Lei de Bases da Segurança Social
Intervenção do deputado Octávio Teixeira
23 de Setembro de 1998
Senhor Presidente,
Srs. Membros do Governo,
Srs. Deputados,
Uma nova Lei de Bases da Segurança Social constitui uma questão central para a vida de todos os trabalhadores portugueses. Não só para aqueles que hoje são contribuintes/beneficiários do sistema mas também para as novas gerações que se preparam para chegar ao mercado de trabalho. É, pois, uma matéria estruturante que envolve gerações.
Bastaria este facto para sublinhar a necessidade de uma nova Lei de Bases ter suficiente tempo de reflexão e amadurecimento e ser submetida a um largo debate nacional, sem estar dependente de calendários político-eleitorais que jogam com as legítimas aspirações e expectativas de milhões de pensionistas e reformados.
A visão politico-eleitoralista do CDS-PP e a sua ânsia insaciável de permanente protagonismo mediático, não o permitiram, para já, com este agendamento potestativo e extemporâneo.
Mas, não tendo sido dada a possibilidade de o projecto de lei do PCP (tal como o do PSD, aliás) ser submetido a debate público previamente a esta apreciação na generalidade, o Grupo Parlamentar comunista exigirá que essa consulta pública seja realizada entre o debate na generalidade e o debate na especialidade.
Não permitiremos que matéria de incidência laboral da maior relevância para os trabalhadores possa ser objecto de decisão parlamentar definitiva sem a exigível abertura do respectivo debate público.
Senhor Presidente,
Srs. Membros do Governo,
Srs. Deputados,
A reforma da Segurança Social é, fundamentalmente, uma questão de natureza e opções políticas e ideológicas.
O que está em causa neste debate sobre uma nova lei de bases da Segurança Social é o modelo social e o papel do Estado no sistema de protecção social da nossa sociedade. São concepções de índole política, não opções técnicas.
Nele se confrontam as concepções dos que defendem uma filosofia política em que o trabalho é perspectivado apenas como uma fonte de rendimentos, e as daqueles que, como o PCP, o entendem igualmente como um elemento essencial de realização e dignidade pessoais e de integração social.
A concepção dos que entendem que a Segurança Social deve ser essencialmente uma responsabilidade solidariamente partilhada por toda a sociedade, ou a dos que defendem que, para além de um sistema meramente assistencialista toda a protecção social deve ser deixada à exclusiva responsabilidade individual dos cidadãos e à lógica da gestão mercantilista.
É ainda o confronto de opções políticas entre os que centram a reforma da Segurança Social nos seus objectivos próprios e os que sobrepõem a esses objectivos os interesses do mercado financeiro e do lucro privado.
Não ignoramos que se colocam à Segurança Social desafios que exigem uma resposta suficiente no que concerne à sustentação financeira futura do sistema público de Segurança Social. Mas essa resposta é, também ela, basicamente política.
Senhores Deputados
As diferenças politicamente mais substantivas, aliás indissociáveis entre si, entre o Projecto do PCP e os restantes projectos, reconduzem-se a três questões essenciais: a dimensão e responsabilidades do sector público no sistema de Segurança Social; a eventualidade de introdução de tectos contributivos, sejam eles horizontais ou verticais, no regime substitutivo dos rendimentos da actividade profissional (a questão da 2ª pensão obrigatória); e a problemática das fontes e formas de financiamento dos diversos regimes de protecção social que integram o sistema.
Quanto à dimensão e responsabilidades do sector público
De forma inequívoca, e diferentemente de outros, o projecto do PCP prossegue uma reforma da Segurança Social orientada para a redução das desigualdades sociais, para o aumento do nível global de protecção social na sociedade portuguesa e pela concepção de que a protecção dos riscos sociais deve ser, primordial e fundamentalmente uma responsabilidade do Estado e da sociedade no seu conjunto.
Por isso defendemos, sem ambiguidades, o primado da responsabilidade do sistema público e o desenvolvimento da sua universalidade em todas as eventualidades. Só a responsabilidade pública garante a unidade de um sistema de Segurança Social mais preparado para responder aos desafios e necessidades de hoje e do futuro. E só um sistema público pode garantir uma efectiva e sustentada protecção social dos cidadãos, porque não está sujeita à lógica dos interesses financeiros privados das Seguradoras e das Sociedades Gestoras de Fundos de Pensões, nem dependente da taxa de rentabilidade obtida nos mercados bolsistas e na especulação financeira.
Concomitantemente, recusamos as orientações dos projectos do PSD e do PP, e da própria proposta do Governo, que visam reduzir a dimensão do sistema público em benefício da expansão dos regimes privados, seja através da imposição de tectos contributivos com inscrição obrigatória em regimes complementares, seja pela possibilidade de redução de contribuições para os regimes públicos quando existem contribuições para regimes privados.
O PCP não enjeita a existência de um regime de prestações complementares, desde que seja de subscrição voluntária e de prestações definidas e sem estar sustentado em nenhum tecto nas contribuições obrigatórias.
Como escreveu o chamado grupo minoritário da Comissão do Livro Branco, "uma coisa é o encorajamento dos cidadãos a tomarem disposições complementares em matéria de protecção nos riscos sociais, outra coisa é tal encorajamento levar à criação de diversos níveis de protecção social e ao enfraquecimento do sistema já existente".
Quanto aos tectos contributivos
A imposição da chamada 2ª pensão (obrigatória), como é explicitamente assumida nos projectos do PSD e do PP e, de uma forma talvez mais encapotada, na proposta do Governo, traduzir-se-ia numa fragilização das receitas da Segurança Social pública, abriria a porta à privatização da Segurança Social e ajudaria a agravar o fosso entre os rendimentos de reforma dos trabalhadores melhor remunerados e com emprego regular e os restantes.
O modelo da 2ª pensão não é um instrumento de política social, antes um instrumento económico para satisfação de interesses das seguradoras e do mercado de capitais.
Mas a introdução no sistema de um tecto contributivo e da 2ª pensão obrigatória, questão central da reforma em debate, exige mais alguns comentários.
Em primeiro lugar, é estranho que o Governo persista nesta orientação, no momento em que a nível mundial está curso uma grave crise financeira de dimensão e consequências ainda não totalmente definidas, no momento em que o Primeiro-Ministro e outras figuras gradas do PS aparecem a público a verberarem a liberalização selvagem dos mercados financeiros. Estranho por que é sabido que os múltiplos fundos de pensões e aparentados são dos principais responsáveis pela permanente especulação nos mercados financeiros.
Em segundo lugar, a própria experiência portuguesa do que se passa com as indemnizações de miséria que resultam para os sinistrados no domínio do regime de seguro privado dos acidentes de trabalho, deveria, só por si, ser fonte de profunda reflexão por parte do Governo.
Por último, importa reafirmar que o próprio Livro Branco não suporta a tese da 2ª pensão obrigatória, ao concluir que "o plafonamento das contribuições constituirá sobretudo uma medida uma medida curativa com resultados pouco visíveis no reequilibro financeiro do sistema, já que não só mantém a perspectiva de ruptura financeira do sistema, como poderá criar ainda dificuldades financeiras adicionais no médio prazo, apresentando, todavia ganhos líquidos no longo prazo".
E que prazos são estes?
De acordo com o estudo elaborado pelo Centro de Investigação de Economia Financeira, do Instituo Superior de Economia de Lisboa, para a Comissão do Livro Branco, o "plafonamento antecipa em 5 anos a data da ruptura financeira do regime geral dos trabalhadores por conta de outrém (...) e determina que o saldo total da Segurança Social assuma sempre valores negativos ao longo de todo o período estudado", isto é, até ao ano 2050!
Porquê, então, a persistência na ideia dos limites contributivos? Para agravar as perspectivas de insustentabilidade financeira do sistema?
E chegamos à questão fulcral da sustentação financeira do sistema público de Segurança Social.
A resposta aos desafios que se colocam à Segurança Social não pode encontrar-se numa deriva neoliberal de regressão social, mas antes e apenas numa reformulação do seu modelo de financiamento, conferindo clareza e coerência ao financiamento dos diferentes regimes de segurança social, promovendo uma menor penalização do factor trabalho e uma repartição mais equitativa das cargas contributivas para o sistema.
No quadro destas orientações, o projecto do PCP faz uma clara destrinça dos regimes que devem ser financiados pela solidariedade nacional através dos impostos, isto é, pelo Orçamento do Estado, e o que deve ser financiado pela solidariedade de base profissional, isto é pelas contribuições dos trabalhadores e das entidades patronais.
Assim, e designadamente, os regimes não contributivos, isto é, os regimes especial e transitório dos trabalhadores rurais, os complementos sociais, o rendimento mínimo garantido, a acção social e as medidas inseridas em políticas activas de emprego e de formação profissional, devem ser financiados pelo Orçamento do Estado. O qual deverá financiar igualmente, embora de forma progressiva, a parcela não contributiva das pensões mínimas do regime geral.
As prestações familiares e o subsídio social de desemprego deverão ter um financiamento partilhado por contribuições dos trabalhadores e empresas do regime geral dos trabalhadores por conta de outrém e pelo Orçamento do Estado.
Por sua vez, os regimes dos trabalhadores independentes e do seguro social voluntário serão suportados pelas contribuições dos respectivos beneficiários.
Enfim, o regime geral dos trabalhadores por conta de outrém será financiado pelas contribuições dos trabalhadores e das respectivas entidades patronais.
Para além desta clarificação e adequação, o PCP propõe novas fontes de financiamento para a Segurança Social.
É evidente que um sistema de financiamento baseado quase exclusivamente em contribuições sobre os salários tende a esgotar-se a médio prazo, para além de não estimular a criação de emprego e de gerar desigualdades entre empresas.
Por isso propomos a introdução gradual de um sistema de contribuições patronais complementar do actual, assente no VAB das empresas a partir de determinado volume de negócios.
Este modelo inovatório, garante a sustentabilidade financeira do regime geral a longo prazo e estabelece algum equilíbrio entre as responsabilidades sociais das empresas de mão-de-obra intensiva e as empresas de capital intensivo. Progressivamente, e à medida que o modelo se for consolidando, pode perspectivar-se a redução da taxa social única sobre a massa salarial, salvaguardando sempre a sustentabilidade financeira da Segurança Social, assim se beneficiando o aumento do emprego e as PMEs.
Paralelamente propomos a criação de uma taxa a aplicar sobre as operações financeiras da Bolsa de Valores (de muitos milhares de milhões de contos anuais) que actualmente escapam a qualquer tributação, e cuja receita reverteria para reforçar a sustentabilidade global do sistema público de Segurança Social.
Por esta via, com as opções e orientações inscritas no projecto do PCP, não temos a menor dúvida de que é possível assegurar a sustentabilidade futura da Segurança Social e, paralelamente, consolidar no progresso o direito à protecção social dos trabalhadores e de todos os cidadãos.
Senhor Presidente
Senhor Ministro
Senhores Deputados
Sendo estas as questões centrais que confrontam claramente o projecto do PCP com os do Governo e os dos PSD e PP, outras orientações importantes do nosso projecto merecem ser relevadas num debate na generalidade.
Desde logo, a consagração na lei de bases de que o critério básico e fundamental para a determinação do montante das pensões de invalidez e velhice do regime geral é o nível das remunerações sobre que incidem as contribuições e o período de contribuição.
Por outro lado, o princípio de que as pensões de velhice e invalidez do regime geral não poderão ser inferiores a um valor mínimo determinado de acordo com a carreira contributiva, com referência ao valor líquido do salário mínimo nacional para uma carreira contributiva completa, e objecto de actualização anual.
Igualmente propomos a consagração na lei de bases que, no prazo de um ano, seja estabelecido na lei um plano plurianual de amortização da dívida do Estado à Segurança Social, cujos valores devem ser afectos ao respectivo Fundo de Estabilização Financeira. Amortizações que, juntamente com os saldos dos regimes contributivos, uma parcela anual das contribuições e outras receitas, devem ser geridas pelo Fundo em regime de capitalização com vista a contribuir para garantir a sustentabilidade financeira do sistema.
Finalmente, que no mesmo prazo seja legalmente estabelecido o processo de integração da protecção por acidentes de trabalho nos regimes de Segurança Social, sem prejuízo dos direitos adquiridos.
Sr. Presidente,
Srs. Deputados,
Eis as questões centrais do nosso Projecto de Lei, que garantem a sustentabilidade futura do sistema e a melhoria sensível das prestações e reformas, sem descaracterizar o sistema ou entregá-lo á voracidade dos mercados de capitais.
O PCP entende que todos têm direito á segurança social pública e que os princípios constitucionais devem estar vertidos na Lei de bases sem entorses nem portas abertas á sua descaracterização e fragilização.
Esta é verdadeiramente uma proposta de esquerda, inovadora e garante do Sistema Público, sem impedir, entretanto, o aparecimento ou desenvolvimento de sistemas complementares desde que de base voluntária e sem constrangimentos para a Segurança Social pública. Lamentamos que, na sua proposta de lei, o Governo não vá pelo mesmo caminho.
Sr. Presidente,
Srs. Deputados,
Estaria tentado a dizer que com a apresentação que acabei de fazer das principais orientações e opções políticas do projecto do PCP está feita, no essencial e por exclusão de partes, a análise dos outros projectos em presença.
Contudo, sobre eles, permito-me avançar ainda com os seguintes sublinhados.
Em primeiro lugar, o PCP distingue claramente os conteúdos dos projectos do PP e do PSD e a proposta do Governo.
As orientações essenciais dos projectos do PSD e do PP, assentes, aliás e logicamente, numa mesma matriz de neoliberalismo radical, são politicamente inaceitáveis pelo PCP.
Também a proposta do Governo merece da nossa parte fortes discordâncias, nomeadamente quanto à abertura aos tectos contributivos e à 2ª pensão obrigatória.
Os projectos do PP e do PSD apresentam como orientações caracterizadoras essenciais a redução imediata do sistema público de segurança social e a privatização tendencial da Segurança Social, atribuindo aos sistemas complementares privados uma natureza alternativa, mesmo substitutiva, do sistema público.
O PP não se satisfaz com a introdução de um tecto contributivo horizontal, isto é, a partir de determinado valor. O PP, como o PSD, exige a possibilidade dos contribuintes/beneficiários abandonarem por completo o sistema público.
A nova AD pretende instituir um sistema concorrencial, como se a protecção social dos cidadãos pudesse e devesse ser equiparada a uma qualquer mercadoria.
Aliás, o PSD, no seu projecto, mostra ter consciência dos graves riscos daí decorrentes. Por isso, não tem pejo em propor que os lucros resultantes da gestão das contribuições dos trabalhadores para o sistema privado serão apropriados pelas Seguradoras e pelas Sociedades Gestoras dos Fundos de Pensões, mas o pagamento futuro das reformas é da responsabilidade última do Estado! É a filosofia do lucro privado, prejuízo público!
Quanto à proposta de lei do Governo, a primeira e grande oposição que lhe fazemos tem a ver, como já referi, com o tecto contributivo. A combinação dos artigos 50ª, nº3 com o nº2 do art. 84º parece mesmo apontar, não para a mera possibilidade de instituição mas para a sua efectiva concretização.
Para além deste aspecto central, outras orientações da proposta de lei - por acção ou omissão - merecem o nosso desacordo. Desde logo a selectividade de prestações no âmbito do regime contributivo (nº2 do art. 45º) é para nós totalmente incompreensível. A determinação destas prestações sociais não pode ter outros bases que o montante das remunerações e o período de contribuição!
Mas também a tendência sistemática para a utilização do sistema em favorecer das contribuições das entidades empregadoras, baixando taxas e isentando;
ambiguidades e omissões no sistema de financiamento, não definindo o Governo quem irá pagar a "contribuição de solidariedade"(seria mais uma contribuição a sobrecarregar os trabalhadores que já pagam a taxa social única?);
ausência de referência à introdução de novas fontes de financiamento que contribuam para que o sistema não seja desincentivador da criação de emprego;
total omissão de um compromisso quanto ao pagamento das dívidas do Estado, portas abertas à descaracterização do sistema público e ao reforço das componentes assistencialistas e esvaziamento do princípio da participação.
Sr. Presidente,
Srs. Membros do Governo,
Srs. Deputados,
Terminamos como começámos. Estamos perante uma questão central da vida de todos os portugueses, em particular, dos trabalhadores.
Por isso ela não pode ser tratada de ânimo leve nem com decisões apressadas e insuficientemente ponderadas.
Pela nossa parte, queremos que os projectos que ainda o não foram, designadamente o do PCP, sejam sujeitos a debate público. Mas mais. Entendemos que em sede de especialidade, deverá haver a maior abertura para audições e debate com especialistas e instituições mais directamente ligadas à problemática da Segurança Social, e em particular com as associações sindicais representantes dos trabalhadores que para ela contribuem e dela devem beneficiar.
E queremos desde já sublinhar que uma reforma da Segurança Social que não seja articulada com uma cada vez mais urgente reforma fiscal, será, no mínimo, uma reforma frustrada.
Embora tenhamos deixado clara a nossa frontal oposição aos outros projectos e à própria proposta do Governo, o Grupo Parlamentar do PCP está disponível para, numa base de consensual reciprocidade, todos os projectos e a proposta de lei serem viabilizadas na votação generalidade. Não se trata da concessão do benefício da dúvida, mas sim de possibilitar o debate plural, alargado e profundo que a matéria exige.
O PCP entra neste debate com uma posição e um projecto sério no quadro de uma opção que valoriza o sistema público da Segurança Social, a sustentabilidade financeira do sistema, a solidariedade entre gerações, e que não abdica da perspectiva do dever solidário que a sociedade e o Estado têm de garantir um nível de vida digno a quem trabalhou e descontou toda a sua vida, a quem deu ao País - e ao capital - o melhor do seu esforço e da sua força de trabalho.
É esta a nossa perspectiva. Continuará a ser esse o nosso combate.
Disse.