Sobre o processo da alegada «reforma do sistema político»
Declaração de Bernardino Soares da Comissão
Política do PCP
30 de Abril de 2003
1. As alterações à Lei dos Partidos e à Lei do financiamento dos partidos e das campanhas eleitorais, aprovadas a 24 de Abril, constituem um importante abalo nalguns dos fundamentos da democracia política conquistada pelo povo português há 29 anos atrás e inserem-se na ofensiva global contra direitos liberdades e garantias fundamentais, de natureza política, mas também económica, social e cultural, de que é gritante exemplo a imposição em curso do pacote laboral.
Atrás da ideia de “reforma do sistema político” – que supostamente exigiria grandes alterações de algumas das leis fundamentais para o funcionamento da democracia – procurou-se esconder que as razões do descrédito da vida política e do afastamento de muitos portugueses de uma participação mais activa nela, residem fundamentalmente em questões como o sistemático incumprimento de promessas eleitorais, a ausência de políticas viradas para a resolução dos problemas da população e do país, ou a falta de ética e responsabilidade no exercício de cargos governativos, e não em qualquer desajustamento legislativo relevante.
É significativo que, num momento em que se torna imperioso dar prioridade ao combate à política de direita, à denuncia das suas consequências para os portugueses e para o país, o Partido Socialista se tenha juntado à prioridade dada por PSD e CDS a estas alterações, assim contribuindo também para descentrar as atenções daquelas matérias.
Afigura-se particularmente grave que, sem que tenham existido ao longo dos anos problemas na aplicação da lei actual que o justifiquem, PSD, PS e CDS se decidam a alterar a Lei dos Partidos Políticos, visando a imposição de um modelo único decalcado das suas próprias formas de organização. Trata-se de uma inaceitável ingerência na vida interna dos partidos, abusivamente condicionada pela via legal.
A formatação rígida que se pretende impor em questões como as formas de votação, os procedimentos eleitorais internos ou o universo de órgãos de direcção, a par do retomar de traços de judicialização da vida partidária, constituem uma afronta ao livre prosseguimento da actividade dos partidos, que a Constituição consagra como princípio fundamental.
Este grave retrocesso democrático, não pode deixar indiferente – independentemente da sua opinião própria sobre as formas de organização dos partidos – quem preza os valores da pluralidade de opções políticas e partidárias, da livre associação e intervenção política e do direito de os militantes, por vontade própria associados num partido, poderem decidir soberanamente do seu presente e do seu futuro.
A confirmar os ímpetos de formatação da vida política, aí estão igualmente as normas que visam quer dificultar a formação de novos partidos, aumentando o número de assinaturas necessárias para o efeito, quer impor a sua extinção arbitrária com fundamento na não apresentação de candidaturas à Assembleia da República em duas eleições sucessivas, deixando esta decisão de depender de cada partido, sem que para qualquer delas se vislumbrem justificações compreensíveis.
A organização e funcionamento internos de um partido espelham também em muitos aspectos os princípios políticos e ideológicos que o enformam, e deles não podem ser desligadas. É por isso que consideramos intolerável que a organização e funcionamento de qualquer partido, e designadamente do PCP, pudesse deixar de depender da vontade dos seus militantes, para passar a estar à disposição de uma maioria de deputados de outros partidos.
Não menos graves, e inseridas em idêntica lógica de ingerência e limitação da liberdade de organização e actividade partidária, são as regras relativas ao financiamento dos partidos e das campanhas eleitorais. Avulta desde logo o escandaloso aumento das subvenções estatais aos partidos, em flagrante contradição com as dificuldades que atravessa o país e que sentem a maioria dos portugueses. De facto PSD, PS e CDS puseram-se de acordo quanto a este aumento, mesmo que à última hora os partidos da maioria tenham optado tacticamente por diferir a aplicação concreta da decisão para 2005, enquanto o PS defendia a sua aplicação imediata.
Mas as alterações aprovadas encerram também uma lógica de limitação do esforço legítimo dos partidos para financiarem a sua própria actividade, através das quotas e contribuições dos seus militantes, ou da organização de actividades políticas ou culturais que sejam também fontes de receita, o que constitui ao mesmo tempo uma tentativa de limitação da dinâmica política de cada partido.
Normas como a que pretende impor pagamento titulado de quotas e contribuições que exceda 17830 € por ano (cerca de 3500 contos), a que limita a utilização de fundos provenientes de iniciativas de angariação de fundos com oferta de bens e serviços – caso da Festa do Avante! – ou a que dispõe que as subvenções para as campanhas eleitorais serão diminuídas do valor dos fundos que por si próprio cada partido conseguiu recolher para fazer face às suas despesa (penalizando o louvável esforço de financiamento próprio e premiando a dependência do subsídio estatal), são, para além de absurdas, desprovidas de qualquer justificação.
Mas já em relação a matérias onde de facto deveria haver alterações, como no que toca à moderação de despesas com as campanhas eleitorais, no sentido de baixar os limites autorizados, as alterações agora aprovadas incluem, ao invés, uma escandalosa duplicação da generalidade dos limites para cada eleição e a sua multiplicação por cinco nas eleições regionais.
Nada disto tem a ver com problemas de transparência na obtenção de financiamentos partidários, que pode e deve ser garantida, mas que não exige tal limitação da actividade de cada partido.
Não se trata de exigir, em nenhum dos casos, legislação à medida das nossas legítimas características próprias, mas sim de defender um quadro legal, como o que até aqui pacificamente tem vigorado, em que exista a indispensável margem de liberdade que a Constituição garante aos partidos.
Reafirmamos a nossa profunda convicção de que devem continuar a ser os militantes de cada organização partidária a decidir de forma soberana sobre a organização e funcionamento do partido a que livremente decidiram aderir, direito de que os militantes do PCP não abdicam. E sublinhamos que são inaceitáveis limitações ao desenvolvimento da actividade política de cada partido, bem como enviesados intuitos de privar alguns, e o PCP em particular, dos recursos que, pelo esforço próprio e dinâmica dos seus militantes conseguem, com toda a transparência, angariar.
Por isso, consideramos que, face à gravidade das alterações aprovadas na Assembleia da República, do perigoso caminho de limitação democrática que nelas se trilha e da sua clara contradição com importantes princípios da nossa Constituição, é indispensável a intervenção do Presidente da República, no quadro dos seus poderes constitucionais, designadamente solicitando a apreciação preventiva da constitucionalidade destas leis, no sentido da preservação de um amplo espaço de liberdade de organização e actividade dos partidos e da garantia do direito de opção de cada um, evitando assim graves e indesejáveis situações de perturbação e de confronto no nosso sistema político.
2. Na véspera do 1º de Maio e num quadro de fundadas preocupações face ao rumo da política nacional, o PCP reafirma a sua profunda confiança na luta dos trabalhadores e de todos os democratas que terá seguramente mais uma elevada expressão nas manifestações de amanhã.
Em inteira coerência com linhas essenciais de acção e intervenção que tem vindo a desenvolver, o PCP reafirma nesta ocasião o seu sólido e inabalável compromisso de prosseguir a luta contra uma política que agride os direitos e interesses dos trabalhadores portugueses, que está fazendo alastrar o drama social do desemprego e que procura dinamitar de forma selvagem avanços e conquistas sociais que o povo português obteve com dura luta nos últimos 29 anos.
A Comissão Política do PCP apela a todos os militantes do Partido e aos trabalhadores em geral para que participem nas comemorações convocadas e organizadas pela CGTP - Intersindical Nacional, manifestando a sua vontade inabalável na defesa dos interesses e direitos dos trabalhadores, da paz e da solidariedade com outros trabalhadores e outros povos sujeitos à agressão, à guerra e à exploração capitalista.