Intervenção do deputado
António Filipe
Serviço Público de Televisão
10 de Novembro de 1999
Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
A situação de crise em que se afunda a Radiotelevisão Portuguesa confronta o Partido Socialista com um dos maiores fracassos da sua governação.
Do Programa do 13º Governo constitucional, debatido nesta Assembleia há quatro anos, constavam propósitos estimáveis de saneamento financeiro da empresa e de um novo quadro de exigência, no qual o serviço público seria entendido como uma filosofia de programação e não como um conjunto disperso de obrigações. Proclamava-se uma particular atenção à produção interna da RTP, com a correspondente utilização dos meios humanos e técnicos, devendo as condições de recurso à produção externa ser disciplinadas através de instrumento apropriado, que assegurasse a sua transparência e obstasse à constituição de situações de privilégio. Esta concepção de serviço público impunha um novo modelo de gestão que garantisse a efectiva independência da RTP face ao poder político.
Passados quatro anos, nem saneamento financeiro, nem filosofia de programação que se entenda, nem aproveitamento de meios humanos e técnicos, nem sequer um mínimo de estabilidade indispensável ao funcionamento de uma qualquer empresa.
A despeito das boas palavras de governantes e directores, a condução dos destinos do serviço público de televisão tem-se traduzido num fiasco monumental, que põe em evidência a total incapacidade do Governo PS para superar a situação de grave crise da RTP que herdou dos Governos do PSD.
É um facto inquestionável que desde a abertura da televisão à iniciativa privada, no início desta década, todos os governos se têm mostrado muito mais preocupados em assegurar a viabilidade dos operadores privados do que em garantir a existência de um serviço público de televisão capaz de responder aos desafios do novo panorama audiovisual.
Enquanto isso, o controlo e manipulação da RTP por parte do poder político atingiu o desaforo, não apenas através do controlo partidário e governamental dos conteúdos informativos, mas também através de uma constante dança de chefias geradora de instabilidade e reveladora de uma total ausência de estratégia para o serviço público que o deixa sujeito a todo o tipo de pressões e manipulações.
A uma situação de crise profunda, provocada por uma lenta mas sistemática destruição do serviço público de televisão, levada a cabo pelos governos do PSD, o governo PS não quis, ou não soube, responder.
Em vez de uma reestruturação séria da RTP, levada a cabo em diálogo com os respectivos trabalhadores e conducente à dignificação da prestação do serviço público, assistiu-se a uma instabilidade de chefias quase permanente, a uma indefinição de uma estratégia coerente para o serviço público de televisão, a tentativas de pseudo-reestruturações sectoriais que escondem mal os objectivos de privatização dos sectores potencialmente mais rentáveis como a produção. O governo PS alterou por diversas vezes os responsáveis pela RTP, mas não alterou praticamente em nada os processos e as concepções de gestão que conduziram à situação de crise da RTP que não cessou de se agravar nestes últimos quatro anos.
No plano financeiro, o governo não só não define uma política de financiamento do serviço público de televisão como nem sequer cumpre atempadamente as obrigações financeiras que assume no respectivo contrato de concessão. O governo que continua imperturbavelmente a falar na necessidade de sanear financeiramente a RTP e de assegurar a sua viabilização, mas a agir como se nada fosse com ele, é o mesmo que tomou a decisão política injustificável de reduzir a publicidade na RTP, retirando-lhe mais uma fonte de receita, em benefício directo e assumido das televisões privadas.
No plano da definição de uma estratégia para a empresa, são anunciadas sucessivas restruturações, que normalmente apontam para a alienação dos sectores mais rentáveis da empresa, como a produção, e, citando um recente comunicado das estruturas representativas dos trabalhadores da RTP, "são encomendados sucessivos estudos e pagos a peso de ouro, sem quaisquer consequências práticas e sem que ninguém seja responsabilizado pelas suas omissões e ineficácia".
Nas palavras dos respectivos trabalhadores, a RTP é hoje "um edifício que se desmorona por dentro". A "situação obscura" que a empresa atravessa "leva a que trabalhadores qualificados e mais valias da empresa estejam a abandoná-la ou em vias disso, pois cada vez é mais difícil cada um argumentar consigo próprio e encontrar justificação para a sua permanência".
Mas também aos olhos da opinião pública a RTP vai perdendo credibilidade, com uma programação de tal modo incoerente que, como se costuma dizer, não agrada "nem a gregos nem a troianos". Em vez de definir uma linha própria de programação e de produção, segue a reboque de estratégias comerciais e celebra contratos de produção externa que se revelam tão ruinosos no plano financeiro como de audiências. Em vez de valorizar a sua própria programação, abdica dela, a favor de estratégias negociais de mérito duvidoso ligadas à televisão codificada, como bem se nota no confrangedor empobrecimento da programação da RTP em matéria desportiva e cinematográfica.
De cada vez que se assiste a uma dança de cadeiras da direcção da RTP, e é com frequência que isso acontece, todo o país assiste a uma lavar de roupa suja sobre as responsabilidades no aprofundamento da crise e a descrições arrepiantes sobre ingerências políticas, sobre lutas pelo poder na empresa, sobre a influência de lobies e de interesses instalados nas tomadas de decisão dentro da RTP. E invariavelmente, sempre que alguém abandona a direcção desta empresa, trata em primeiro lugar de alijar as suas próprias responsabilidades no agravamento da crise imputando sempre a culpas alheias o facto de ter deixado a empresa numa situação pior do que a que encontrou.
A realidade é que, agora pela mão do PS, não pelas palavras mas pelos actos, prossegue a política de destruição do serviço público de televisão, desacreditando-o aos olhos da opinião pública e servindo objectivamente os propósitos de quem sempre teve como objectivo desmantelar a televisão pública para fazer prevalecer sobre os seus escombros o completo domínio da televisão comercial e os interesses económicos que a controlam.
Nós não alinhamos no coro dos que atacam a RTP com o objectivo de acabar com o serviço público de televisão ou de o reduzir a uma função residual. Ter acesso a um serviço público de televisão é um direito de todos os portugueses que a Constituição consagra. O serviço público de televisão não pode dirigir-se apenas à satisfação de necessidades específicas dos emigrantes portugueses, dos residentes nas regiões autónomas, de algumas elites culturais, ou ao cumprimento de algumas obrigações institucionais.
Nós não alinhamos no coro daqueles que choram lágrimas de crocodilo pelo dinheiro dos contribuintes que supostamente é gasto com o serviço público de televisão, mas fingem esquecer que a existência de operadores privados foi viabilizada à custa de vultuosos investimentos públicos a fundo perdido, designadamente na rede de emissores, pagos, evidentemente com o dinheiro dos contribuintes. Não contestamos, como é óbvio, a existência e a legitimidade dos operadores privados de televisão, mas também não alinhamos na estratégia de promover a demolição sistemática do serviço público de televisão como forma de garantir o sucesso empresarial das televisões comerciais e o seu domínio absoluto do panorama audiovisual.
As criticas contundentes que fazemos à política do Governo para a RTP e à actuação de muitos dos seus responsáveis nos últimos anos não visa pôr em causa a existência do serviço público de televisão, mas precisamente o contrário. O que criticamos ao Governo e aos responsáveis da RTP é a falta de uma política que valorize esse serviço aos olhos dos cidadãos e que leva muitos deles a considerar como inglório qualquer investimento público que seja feito na RTP.
O PCP sempre se assumiu como um firme defensor do serviço público de televisão e tem hoje, num momento em que o panorama audiovisual se complexifica de uma forma cada vez mais acelerada, razões acrescidas para o continuar a defender.
Não é uma originalidade nossa. A defesa do serviço público de televisão é actualmente considerada ao nível de muitas instâncias internacionais - designadamente da UNESCO ou do Conselho da Europa - como uma questão decisiva para a defesa da própria democracia. A própria conferência de ministros do Conselho da Europa dedicada à política para os media, realizada em Praga em 1994, considerou que a preservação de televisões de serviço público independentes e financiados de maneira apropriada é indispensável ao funcionamento dos media numa sociedade democrática.
Aliás, a ideia da televisão de serviço público radica na noção de um espaço público onde a vida social e política se desenvolva democraticamente. Numa sociedade democrática, o serviço público de televisão tem um papel distinto das televisões comerciais privadas, na medida em que, enquanto estas encaram os espectadores como consumidores, a televisão pública tem o dever de os encarar como cidadãos. As televisões privadas dirigem-se a um mercado, enquanto a televisão pública se dirige a um público, daqui decorrendo a obrigação de determinar a sua programação mais por critérios sociais do que por imperativos comerciais.
A televisão pública tem, por isso, de ser um espaço da cidadania, livre de intromissões abusivas do poder político e do poder económico, aberto a todas as correntes de opinião, impulsionador do debate sobre os problemas que importam verdadeiramente aos cidadãos e veículo privilegiado da produção e difusão da criatividade e da cultura portuguesa.
O que se exige ao serviço público de televisão é uma informação autónoma de pressões exteriores, deontologicamente rigorosa e isenta, aberta ao confronto de posições e às diferentes problemáticas que afectam e determinam o viver dos portugueses. E uma programação exigente quanto à qualidade do que difunde, valorizadora do património cultural português, dos seus criadores e intérpretes, potenciadora dos meios materiais e humanos de que dispõe, capaz de inovar e de experimentar, aberta ao intercâmbio e ao reforço do relacionamento no interior do espaço geográfico da língua portuguesa.
O serviço público de televisão que hoje temos, não é o que queremos, nem corresponde ao que minimamente lhe é exigido. É fundamental assegurar a todos os cidadãos portugueses um serviço público de televisão digno desse nome, mas isso não passa por meras palavras inscritas no programa do Governo nem por chavões indefinidos tipo "pacto de regime" ou "amplo consenso nacional". A viabilização do serviço público de televisão implica uma firme vontade política e uma prática que, de uma vez por todas, acabe com as indefinições quanto ao futuro da RTP e inverta o caminho para o abismo que esta empresa tem vindo deploravelmente a percorrer.