Regime de gestão limitada dos órgãos das autarquias locais e seus titulares
Intervenção de António Filipe
22 de Junho de 2005
Sr. Presidente,
Srs. Deputados:
O projecto de lei que o PSD aqui nos apresenta não é propriamente uma novidade nesta Assembleia, na medida em que esta questão foi já trabalhada, inclusivamente, no âmbito da Comissão para a Reforma do Sistema Político, onde até havia um relativo grau de consensualização nesta matéria. Portanto, trata-se de uma iniciativa legislativa que, à partida, merece a nossa boa consideração.
Trata-se, de facto, de algo meritório, pois esta questão do regime de gestão dos órgãos autárquicos após a eleição deve ser resolvida. São conhecidos vários abusos de poder, havendo vários exemplos em que autarcas extravasam as competências que já não deveriam ter. É que não têm legitimidade para isso, na medida em que, feita a eleição e eleitos novos órgãos autárquicos, o período que decorre entre a eleição e a tomada de posse deve ser um período de estrita gestão. Por consequência, os órgãos autárquicos devem abster-se de qualquer outro tipo de acções e de praticar actos que não se circunscrevam na estrita gestão corrente da autarquia.
Importa, pois, que isto fique escrito em letra de lei e que seja claramente regulado, por forma a que esses abusos não venham a ocorrer e não fiquem impunes. Desse ponto de vista, parece-nos que faz todo o sentido adoptar uma legislação deste tipo.
Todavia, no que se refere, designadamente, aos órgãos deliberativos, quer assembleias municipais quer assembleias de freguesia, dado que, põe definição, esses órgãos não têm funções de gestão — podemos conceber um conjunto de acções a praticar pelos órgãos executivos acções de gestão corrente que tenham de ser feitas —, creio que só por excepção é que se poderá encontrar algum acto que possa ser praticado quando estiverem em situação de gestão, porque, em regra, as competências típicas dos órgãos deliberativos não são actos de gestão. Daí que, talvez, se possa ser até mais restritivo relativamente aos órgãos deliberativos.
O projecto de lei do Partido Socialista refere-se a duas matérias. Refere-se ao período que medeia entre a eleição dos órgãos autárquicos e a sua tomada de posse, adoptando uma técnica relativamente diferente mas, creio, conciliável com a que o PSD nos propõe, e refere-se às comissões administrativas. São realidades diferentes, abrangendo um período temporal também diferente. No primeiro caso, estamos a falar de um período de, na pior das hipóteses, de um mês e pouco; no caso das comissões administrativas, estamos a falar de períodos mais alargados, pelo que isto merece um cuidado especial, sendo de admitir que nesse período haja necessidade de praticar alguns actos que devem ser compatibilizados com esta legislação. Não pode condenar-se à paralisia total uma autarquia por um período alargado, designadamente de seis meses, até à realização de eleições, embora tenha de haver muito cuidado, porque, de facto, estas comissões administrativas não têm uma legitimidade democrática plena.
Mas há dois aspectos finais do projecto de lei do Partido Socialista que deveriam merecer uma ponderação especial, sendo um deles a possibilidade de as comissões administrativas poderem deliberar sobre matéria da competência do órgão deliberativo.
Como acabei de dizer, não é fácil encontrar competências do órgão deliberativo que sejam competências de gestão. Daí que isto deveria ser muito circunscrito. Custa um pouco admitir que uma comissão administrativa possa, em qualquer situação, substituir-se a um órgão deliberativo. Se já não custa admitir que se substitua a um órgão executivo — tem mesmo de fazê-lo, porque o órgão executivo deixou de existir —, relativamente às funções de um órgão deliberativo, custa um pouco aceitar que uma comissão administrativa os possa exercer, embora eu aceite que nos possam dar exemplos de que tal se justifica. Mas, aquando da discussão em sede de especialidade, se for demonstrada a justeza dessa possibilidade, aceitá-la-emos de bom grado.
Porém, o que mais nos custa aceitar é que a ratificação dos actos da comissão administrativa seja uma competência governamental, porque creio que isto fere o «coração» da autonomia do poder local e julgo que, mesmo do ponto vista constitucional, é, no mínimo, muito discutível.
É perfeitamente concebível que os actos praticados sejam sujeitos a ratificação dos órgãos autárquicos que forem eleitos em seguida. Agora, quanto a um órgão autárquico, ainda que transitório e ainda que sem uma legitimidade democrática plena, colocar os seus actos sob ratificação governamental, penso que estamos a dar passos atrás, significativos, em matéria de autonomia do poder local.
O Governo não pode, em caso algum, ter poderes de gestão autárquica que vão para além dos poderes de tutela, que estão legalmente estabelecidos, e que é uma mera modalidade de tutela. Caso contrário, julgo que estaríamos a pisar um terreno que a Constituição não permite e chamo a atenção para que, em sede de especialidade, esta questão seja tomada em devida conta.
Quanto ao mais, trata-se de uma matéria que, como comecei por dizer, tem pertinência e, de facto, vale a pena que a Assembleia se pronuncie sobre ela para que possa aprovar uma lei que ponha termo a algumas situações abusivas que, infelizmente, se têm verificado.
(...)
Sr. Presidente,
Srs. Deputados:
Em primeiro lugar, cumpre-me pedir desculpa ao Sr. Deputado José Augusto Carvalho, porque, durante um período da sua intervenção em que estava a referir-se ao teor da minha intervenção, eu estava a atender uma chamada telefónica. Por esta razão, peço desculpa. Não me apercebi que o Sr. Deputado estava a referir-se a mim. Mais uma vez, peço desculpa que não me leve a mal por este facto.
Muito brevemente, gostaria de dizer que o regime de instalação de novos municípios, que o Sr. Deputado deu como exemplo, para nós é um mau exemplo. Na verdade, parece-nos que foi um mau serviço prestado à autonomia do poder local o facto de se ter admitido, como se admitiu, que três municípios, no caso concreto, pudessem ter estado em regime de instalação durante três anos. Pareceu-nos que esta foi uma situação absurda — esperemos que não volte a repetir-se na nossa democracia — e também discordámos dessa solução. De facto, houve três municípios neste país que, durante três anos, estiveram a ser geridos por órgãos não eleitos, sem a fiscalização de órgãos deliberativos e, ainda por cima, sujeitos a uma tutela governamental de que discordamos. E se discordamos relativamente à proposta que é feita, muito mais discordámos relativamente a essa situação que se prolongou durante três longos anos.
É este o reparo que quero deixar.