Interpelação do PCP centrada nas questões
da Segurança Social e da sua reforma
Intervenção do deputado Odete Santos
27 de Maio de 1998
Senhor Presidente
senhor Primeiro Ministro
Senhor Ministro do Trabalho e da Solidariedade
Senhores Deputados
Portugal apresenta uma alta taxa de sinistralidade laboral.
Entre 1990 e 1994, o número anual de acidentes de trabalho variou entre 234.000
e 305.000. Número que peca por defeito. Na verdade nele não estão incluídos
sectores como o da Administração Pública. Neles não estão incluídos os trabalhadores
não cobertos pela protecção no infortúnio laboral, apesar de o seguro ser obrigatório.
Em 1995, segundo as Estatísticas do Ministério da Qualificação e Emprego, só
no Continente, e sem contar também com os acidentes de trabalho dos subscritores
da Caixa Geral de Aposentações, houve 204.273 acidentes de trabalho, 232 dos
quais mortais.
Na década de 80, segundo as Estatísticas do Ministério da Justiça, registou-se
uma média anual de 700 mortes em consequência dos acidentes de trabalho , média
que subiu para 820 na corrente década de 1990.
Segundo revela o documento " Uma visão solidária da Reforma da Segurança Social
", as vítimas mortais desde o início da década de 80, são cerca de 20.000.
Segundo um inquérito feito pelo Gabinete de Documentação e Direito Comparado
da Procuradoria geral da República em 404 empresas compreendendo empresas dos
sectores da construção civil, agricultura, comércio retalhista, transportes,
materiais eléctricos e indústria extractiva, houve nas mesmas 440 acidentes
de trabalho, dos quais 373 mortais, 53 graves e 14 sem gravidade.
Trata-se de um retrato penoso de sofrimento, de angústia, de desespero.
Como é possível que os trabalhadores sejam tratados de forma tão brutal, que
à própria prevenção se substitui o cálculo numérico do que se amealha à custa
do desprezo pela vida, pelo direito à vida de quem trabalha, e da sua família.
Inúmeras vezes denunciámos nesta Assembleia, e a última vez tal denúncia aconteceu
durante o debate da proposta de Lei do Governo sobre reparação dos acidentes
de trabalho, em Julho de 1997, que não havia uma política consequente de prevenção
dos riscos profissionais.
Inúmeras vezes chamámos a atenção para as pensões degradadas recebidas pelos
acidentados do trabalho e pelas vítimas de doenças profissionais.
Repetimos até à exaustão, que enquanto fosse mais barato reparar do que prevenir
o infortúnio, continuaríamos a apresentar cifras que nos envergonham relativamente
à sinistralidade laboral.
Conseguimos mesmo a aprovação de 2 Projectos de Lei na generalidade, que apesar
de serem apenas um primeiro passo, foram uma luz ao fundo do túnel para os trabalhadores
tratados por uma legislação caduca, como uma máquina de ganho, numa visão taylorista
do trabalho.
O Governo viria meter entraves à aprovação na especialidade, alertado que foi
pelos protestos das seguradoras privadas, que num assomo de altruísmo, continuaram
a reclamar a manutenção do ramo acidentes de trabalho sob a sua alçada, apesar
de invocarem prejuízos decorrentes da gestão corrente dos seguros. Nunca se
viu altruísmo tamanho de espantar por parte de quem cedo alijou responsabilidades
na reparação das doenças profissionais, devido sobretudo à silicose, acedendo
facilmente a que tal reparação passasse para a Segurança Social. Tal aconteceu
em 1962 com a criação da caixa Nacional de Seguros das Doenças Profissionais
(transformada hoje no Centro Nacional de Protecção dos Riscos Profissionais).
Na verdade, e apesar de a concorrência entre Seguradoras ter determinado taxas
baixas nos prémios de seguros, a partir das quais as seguradoras alegavam não
poder suportar aumentos nas pensões e indemnizações, estas lucram milhões com
o ramo acidentes de trabalho. Em 1993 este ramo representava 13,4% do total
da actividade seguradora e perto de 20% dos seguros não - vida. Foi a protecção
dos interesses das seguradoras que levou o Governo a apresentar uma proposta
de Lei, hoje transformada em lei, cujos aspectos negativos sobrelevam em muito
os aspectos positivos.
A Lei era em muitas das situações, um cheque em branco, que o Governo ainda
não preencheu.
A Lei está dependente , para entrar em vigor, de 17 regulamentações. Cerca de
1 ano passado após a publicação do diploma, ainda não se conhece a regulamentação.
A qual parece estar a conhecer dificuldades pois que com o que as seguradoras
pretendem, ficará ainda mais patente o recuo das soluções, no final do século
XX, século que contou com espantosas inovações tecnológicas, de que uma meia
dúzia se querem apoderar, furtando-as aos trabalhadoras.
A lei não prevê a actualização das pensões degradadas. A lei não prevê a actualização
anual de pensões o direito a 30%, com remissões de pensões segundo tabelas desconhecidas,
mas que, no interesse das seguradoras, desejosas de se libertarem das reservas
matemáticas destas pensões, não deverão ser grande coisa.
E sobretudo, a lei esquece que a protecção social não pode conseguir-se com
a manutenção do ramo do infortúnio laboral nas seguradoras privadas.
A Lei nada diz sobre o momento em que a reparação dos acidentes de trabalho
passará para a Segurança Social. Ignorando a Carta Social Europeia. Fazendo
por esquecer que nesta matéria, Portugal se encontra isolado na União Europeia.
Ignorando que o Comité de Peritos do Conselho da Europa, encarregado de acompanhar
a aplicação daquela Carta, considerou, referindo-se a Portugal " que a reparação
dos acidentes de trabalho pelo empregador deverá ser integrado no regime de
segurança social " Só dessa forma, aliás, poderão os sinistrados do trabalho
ser considerados pela Lei, como um homem social, cujos danos terão de ser ressarcidos
na totalidade.
E tal não é possível, mantendo nas seguradoras que vivem do lucro, mesmo que
à custa de um ramo de seguro tinto de sangue, a reparação dos acidentes de trabalho.
Cedo, aliás, se pôde prefigurar, que o Governo queria esquecer nesta matéria
a Carta Social Europeia, e o aggiornamento pela Europa.
Na verdade, com a publicação do Decreto-Lei 35/96, pudemos verificar que o Governo
reservava apenas para a segurança social, apesar do que a tal respeito prescreve
a Lei de Bases da Segurança Social - a Lei 28/84, a reparação das doenças profissionais.
Excluindo a reparação dos acidentes de trabalho. O Lobby segurador funcionava.
O lobby funcionou contra os direitos mais elementares de quem trabalha.
E até onde irão as cedências do Governo? Será que as Seguradoras conseguirão
obter a gestão, que reclamam, da fusão do Fundo de Garantia e Actualização de
Pensões, com défices do sector privado financiados pelo orçamento do Estado,
da fusão deste Fundo com o Fundo de Actualização de Pensões, para assim poderem,
elas, seguradoras, gerir uma parte do orçamento do Estado?
De cedência em cedência, o que se cede é de facto o direito dos trabalhadores
à saúde, higiene e segurança no trabalho.
O negro panorama em matéria de sinistralidade laboral, indica-nos que não se
fiscaliza o cumprimento da legislação que protege os trabalhadores.
E há mesmo casos escandalosos. Como os casos de tendinites em várias empresas,
entre os quais se destaca o caso da Ford Electrónica. Prometeu-se aos trabalhadores
um estudo. Sabia-se que o sistema de laboração da empresa causava aquelas doenças
pois já o mesmo acontecera no Brasil.
Mas tudo continua na mesma.
Afectados estão centenas de trabalhadores com destaque para jovens mulheres,
definitivamente incapacitadas para muitas das tarefas da sua vida familiar e
profissional. Será possível fazer descer o Governo do seu pedestal europeísta,
para olhar para estas mulheres que têm direito à qualidade de vida?
O Governo terá presente que, segundo um inquérito do Secretariado Nacional de
Reabilitação, existe no país um total de deficiências superior a um milhão?
Que são 9,2% de pessoas com deficiências na população total? O Governo terá
presente que, segundo esse inquérito apenas 279.000 beneficiam de reabilitação?
E o que vai fazer o Governo?
Senhor Presidente
Senhor Primeiro Ministro
Senhor Ministro do Trabalho e da Solidariedade
Senhores Deputados
Porque em matéria de acidentes de trabalho se continua a raciocinar apenas como
se se tratasse de uma questão de seguro; porque as vistas curtas fazem esquecer
o que se perde do precioso capital humano, convém recordar o que o sociólogo
Pierre Jaccard escreveu na sua História Social do Trabalho:
"Há invenção, descoberta, crescimento económico e progresso social quando o
trabalhador, manual ou intelectual, é dignificado; mas a ruína está próxima
quando o trabalhador é menosprezado".
Disse.