Intervenção do
deputado Alexandrino Saldanha
A situação da Segurança Social
3 de Março de 1999
Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Importa circunscrever com rigor o problema que motiva esta intervenção legislativa, para ser possível estabelecer exactamente qual é o problema e quais devem ser as formas de o resolver.
A questão tem a ver com a instalação de novos municípios, relações com o Município de origem no período transitório e modelo de funcionamento no período transitório.
Nas suas linhas gerais estas questões estavam devidamente resolvidas na Lei Quadro de Criação de novos Municípios, a Lei nº 142/95, de 18 de Novembro.
Mas, o pressuposto essencial dessa Lei era a realização em prazo curto de eleições, quer para os novos municípios, quer para os municípios de origem. Esta necessidade de eleições em curto prazo corresponde à aplicação de uma regra democrática essencial com expressão constitucional. De facto, é elemento essencial da autonomia do Poder Local a existência de órgãos representativos eleitos, que fazem justamente parte da definição constitucional das autarquias locais que nos termos do nº 2 do artigo 235º da Constituição, são "pessoas colectivas territoriais dotadas de órgãos representativos". Aliás, a Constituição procura reduzir ao mínimo as situações de ausência de órgãos colegiais eleitos, pelo que no artigo 113º, nº 6 se fixa um apertado prazo de 60 dias para a realização de eleições em caso de dissolução do órgão colegial.
No pressuposto desta realização de eleições a curto prazo, a Lei nº 142/85 prevê um período transitório, destinado essencialmente à partilha de patrimónios e à determinação de direitos e responsabilidade, bem como à efectivação do processo de transferência de serviços. Para a concretização desses objectivos a Lei prevê a existência de uma Comissão Instaladora, com poderes para proceder à implantação de estruturas e serviços, e que procederá às acções necessárias à instalação dos órgãos do novo município, assegurando entretanto a gestão corrente, naquilo, subentende-se, é a sua limitada zona de objectivos e competências.
Ora, este princípio de realização de eleições em curto prazo foi subvertido com a alteração da Lei nº 142/85, adoptada durante o processo de criação do Município de Vizela, alteração segundo a qual não se realizam eleições dos novos órgãos municipais e dos órgãos municipais afectados se a Lei de Criação do Novo Município ocorrer no ano seguinte à realização de eleições gerais autárquicas. Foi o que sucedeu com Vizela, Trofa e Odivelas.
O que decorre daqui é que a vida da Comissão Instaladora que nos termos da Lei não ultrapassava um ano, passou a poder prolongar-se por três anos e mais. Isto é, durante todo um prolongadíssimo período de vida, o novo município está privado de órgãos representativos.
O problema consiste assim em dar resposta adequada a esta situação de anomalia democrática, e de constitucionalidade questionável.
Mas a resposta a uma situação de anomalia democrática não pode ser um regime legal com um nível de anomalia ainda maior, uma espécie de aberração democrática, insustentável face aos princípios democráticos e face à Constituição. A proposta que o Governo apresenta configura exactamente esse caso. Por uma razão evidente: a proposta do Governo põem de parte os poderes típicos de uma Comissão Instaladora, tal como aliás a Lei os refere e eu já aqui os descrevi. Põem de parte os princípios de transitoriedade, precaridade, e falta de legitimação democrática e transforma a comissão instaladora num sucedâneo de uma mistura da Câmara e Assembleia Municipal, acumulando todos os poderes da Câmara e ainda poderes da Assembleia Municipal, como os de fixar a taxa de contribuição autárquica, exercer os poderes tributários, aprovar alterações a regulamentos, aprovar o mapa de pessoal, e todas as restantes competências da Assembleia Municipal, bastando que seja invocado relevante interesse público municipal. Ainda por cima neste último caso, a proposta introduz uma figura de ratificação ministerial, inqualificável face à autonomia do poder local. Esta aberração de uma Comissão nomeada pelo Governo com funções de instalação vir a adquirir todos os poderes dos dois órgãos representativos eleitos do município, Câmara e Assembleia, é totalmente inaceitável.
Por isso, a rejeitam frontalmente quer a Associação Nacional de Municípios, quer a Associação Nacional de Freguesias, nos pareceres que enviaram a esta Assembleia. Não há nenhum administrativista que consiga encontrar na expressão "gestão dos assuntos correntes" qualquer âncora para uma plenitude de poderes, que é o que o Governo propõe!
Uma outra norma da proposta do Governo tem merecido uma severa crítica. Trata-se do artigo 13º, que estatui a suspensão de todos os prazos legais até um ano em relação a todos os processos respeitantes a pretensões dos particulares, a contratos ou a pagamentos, cujos documentos devam ser objecto de transferência do ou dos municípios de origem.
O mínimo que se pode dizer desta norma é que ela configura um estado de sítio, onde os direitos dos particulares são postergados. É uma solução violenta que inverte o objectivo da criação dos municípios. Em vez de melhorar a situação dos cidadãos, piora-a. Como diz a ANMP, "qualquer solução deve ter em conta que os particulares não poderão ficar prejudicados com a criação do novo município, já que o objectivo geral que preside sempre à criação de um novo município é o de prosseguir melhor os interesses de duas ou mais comunidades locais".
O quadro de aberrações estende-se à entrada em vigor. A Lei entraria em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, mas outro artigo da proposta diz que retroage os seus efeitos a 15 de Setembro de 1998. As querelas jurídicas serão imensas.
Mas, para além das querelas jurídicas fica a pergunta: que significa esta retroacção ? Que desde essa data as comissões instaladoras puderem exercer poderes de Câmaras e Assembleias ? E os direitos dos particulares onde cabem aqui? E os princípios da legalidade e da boa fé? Andam as Comissões Instaladoras a praticar agora actos para os quais não têm competência com a promessa do Governo de que a ilegalidade seria "coberta" por Lei da Assembleia?
Anoto ainda, nas aberrações da proposta de lei o disposto quanto a pessoal. A proposta não põe em primeiro lugar, como devia, o recurso ao pessoal da autarquia de origem que aceitar a transferência. Se este não é o primeiro princípio, e se o município de origem perde território e população, que se espera que faça do pessoal excedentário que sem aquela transferência forçosamente vai existir?
Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Senhores Membros do Governo,
Sejamos francos: as aberrações desta Proposta de Lei não são um acaso. Elas decorrem do contexto político em que foi feita a aprovação dos novos municípios e que não deu margem para um aprofundamento dos problemas específicos do processo de transição.
A Proposta de Lei agarra nos problemas que existem e agrava-os, com soluções feitas à medida de interesses pouco claros. Ou às vezes claros: o socialista Manuel Varges nomeado pelo Governo para Presidente da Comissão Instaladora do Município de Odivelas já declarou que está ali para se candidatar à futura presidência da Câmara, que ocorrerá daqui a três anos! Digamos que é uma nova versão dos jobs for de boys, onde o job actual é já garantia do job futuro!
Assim, não é possível encarar seriamente os problemas existentes que se vêm agravando. Por exemplo:
1 - As leis de criação dos municípios cessaram os mandatos conferidos pelos eleitores aos presidentes das juntas que integram as assembleias municipais dos municípios de origem. Com que base?
2 - A lei do Orçamento inscreveu a verbas dos Fundos Geral Municipal e de Coesão Municipal para os novos municípios. No caso de Odivelas nem havia Comissão Instaladora , já havia verbas. Mas, não havia transferências de competências. Então? Como ia o município de origem cumprir o seu orçamento que entretanto aprovou na previsão de outras verbas? Como ia pagar os serviços e o pessoal que tem? E a comissão instaladora que ia fazer do dinheiro se não tinha serviços nem competências?
3 - a transmissão de bens, universalidades, por direitos e obrigações, diz a proposta que se faz por, força da lei? Como é isso possível face ao disposto na Lei nº 142/85 que continua em vigor?
Estes e outros exemplos mostram que a oportunidade deste debate parlamentar deve efectivamente ser aproveitada não para tomar mais decisões precipitadas e muito menos para aprovar soluções aberrantes, mas sim para fazer uma reflexão profunda sobre o processo.
Na opinião do PCP as alterações que for necessário fazer à Lei nº 142/85 não devem descaracterizar o que é essencial, que é o carácter transitório, precário e limitado das funções da comissão instaladora.
As preocupações essenciais da Lei devem ser três:
Primeira, garantir às populações uma situação de normalidade e continuidade, com a prestação de serviços ao mesmo nível de qualidade e sem sobressaltos, e com os direitos dos cidadãos reconhecidos sem hiatos nem imposições administrativas;
Segunda, assegurar uma transição tranquila entre o município de origem e o novo município, uma transição baseada nos princípios da cooperação, do entendimento na base de protocolos, do faseamento, e do respeito, entre os municípios e para com os munícipes e também para com os respectivos trabalhadores.
Terceira, garantir o princípio democrático, assegurando a eleição dos órgãos representativos, e que eles e só eles, podem assumir a totalidade das competências dos órgãos municipais, mantendo-se para a comissão instaladora os poderes limitados que por definição lhe devem caber, a que acrescem os poderes, que por forma protocolada, lhe foram sendo transferidos.
Senhores Deputados: o que é preciso agora é pôr a marca definitiva neste processo do respeito pela Constituição e pela Lei, do respeito pelos princípios democráticos, do respeito pelas exigências do bom senso, do respeito pelas regras da cooperação.
São estes os traços caracterizadores do Projecto do PCP. Limitamos as alterações à Lei nº 142/85 àquilo que é efectivamente necessário.
As alterações ao artigo 12º, nº 1, alínea d) e o novo artigo 12º-A procuram melhorar os critérios e processos de transferência dos trabalhadores.
O novo artigo 13º-A procura dar resposta à questão central da assumpção de faseada e por protocolo de novas competências. O diálogo tem que ser entre os órgãos do município de origem e a Comissão Instaladora do novo Município e tem de implicar que à transferência de competências corresponde a transferência de meios financeiros e outros.
Finalmente, o disposto no artigo 4º visa abrir o debate sobre esta questão. A realidade é que durante muito tempo o município de origem vai continuar a tomar decisões que afectam o novo município. A verdade é que os eleitores do novo município continuam representados na Assembleia e na Câmara através dos votos que deram aos eleitos, muitos dos quais passarão até a residentes do novo município. Por que é que só os Presidentes das Juntas vêm o mandato cassado? E para todas as decisões, mesmo as que afectam as respectivas freguesias?
Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Se esperamos e queremos uma transição tranquila, ponderada, cooperante e protocolada; se esperamos e queremos o respeito pelos princípios democráticos; se esperamos e queremos o respeito pelos munícipes e pelos trabalhadores; então teremos que reflectir neste processo.
E não sozinhos. Devemos suscitar a audição e o debate com as seguintes entidades:
- Associação Nacional de Municípios;
- ANAFRE;
- Municípios de Origem (Guimarães, Loures e Santo Tirso, representados pelas Câmaras e Assembleias Municipais);
- Comissões Instaladoras (Odivelas, Trofa e Vizela);
- Todas as Juntas de Freguesia dos novos Municípios.
As sugestões possíveis vão desde a audição individual a um debate com todos, aqui na Assembleia, onde naturalmente também participaria o Governo.
Este processo é urgente. Mas urgência não é precipitação. Rapidez não é atropelo das regras democráticas e eficiência não é sacrifício do diálogo. Nem de bom senso.
É esse o apelo que aqui deixamos. A nossa convicção é que o essencial vai passar-se agora, no debate na especialidade, que deve ser profundo e sem preconceitos.
Para se encontrarem soluções justas.
Disse.