a educação,
formação e a qualificação dos trabalhadores para
melhorar a própria qualidade do emprego, a
estabilidade, o nível de produtividade da economia e o nível
das remunerações. Tudo o que seja feito, com verdade, nesse
sentido tem evidentemente o nosso acordo e
apoio activo.
Como não fechamos os olhos à realidade para as novas e diversificadas
formas de emprego que se estão a multiplicar numa economia com crescente
grau de complexidade
e de integração.
Mas isso não pode ser o cobertor com que se procura esconder e justificar
o intolerável incremento da precariedade nas relações
laborais e da fragilização dos direitos de
quem trabalha.
A mais emprego, a novos empregos, tem de corresponder melhores empregos. Não é isto, infelizmente, o que se passa em Portugal.
Por isso os trabalhadores deram, no passado dia 23 de Março, uma impressionante
resposta de força, com mais de 80 mil trabalhadores na rua a reclamarem
emprego de
qualidade, contra a precariedade. Esta voz o Governo não a pode ignorar.
Por isso, desafiamos finalmente o Governo a reconhecer que existe hoje um
problema grave em Portugal que constitui, ele próprio, um factor de
debilidade da
economia portuguesa: a falta de qualidade dos empregos, com altos níveis
de precariedade, baixos salários, elevada sinistralidade, baixas qualificações,
elevada carga
horária.
Temos connosco os trabalhadores. Assim tenhamos, pelo menos, o interesse desta Assembleia, do Governo e de todos os órgãos de soberania.
Disse.
(...)
Sr. Presidente
Agradeço aos Srs. Deputados Fernando Pésinho e Barbosa de Oliveira
as questões colocadas e vou responder-lhes em conjunto.
Quanto à questão colocada pelo Sr. Deputado Barbosa de Oliveira,
sublinho que partilha das nossas preocupações e, ao contrário
do que disse, o Sr. Ministro confirmou que não temos uma visão
catastrofista ou negra da realidade. Como o Sr. Ministro referiu - e bem!
- o PCP está disponível para apoiar, aprovar e apresentar, como
apresentámos, várias iniciativas legislativas com vista a combater
o problema do desemprego e, sobretudo, a aumentar a qualidade do emprego contra
a precaridade.
No entanto, Srs. Deputados e Sr. Ministro, não podemos aceitar que,
a coberto de elementos estatísticos ou de um discurso muito geral,
se esqueça a realidade do que se passa nas empresas, nos locais de
trabalho, nos sectores de actividade, e o Sr. Deputado, no próprio
sector onde intervém sindicalmente, sabe que é assim.
Quando partimos para esta interpelação, eu próprio procurei
conhecer a realidade para além dos números e dos gabinetes alcatifados,
onde todos nós, porventura por culpa das nossas funções,
passamos agora grande parte do tempo.
Sr. Ministro e Sr. Deputado, as minhas dúvidas desvaneceram-se quanto
ao problema do emprego e da sua qualidade em Portugal, e se têm dúvidas
quanto ao carácter da precaridade crescente das relações
laborais em Portugal, quanto ao que se passa nas empresas, temos aqui dossiers
completos, com relatórios - empresa a empresa, sector a sector, zona
a zona do País -, do que se passa, de facto, no terreno. E é
essa discussão que queremos trazer aqui, hoje, a debate.
Não é por acaso que o Sr. Deputado Barbosa de Oliveira e o Sr.
Ministro fugiram deste debate como «o diabo da cruz», refugiando-se
nas estatísticas do desemprego.
Sr. Ministro, nós não nos furtamos a esse debate, pelo que,
como não vamos ter tempo para muito mais e para não relembrar
os tempos em que o Sr. Ministro Ferro Rodrigues e o Sr. Eng.º António
Guterres falavam, e bem, da distância que ia entre as estatísticas
e a realidade social quando o PSD era governo - porventura, isso não
mudou muito, Sr. Ministro dou-lhe um exemplo concreto: uma das acusações
que fazemos é que, muitas vezes, por trás das estatísticas
estão milhares de trabalhadores, designadamente jovens, que passam
de programas ocupacionais e de formação para programas de formação
sem que isso signifique, de facto, a diminuição do desemprego
ou criação de emprego, mas que não fazem parte das estatísticas.
Sr. Ministro, Sr. Deputado Barbosa de Oliveira, tenho aqui um documento -
não é nosso, é um relatório oficial de avaliação
dos programas operacionais do Instituto de Emprego - que refere que, nos últimos
quatro anos passaram pelos programas operacionais cerca de 100 000 trabalhadores:
22 000 em 1994; 23 000 em 1995; 25 000 em 1996; 26 000 em 1997. E este relatório
oficial diz que este ciclo vicioso dos POC mascara muitas vezes o desemprego,
o que é particularmente frequente na população feminina
e no grupo dos carenciados. No fundo, diz o relatório que mais de 50%
frequentaram já várias actividades ocupacionais e estiveram
várias vezes na mesma entidade.
Em relação ao que daqui resulta para a criação
de emprego, pode-se ler, mais à frente, que «no âmbito
da empregabilidade, os resultados são pouco satisfatórios e,
na grande maioria dos casos, os programas ocupacionais não proporcionam
um emprego».
Podia ler-lhe mais, Sr. Ministro e Srs. Deputados, mas nestes cerca de 100
000 trabalhadores que passam pelos programas ocupacionais está muito
desemprego mascarado ou, enfim, a criação de condições
para situações...
E por que é que, neste conjunto, não se criam condições para que se criem empregos? Por que é que a própria Administração Pública, neste momento, insiste em formas de precarização e de rotação frequente dos mesmos funcionários dentro dos mesmos sectores, para cumprir necessidades permanentes do Estado?
Podia continuar a ler o que vem nesse relatório. Por exemplo, o complexo
Grundig emprega 3900 a 4000 trabalhadores, dos quais 1500 são precários;
a Blaupunkt emprega 1800 trabalhadores, dos quais 600 são precários,
etc., etc.; podia referir dados sobre o emprego precário na distribuição;
dados sobre o emprego precário nas novas empresas de telecomunicações.
Estes exemplos multiplicam-se por todo o lado!
Por isso, Sr. Presidente, e para terminar, queria dizer ao Sr. Ministro que
podemos entrar nesse debate, mas o que queremos aqui debater concretamente
é esta questão, que é uma questão real, que não
pode ser mascarada através de discursos e de números, pois tem
a ver com o problema da precaridade e das relações de trabalho.
Nesse sentido, Sr. Deputado Fernando Pésinho, apresentámos, ainda recentemente, vários projectos de lei para alteração das relações de contratos a prazo, de forma a assegurar os direitos dos trabalhadores e criar novos empregos.
Este é o caminho e é o debate que queremos que seja feito com esta interpelação: um debate sério sobre o problema do emprego que temos em Portugal e sobre como contribuir para aumentar, e não diminuir, os direitos dos trabalhadores, isto é, sobre a criação de emprego com direitos.
(...)
Sr. Deputado Barbosa de Oliveira
Os senhores têm um discurso que se centra basicamente no seguinte:
reconhecem, como não podem deixar de reconhecer, ou dizem que reconhecem
e que nos acompanham em muitas das preocupações que trazemos
a este debate, afirmando que não negam as dificuldades e os problemas
existentes. No entanto, depois, desenvolvem todo um discurso e toda uma prática
que é orientada por dois elementos fundamentais.
O primeiro elemento fundamental é a tese da inevitabilidade, que defendem
dizendo que estamos numa economia globalizada, que o emprego mudou, que as
relações laborais estão a mudar e que temos de criar
as condições, nessa economia globalizada, para aumentar a competitividade
da economia portuguesa. No fundo, este é um discurso orientado para
que os trabalhadores e o mundo laboral aceitem a tese de que esta globalização,
este sistema global de economia, tem de ser construído contra os trabalhadores
e em prejuízo do emprego com direitos.
De uma forma expressa, responsabilizarem os próprios trabalhadores
pela situação de fragilidade das relações laborais,
de diminuição da democracia nas empresas e de violação
dos direitos, típicas do período que hoje atravessamos. Dizem
ser preciso mais formação, mais preparação e mais
qualificação e nunca questionam - o que é chocante, vindo
de uma bancada que se afirma preocupada com os problemas dos trabalhadores,
e vindo de si próprio, que foi, e ainda é, penso eu, dirigente
sindical - o modelo de economia. Nunca questionam uma economia do tipo neoliberal
que quer fazer assentar o aumento da competitividade, isto é, da taxa
de lucro das empresas, à custa do emprego com direitos e dos trabalhadores.
O que se passa é que isto não é apenas um discurso.
É um discurso que se traduz numa prática de tentar criar legislação
que vai ao encontro desta tese. Isso, Sr. Deputado, não pode passar
em claro e é verdadeiramente chocante, porque conduz, não a
um reforço dos direitos de quem trabalha, não à criação
de uma economia ao serviço de quem trabalha, mas, pelo contrário,
a que os trabalhadores fiquem ao serviço dessa economia dominada por
este mundo globalizante dominado pelas transnacionais. Este é um primeiro
elemento que nos choca e sobre o qual não poderíamos deixar
de reflectir.
O segundo elemento que queremos referir é o problema da formação.
Então, vamos a empresas de áreas novas, dedicadas a novas tecnologias,
com técnicos... Sr. Deputado, a Telecel, empresa que da área
das telecomunicações e do apoio técnico e que está
relacionada com a engenharia, tem 400 trabalhadores, 80% dos quais são
trabalhadores precários! A Novis tem 200 trabalhadores, 100% dos quais
são precários!. A parte técnica das empresas de time-sharing
tem 330 trabalhadores, 90% dos quais são precários! A Oni tem
200 trabalhadores, 100% dos quais são precários! Etc., etc,
etc... Estas são empresas da tal nova economia e de sectores altamente
qualificados. O Sr. Deputado Barbosa de Oliveira encontra justificação
para que todos os trabalhadores estejam em regime de trabalho precário?!
Posso dar-lhe ainda o exemplo dos serviços de apoio à toxicodependência.
O Sr. Deputado pensa que é normal, durante anos a fio, 120 psicólogos
estarem a cumprir funções permanentes do Estado, sem as quais
estes serviços não podem funcionar, com contratos de trabalho
precários renováveis trimestralmente?! Acha normal que os programas
ocupacionais estejam a servir para satisfazer necessidades permanentes do
Estado?! Estas são as questões concretas que se ligam a esta
interpelação, e é para estas questões que queremos
respostas!
(...)
Sr. Presidente
Não é bem um pedido de esclarecimento, porque isto não é nada comigo, mas atrevo-me a dizer que, de futuro, o Sr. Deputado Ricardo Gonçalves arrisca-se a que o presidente do Grupo Parlamentar do PS, enfim não o deixe falar!
Depois de todo este discurso que ouvimos e que não merece comentários,
há, obviamente, uma questão de fundo que fica.
«Os trabalhadores?! Não há trabalhadores para trabalhar!
Lá, no meu sector, na minha região, temos empresas que querem
contratar pessoas e que não encontram
Não há trabalhadores!
Eles é que gostam de trabalho clandestino, de trabalho ilegal, de trabalho
mal pago!
» - este é um discurso que já não
se usa! Mas, a propósito desta questão, vou dar-lhe um exemplo
concreto, Sr. Deputado.
Há duas empresas do mesmo sector de actividade, vestuário e
calçado, na mesma localidade, situando-se praticamente uma ao lado
da outra; uma, tem o discurso que o Sr. Deputado acaba de fazer - «Não
temos gente para trabalhar! Queremos contratar pessoas e ninguém nos
aparece para trabalhar!» -, a outra, ao lado, tem uma lista de espera
de 115 trabalhadores que ali querem trabalhar! Sabe qual é a diferença?
A primeira paga abaixo dos mínimos legais, em completa ilegalidade,
enquanto que a segunda cumpre o contrato, paga acima do contrato, valoriza
os seus trabalhadores e, com isso, aumenta a produtividade da própria
empresa e a produtividade da economia nacional. É esta a realidade
para a qual é preciso olhar!