Interpelação do PCP centrada nas questões da Segurança Social e da sua reforma
Intervenção do deputado Lino de Carvalho
27 de Maio de 1998

 

Senhor Presidente,
Senhor Primeiro Ministro
Senhores Membros do Governo
Senhores Deputados,

"A Segurança Social encontra-se no centro de um debate político e ideológico de crucial importância para o futuro da nossa sociedade", afirmava o PCP nas conclusões do seu Encontro Nacional para uma Reforma Democrática da Segurança Social, em Junho de 1996. Aquela afirmação mantém hoje plena e acrescida actualidade.

Esta interpelação tem seguramente o mérito de trazer para o debate parlamentar, uma questão central para a vida de todos os portugueses. Todos reclamam que a Segurança Social Pública cumpra os seus objectivos constitucionais.

Expectativa que é tanto mais legítima quanto a segurança social constitui, sem dúvida, um património construído pelos trabalhadores sobre quem recaiu (e recai) quase exclusivamente o esforço de solidariedade.

Expectativa, contudo, que não é confirmada pela opção e pelo caminho escolhidos pelo Governo. Com as suas propostas para a reforma da Segurança Social o Governo abre as portas àqueles que pretendem enfraquecer o sistema público e romper caminho para os mercados financeiros.

Há cinco questões centrais que nos afastam das propostas do Governo:

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Não há muitos anos foi lançada, pelo Banco Mundial, uma larga operação ideológica visando um objectivo claro: criar o quadro justificativo de uma opção de privatização dos sistemas públicos de Segurança Social, com a teoria dos três pilares, visando alimentar os mercados financeiros com os milhões e milhões de contos acumulados na Segurança Social por gerações de milhões de trabalhadores ao longo de uma vida.

Para que esta operação fosse para a frente era necessário que fosse "justificada". Para isso inventou-se a tese da falência dos sistemas públicos de segurança social logo repetida em Portugal.

O PCP nunca partilhou desta concepção catastrofista da Segurança Social e como agora o próprio Ministro Ferro Rodrigues e a própria Comissão do Livro Branco reconhecem, dando razão ao PCP, o sistema não se encontra em risco de ruptura. Pelo contrário, os saldos do regime geral apresentam tendência crescentemente positiva. Cerca de 2 mil milhões de contos é o volume global acumulado de saldos positivos gerados pelo regime geral entre 1987 e 1997. E é a própria Comissão do Livro Branco, mesmo usando as hipóteses mais pessimistas, que diz que entre 2000 e 2015, esse valor (e só calculado para 4 anos de referência) será de cerca de 800 milhões de contos. É, pois, inteiramente falsa a tese da falência do sistema.

O que é verdade é que a responsabilidade dos saldos globais não acompanharem os saldos do regime geral deve-se ao facto da Lei de Bases da Segurança Social não ser cumprida.

O que é verdade é que é o regime geral, que são os trabalhadores, que financiam indevidamente outros regimes e despesas que não lhe competem, que deviam ser financiados pelo Orçamento de Estado.

Como é sabido - e não contestado - o valor acumulado da dívida do Estado à Segurança Social ascende também a cerca de 2 mil milhões de contos a somar aos mais de 400 milhões de contos de dívidas das entidades patronais. A que há ainda a acrescer muitos outros encargos indevidamente suportados pelo regime geral.

Com tudo isto o que é significativo e deve ser relevado é que o sistema se tenha mantido sem rupturas, o que só foi possível graças às contribuições com base nos salários, a quem se aplica de facto a taxa social única, responsável por mais de 90% das receitas correntes do sistema.

Desmontada a propaganda da ruptura do sistema tanto no passado como no presente, tanto a curto como a médio prazo, vêm agora os próceres das teses neo-liberais, porta vozes das seguradoras e da privatização dos sistemas públicos dizer que se isto é assim agora, no longo prazo, o sistema entrará em desequilíbrio.

Só que nenhuma das projecções apresentadas para daqui a 40/50 anos constitui o único cenário possível. Há outros cenários alternativos para as projecções demográficas, para o crescimento do produto bem como para o crescimento nulo do emprego a partir de 2010/2015.

Assim sendo, porque é que a Comissão do Livro Branco optou pela hipótese mais pessimista? Basta introduzir no modelo outras variáveis para a evolução demográfica (aliás mais de acordo com os cenários mais recentes), para o crescimento do produto e do emprego e toda a argumentação falaciosa cai por terra.

A questão não é, pois, técnica. A questão é eminentemente política. Os cenários utilizados têm unicamente a função instrumental de abrir caminho para a tese do "plafonamento" das contribuições, para as sociedades gestoras dos fundos de pensões.

É uma opção que desvaloriza a solidariedade entre gerações, uma opção que em vez de promover uma sociedade solidária estimula concepções profundamente individualistas, que transfere o dever solidário da sociedade garantir, hoje e sempre um nível de vida digna à população inactiva para a lógica irracional dos mercados financeiros e de capitais.

É esta, no fundamental, a pedra de toque, nuclear, das opções do Governo, que o PCP rejeita totalmente.

E não venha, Senhor Ministro, repetir hoje o argumento populista e demagógico do Primeiro Ministro, das pensões acima de 1000 contos V. Exa. sabe perfeitamente que o problema não é esse. Como V. Exa. afirmou em entrevista recente cerca de 80% dos beneficiários do sistema têm rendimentos abaixo dos 104 contos e, como o senhor Ministro reconhece na mesma entrevista, "plafonar" não resolve o problema de financiamento da segurança social.

Aliás, as conclusões do próprio Livro Branco apontam no mesmo sentido: Os resultados serão não só " pouco visíveis no reequilibro financeiro do sistema" como "poderá criar ainda dificuldades financeiras adicionais no médio prazo ...".

Mas diz mais: na metodologia utilizada para o cálculo dos efeitos do plafonamento "não é considerada a solução para o problema do financiamento das perdas ...". E chega mesmo a afirmar que a introdução do plafonamento, no longo prazo, antecipa até o início da derrapagem do Sistema.

Mas assim sendo, não havendo - como o próprio Governo reconhece - nenhuma vantagem para a introdução de tectos, porque vem então o Governo propor o "plafonamento"? É o próprio Ministro que responde: "O plafonamento pode ser simbólico da vontade de mudança". Exactamente. É simbólico de uma mudança a caminho da privatização do sistema público, do privilégio às sociedades gestoras de fundos de pensões, da evolução para um sistema público de carácter assistencialista. É simbólico dos compromissos que o Governo, seguramente, tem com o sector financeiro das seguradoras e de favorecimento das próprias empresas.

Por esse caminho, Senhor Ministro, não conte com o PCP, E quanto, Senhor Ministro, às manipulações dos rendimentos e das carreiras contributivas é fácil de resolver. Em primeiro lugar: quem manipula? Não são seguramente os trabalhadores assalariados cujos rendimentos são os únicos a serem controlados. Aumente-se a fiscalização e o controlo e diminuirão as fraudes ou as manipulações. Crie-se uma carreira contributiva global, com correcção monetária, e o problema fica resolvido.

O problema da Segurança Social não é, pois, nem o da sustentabilidade do sistema público, nem o das pensões altas e, muito menos, não pode ser o de servir de fonte de financiamento às seguradoras e ao mercado de capitais.

O problema da Segurança Social, que nos deve preocupar, são os cerca de 70% dos pensionistas de invalidez e velhice que recebem pensões iguais ou inferiores a 31.300$00; são os mais de 550 mil pensionistas do regime especial agrícola que só auferem 21.300$00; são os cerca de 150 mil pensionistas do regime não contributivo que só têm 22.100$00 de pensão e para o aumento das quais o Governo não apresenta nenhuma solução. Isto é, aliás, tanto mais chocante, quanto, ainda por cima, se sabe que nos últimos anos tem mesmo diminuído ou estagnado o peso das despesas com o pagamento das pensões em percentagem do PIB: de 6,36% em 1991 desce para 6,2% em 1998.

O problema da Segurança Social e dos portugueses é o facto do Estado português ser o segundo da União Europeia (cuja média é de cerca de 28,6% do PIB) que menos gasta com a protecção social (19,5% do PIB).

E que fique claro: o PCP não questiona os fundos de pensões de natureza privada desde que de subscrição inteiramente voluntária e sem tectos para o sistema público.

Senhor Presidente,
Senhores Membros do Governo,
Senhores Deputados,

Outras questões nos separam dos princípios apresentados pelo Governo: Mas que equidade? Como é que o beneficiário faz prova do seu rendimento? Através da declaração de rendimentos do IRS que o PS, na oposição tanto criticava quando aplicado às propinas, porque só os trabalhadores assalariados é que são rigorosamente controlados? Desafiamos, aliás, aqui o Senhor Ministro a dizer-nos quantos trabalhadores independentes ou empresários estão no escalão mais baixo? E no mais alto? Isto não é equidade. É injustiça fiscal transferida para a Segurança Social. E quais foram os custos administrativos da selectividade já introduzida? Uma nova redução da componente da taxa social única paga pela entidade patronal compensada por um aumento de impostos, chamado "contribuição de solidariedade", juntando-se assim à multiplicidade das mais de 60 taxas já existentes e que contribuem fortemente para minar a base contributiva do sistema. A este propósito, Senhor Ministro, desafiamo-lo, também aqui, a dizer-nos quantos postos de trabalho foram criados em resultado directo das várias bonificações, isenções e reduções das taxas contributivas patronais e criação de taxas especiais que têm vindo a ser aplicadas.

Senhor Presidente,
Senhores Deputados:

O Governo tem acenado com o Rendimento Mínimo Garantido como a sua mais importante medida introduzida na protecção social. Como é sabido, o PCP desde o início apoiou este novo direito social. Fomos, aliás, a primeira força em Portugal a introduzir esta questão no debate político, através da apresentação de um projecto de lei.

Mas também desde sempre afirmámos que o RMG não se poderia limitar a ser uma subsidiação da pobreza. Que era indispensável a sua articulação com programas efectivos de inserção activa na vida social e no emprego e avisámos que isso não aconteceria se, entretanto, não fossem tomadas medidas no plano das políticas económicas criadoras de emprego com direitos. A vida está, infelizmente, a dar-nos razão.

Só pouco mais de 12% dos beneficiários estão abrangidos pelos vários programas de inserção. Desafiamo-lo, Senhor Ministro, a reconhecer que, neste plano, o PCP tinha razão e que esta componente essencial do RMG está a revelar-se um claro insucesso.

Senhor Presidente,
Senhores Deputados:

Há outra questão essencial, estratégica, para o futuro do sistema público de Segurança Social: o seu financiamento.

Numa sociedade em elevada mutação tecnológica, com a modificação acelerada da composição orgânica do capital, um sistema de financiamento baseado exclusivamente nos salários conduz obviamente à redução das suas receitas, é desincentivador da criação de emprego, introduz elementos de desequilíbrio concorrencial entre as empresas.

O Governo, no essencial, não aborda esta questão, nem sequer a possibilidade de recorrer a novas formas de financiamento complementares das receitas sobre salários como, por exemplo, a da consideração do VAB das empresas ou a de uma taxa a aplicar ao gigantesco volume de transacções financeiras especulativas realizadas nos mercados bolsistas ou a afectação, à Segurança Social, de parte de determinados impostos.

Nesta matéria que tem a ver com o capital, o silêncio é de ouro.

Senhor Presidente
Senhores Membros do Governo
Senhores Deputados,

Não é possível abordar as questões da Segurança Social sem me referir à fiscalidade e à adiada reforma fiscal. Também aqui o silêncio do Governo é ensurdecedor.

Como é sabido em Portugal, praticamente, só os trabalhadores por conta de outrém pagam impostos. Mais de 75% dos impostos são suportados pelos rendimentos do trabalho. A evasão fiscal, designadamente das grandes fortunas em IRC e IRS é gigantesca. Tal como na Segurança Social também aqui é sobre os rendimentos do trabalho que recai o maior esforço contributivo. Em vez de optar por uma reforma fiscal que introduza justiça fiscal no sistema o Governo opta por reduzir os direitos de quem trabalha no sistema público de Segurança Social e por uma filosofia de selectividade que prejudica quem tem as declarações de rendimento mais transparentes, exactamente os trabalhadores. É caso para dizer: não transfira, Sr. Primeiro Ministro, para a Segurança Social as injustiças do sistema fiscal que o Governo não quer alterar.

Aliás, toda a política do Governo é, no mínimo, altamente contraditória: Diz preocupar-se com a situação financeira da Segurança Social mas simultaneamente avança com um novo "pacote laboral" lesivo dos interesses dos trabalhadores e em que as principais orientações dos projectos apontam exactamente para o aumento de encargos e para a redução de contribuições para a Segurança Social.

Senhor Presidente
Senhores Membros do Governo
Senhores Deputados

Fizemos o diagnóstico. Criticámos. Fazemos agora as propostas.

Que fique claro: O PCP defende a necessidade de uma reforma da Segurança Social.

Mas uma reforma democrática que assegure mais e melhor Segurança Social.

Uma reforma que prepare o sistema para o futuro não através de concepções desresponsabilizadoras do Estado, neo-liberais e construídas a pensar nos mercados financeiros mas, pelo contrário, através do reforço e melhoria do sistema público e a pensar no bem estar dos portugueses, dos jovens que hoje entram no mercado do trabalho, da população em idade activa, dos pensionistas e reformados, dos direitos adquiridos e em formação que devem ser rigorosamente respeitados.

Uma reforma que respeite os cinco requisitos constitucionais fundamentais: um sistema universal, integral, unificado, descentralizado e participado.

Uma reforma que assegure melhores prestações sociais, melhores reformas, maiores coberturas e que aumente progressivamente a percentagem de despesa pública com a protecção social para os níveis médios europeus e que não utilize de forma condenável e demagógica a justa aspiração dos portugueses a melhores reformas para, à sua sombra, como alguns fazem, defender a liquidação do sistema público.


Neste quadro, propomos 12 grandes medidas: Senhor Presidente
Senhores Membros do Governo
Senhores Deputados,

Há seguramente, nesta Assembleia e entre o PCP e o Governo divergências, opções diferentes quanto à Segurança Social e à sua reforma.

Mas ninguém de boa fé pode contestar a seriedade, contrária a qualquer tipo de demagogia populista, das nossas propostas, desta interpelação.

Esperamos que o Governo entre neste importante debate com a mesma seriedade de propósitos e que não faça o que fez com o celebrado pacto político-social em que toda a metodologia utilizada até ao momento desmente o consenso alargado que o Governo afirmou querer criar e para o qual, aliás, o PCP manifestou disponibilidade.

Assim não, Senhor Ministro. Não contem connosco para um diálogo de faz de conta.

Neste contexto, o PCP anuncia aqui que, tendo em conta os princípios e medidas propostas, irá oportunamente apresentar o seu próprio projecto de Lei de Bases da Segurança Social. Mas um projecto de lei para uma Segurança Social mais solidária, financeiramente sustentada, que assegure mais e melhores prestações sociais e melhores pensões de reforma, agora e no futuro. Uma reforma ao serviço de quem trabalha, e não ao serviço dos mercados financeiros e da especulação bolsista, uma Segurança Social pública com direitos sociais mais elevados que garanta o futuro desse imenso património social edificado pelo esforço dos trabalhadores.

Para esse combate, sim! Contem com o Partido Comunista Português.

Disse.