Na observância do princípio da justa reparação devida aos trabalhadores, por infortúnio laboral, procede à alteração das condições, requisitos e da fórmula de cálculo para a remição de pensões devidas por acidente de trabalho e doenças profissionais
Intervenção de Odete Santos
10 de Fevereiro de 2006

 

 

 

 

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

Saudoso Procurador–Geral Adjunto Dr. Vítor Ribeiro, que hoje cabe aqui recordar, pois dedicou muito do seu labor à denúncia das injustiças de que eram vítimas os sinistrados do trabalho, fez inserir na contracapa de uma das últimas edições do seu livro Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, a seguinte frase de Pierre Jaccard na obra História Social do Trabalho : «Há invenção, descoberta, crescimento económico e progresso social quando o trabalhador, manual ou intelectual, é dignificado, mas a ruína está próxima quando o trabalhador é menosprezado. ».

Hoje, vamos limitar a apreciação deste menosprezo aos trabalhadores vítimas de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, remetendo, de resto, para uma apreciação da dimensão desse menosprezo, da tragédia dos sinistrados do trabalho, para outras páginas de Diários da Assembleia da República, nomeadamente aqueles Diários da VI, VII e VIII legislaturas, quando, através de iniciativas legislativas, o PCP deu voz às justas reivindicações das vítimas do infortúnio laboral.

A história desta luta persistente, feita de muito sofrimento e desespero pelas capacidades perdidas no trabalho, mostra que o regime de reparação dos sinistros do trabalho esteve sempre ao serviço das seguradoras, impedindo-se, assim, a justa reparação dos danos causados ao trabalhador, que a lei nunca considerou, como, de resto, ainda hoje não considera, como um homem social, mas apenas como uma máquina em que reparar a perda na capacidade geral de ganho é o objectivo principal, como se este trabalhador ou trabalhadora fossem um conjunto de peças, onde uma ou várias teriam perdido a funcionalidade. O interesse das seguradoras, na concorrência desregrada entre as mesmas, é aumentar a sua carteira de seguros, fazendo-o através de prémios de seguros baixos, o que determinava baixas indemnizações e pensões e tinha por consequência o desinvestimento na área da prevenção, pois, sendo mais barato reparar do que prevenir, as seguradoras e as entidades patronais recebiam, sem sobressaltos, a notícia dos sinistros, que eram reparados por «dez réis de mel coado».

Todo o sistema assentava num completo menosprezo pelo trabalhador, pelo cidadão ou cidadã, a que muitas vezes se podia aplicar a metáfora de Soeiro Pereira Gomes: «uma roda parada numa engrenagem caduca».

Era injusto o sistema que não permitia que se tomasse em consideração todo o vencimento do trabalhador, o sistema baseado no apuramento do capital, da remição com base nos juros do investimento perdido pelas seguradoras determinado pelo caucionamento das pensões.

Era inaudito que as pensões anteriores à legislação que foi sendo produzida após o 25 de Abril não pudessem ser actualizadas, o que determinou pensões muito degradadas. De tal maneira degradadas que, muitas vezes, aquilo que o trabalhador gastava para receber a pensão era superior à própria pensão.

Muitos trabalhadores não percebiam o que se passava. E lá iam os tribunais pagando através de suspeições as injustiças da lei.

O PCP tentou por várias vezes a alteração da legislação — na VI Legislatura, através dos projectos de lei n. os 169, 518 e 519, e na VII Legislatura, com os projectos de lei n. os 125 e 126. É nessa altura que é aprovada a Lei n.º 100/97.

E este podia ter sido um momento histórico. A injustiça de que eram vítimas os sinistrados do trabalho, duplamente vitimizados em consequência do desajustamento, iniquidade e inadequação de um regime jurídico velho de cerca de 30 anos, faria adivinhar que, finalmente, justiça lhes seria feita.

Não foi, no entanto, assim. Cedo ficou claro que o novo regime, apesar de ser melhor que o anterior, não se dispensaria de proteger os interesses das seguradoras privadas. E, assim foi, de facto.

Na VIII Legislatura apresentámos um novo projecto de lei para revalorização de pensões degradadas, com o objectivo de alterar as normas sobre remições de pensões, para aumentar o montante do capital da remição. É parte desse projecto de lei que agora se apresenta, com alterações.

De acordo com vários acórdãos do Tribunal Constitucional, nomeadamente o recente Acórdão n.º 34/2006, veio estabelecer-se o princípio de que, para prestações de reduzido montante e de baixa incapacidade para o trabalho (até 10%), o recebimento do capital da remição constituía justa reparação.

Diz-se, na verdade, neste último acórdão que, se o acidente de trabalho ou a doença profissional não implicou a futura continuação do desempenho de labor por parte do trabalhador, justifica-se que se permita que a compensação correspondente à pensão que lhe foi fixada possa ser «transformada» em capital, a fim de ser aplicada em finalidades económicas porventura mais úteis e rentáveis do que a mera percepção de uma «renda» anual cujo quantitativo não pode permitir qualquer subsistência digna a quem quer que seja.

Já assim não sucede de acordo com o que o Tribunal Constitucional definiu para pensões relativas a incapacidades superiores a 30%.

O interesse protegido na lei de 1997 e na regulamentação de 1999 é, principalmente, o das seguradoras, que, remindo as pensões, libertam reservas matemáticas para investimento no imobiliário ou nos mercados financeiros. Este interesse está escandalosamente presente na fórmula de cálculo, que está prevista em portaria, para obter as reservas matemáticas resultantes dos acidentes de trabalho, em que se aplica uma taxa de juro elevadíssima, de 5,25%, taxa de juro essa que na altura não era obtida e hoje muito menos. Porque, quanto maior for a taxa de juro utilizada nesse cálculo, mais baixo é o capital de remição entregue aos trabalhadores, uma vez que se calcula o prejuízo que as seguradoras terão com a constituição das reservas matemáticas, perdendo esses juros, e então baixa-se o capital da remição.

Nesta matéria, também apresentamos propostas com a alteração da tábua de mortalidade do sexo feminino (porque já há uma muito mais recente), que é a que tem maior longevidade, e que, por isso, aumentará o capital da remição.

Além disso, utilizamos uma taxa de juro, que é a do Banco Central Europeu, de 1,25%, para o retorno dos investimentos.

Termino dizendo que é preciso investir na área da prevenção. Não temos estatísticas actualizadas sobre os acidentes de trabalho, mas as acções entradas nos tribunais de trabalho desde 1998 até 2003 vão em contínua progressão, nomeadamente em relação aos acidentes de que resultam incapacidades até 20% — que são a maior parte dos acidentes — esse número tem sempre progredido.

Relativamente às doenças profissionais mortais, deve falar-se também aqui da tragédia das 3564 pessoas que, em 2001, morreram, em Portugal, em resultado de doenças profissionais, para além das 85 mortes provocadas por substâncias perigosas.

É urgente prevenir. É urgente estabelecer reparações justas. A uma reparação ajustada, e, por isso, mais elevada, corresponderá a opção pela prevenção.

Esta solução restituirá ao trabalhador a dignidade que ele merece.